Evaristo Mendes

Evaristo Mendes

 

Breve introdução histórica ao direito comercial português[i]

 

1. É corrente afirmar-se que, após a queda do império romano do Ocidente e o posterior domínio do Norte de África e parte do mediterrâneo pelos árabes, o espaço económico europeu se fechou. A economia tornou-se uma economia de base agrária e senhorial.

Sobretudo com as cruzadas dos séculos XI e seguintes e a contenção da pirataria no mediterrâneo, houve, no entanto, (i) um ressurgimento do comércio, marítimo e terrestre, numa escala que ia para além de cada estado régio e de cada domínio senhorial (em muitos casos, cidades estados como Veneza, Florença, Génova, etc.), e (ii) a emergência no seio do povo da burguesia que a ele se dedicava, auto-organizada por profissões. Isto fez nascer, ao lado daquela economia agrária e senhorial, uma espécie de nova economia urbana e mercantil, dinâmica, essencialmente transacional e fundada nas transações a crédito (breviter, uma nova economia de circulação da riqueza a crédito), envolvendo um especial risco e caracterizada por uma estreita interdependência da ação dos seus vários intervenientes.

Note-se que o comércio[ii] era, nesta altura, essencialmente formado pela atividade de intermediação nas trocas - com pagamento diferido porque o que se comprava precisava de ser revendido para ser pago - e atividades auxiliares de câmbio de moedas, construção naval, transporte, seguro, etc.[iii] Estamos, portanto, perante uma economia de negócios e de bens mobiliários, adjacente à economia de terratenentes, agrária e feudal.

Duas metáforas correntes ajudam a perceber boa parte do fenómeno: o segredo é a alma do negócio e, sobretudo, o crédito é a seiva do comércio (ou da economia mercantil). Mas outras ideias são igualmente importantes. Utilizando termos modernos, são elas: as ideias de mercado (com natural relevância para as feiras) e de sistema, dada a estreita interação comunicativa dos agentes mercantis, com uma associada complexidade crescente, bem como de risco e insegurança, requerendo um especial rigor no acesso à profissão e no respetivo exercício.

Neste rigor, sobretudo comportamental, inclui-se não apenas o respeito pela palavra dada, a atitude de honrar pontualmente os compromissos assumidos, mas também, designadamente, a escrituração mercantil, isto é, um registo informativo relativo aos negócios e ao estado do «negócio», que além de uma função informativa, cumpria uma função de autodisciplina. Note-se que a primeira metáfora encerra duas ideias-chaves: a de negócio e a de reserva ou confidencialidade (segredo), como qualidade essencial do mesmo. Negócio significa correntemente uma transação do interesse de quem a pratica e portanto lhe traz algum benefício (material ou ideal); fazer negócio com alguma coisa significa realizar uma transação economicamente vantajosa com ela. Estamos neste caso perante negócios-transações isoladas. Mas o vocábulo também se pode referir a uma atividade económico-produtiva levada a cabo de forma mais ou menos duradoura por alguém e/ou sustentada numa organização de meios predisposta para o seu exercício; ou seja, o termo negócio também significa o conjunto ou sistema de transações globalmente vantajosas através das quais a atividade é desenvolvida. O excedente monetário que se consegue através do exercício de tal atividade negocial - ou exploração do correspondente sistema de transações - constitui o principal índice de desempenho do negócio, assegura a sua perduração, tendencialmente ilimitada e torna digno de crédito o respetivo dominus. A lógica do comércio é uma lógica de negócio, que se realiza num dado ambiente - o mercado. O negócio envolve risco, incluindo risco de mercado. Existe uma interdependência grande de quem participa no sistema; daí a necessidade de um exercício rigoroso da profissão e de proteção do credor como forma de tutela do crédito, de que o comércio se alimenta (cfr. a seguir).

 

2. Paralelamente, houve também, em especial na Europa do Sul, um ressurgimento do direito romano e foi-se formando um direito comum, atenuando o particularismo do direito em vigor em cada espaço geográfico e senhorial. Todavia, o direito patrimonial regulador das relações entre vivos era, ainda assim, por um lado, um direito fundiário feudal, régio-senhorial, e, por outro lado, um direito das obrigações e dos contratos dominado por uma ótica de proteção do devedor e que apenas conhecia execuções singulares, promovidas por cada credor.

 

3. Neste contexto, os participantes no sistema mercantil sentiram a necessidade de criar um direito conformador da nova «ordem» económica que pretendiam instituir, uma ordem económica de base fiduciária, fundada numa necessária confiança recíproca desses seus participantes, que permitia as transações a crédito - a concessão recíproca e generalizada de crédito entre eles -, a fluidez do tráfico, através da redução ao mínimo das formalidades e correspondentes custos de transação, e uma certa solidariedade no risco envolvido. Para atingir tais objetivos, o novo direito tinha, ainda, como ideias-forças: i) em contraste com a ideia dominante de proteção do devedor, a prevalência da proteção do credor, valorizando a pontualidade do cumprimento e tratando com rigor os incumpridores - que viria a ter expressão máxima nas consequências incapacitantes da falência e, em dado momento, na prisão por dívidas; ii) igualmente em contraste com o panorama das execuções individuais dos devedores, a instituição da falência como um processo de liquidação universal do património do devedor insolvente em benefício de todos os seus credores, ou seja, a criação de um mecanismo capaz de assegurar uma repartição dos efeitos nefastos da insolvência de um dos participantes, não apenas culposa mas também fortuita, devida ao risco inerente ao comércio e à respetiva envolvente, por todos os seus credores (o que representa uma certa socialização desse risco), evitando ao mesmo tempo uma corrida às execuções singulares.

Ainda que de forma algo embrionária, já podemos descortinar aqui a ideia de um sistema funcionante, assente na confiança e na circulação fácil da riqueza como forma de gerar riqueza, com limitação do risco individual inerente à aventura mercantil, designadamente marítima, «socializando-o» sobretudo através de seguros mútuos, dominado por um princípio de tutela do crédito e correspondente tratamento rigoroso do comerciante devedor, assegurando a paridade de tratamento dos credores de comerciante devedor insolvente e estabelecendo outras exigências quanto ao acesso à profissão de comerciante e seu exercício. A ideia chave é que se trata em grande medida de um sistema de circulação fiduciária da riqueza, uma circulação a crédito e baseada no crédito dos participantes, envolvendo um correspondente risco de crédito cuja verificação era suscetível de provocar reações negativas em cadeia (efeito dominó). Logo, um sistema particularmente sensível, carecido de regulação e rigor; à semelhança do que hoje dizemos do sistema bancário ou financeiro. Ainda não é o sistema produtivo ao serviço do desenvolvimento económico e social das nações que encontramos em ordenamentos jurídicos contemporâneos como o português, com um direito promotor de níveis ótimos de risco e de investimento, mas há um fundo comum de tutela e correspondente promoção da atividade produtiva. Assinala-se, no entanto, uma diferença de vulto: abstraindo das formas convencionais de socialização do risco, historicamente o comerciante exercia a sua atividade inteiramente a seu risco, sob sua responsabilidade (princípio da responsabilidade ilimitada). As contemporâneas sociedades organizadas e reguladas já permitem uma atitude diferente: atualmente o princípio vigente na União Europeia, incluindo Portugal, é o de que quem pretenda exercer uma atividade produtiva pode fazê-lo no quadro de uma estrutura jurídica de responsabilidade limitada.

Como se observará, o princípio da tutela do crédito e do credor viria a ter mais tarde uma expressão forte no regime das letras de câmbio, em especial no vigente regime da LULL de 1930, bem como em aspetos de regime mercantil que se encontram no Código Comercial em vigor (de 1888): solidariedade dos co-devedores (art. 100), em contraste com o regime civil da conjunção; solidariedade do fiador com o devedor principal (art. 101), em contraposição à regra da subsidiariedade da fiança civil; existência de juros moratórios agravados para os créditos comerciais profissionais (art. 102 §§ 3 e 4); regime ampliativo da garantia patrimonial das dívidas comerciais dos cônjuges (arts. 1691.1d) do CC em conjugação com o art. 15 do CCom; art. 10 deste Código, embora a supressão da moratória que até 1995 constava do artigo 1696.1 do CC lhe tenha feito perder significado); etc..  A falência, enquanto processo de liquidação universal do património do devedor insolvente em benefício dos credores, assegurando a paridade de tratamento destes, manter-se-ia em Portugal como instituto privativo dos comerciantes até 1932. Presentemente, existe um regime unificado, embora com regras especiais para as organizações produtivas, incluindo regras relativas à sua recuperação, em alternativa a essa liquidação. O diploma fundamental é o CIRE de 2004.

 

4. Este direito mercantil foi em parte de criação espontânea, expressa no costume. Mas foi também obra das estruturas organizativas dos comerciantes e das respetivas cidades. Em complemento do corpo de normas que se foi formado e com relevante papel nessa formação, instituiu-se igualmente uma jurisdição própria: os tribunais dos comerciantes, com competência para julgaram causas mercantis entre eles e com juízes recrutados em geral dentro das pessoas do meio, entendidas na matéria (tribunais consulares, integrados por consules mercatorum). Trata-se, em suma, de um abrangente direito de «classe» (ius mercatorum), de índole subjetivista, criado pelos mercadores para regular o exercício do seu comércio e por eles também aplicado.

Há quem defenda (Paoli: 1935) que na Grécia clássica se verificou um fenómeno com alguma semelhança. A par do direito da cidade (polis), aplicável aos cidadãos, nas relações mercantis, ter-se-á formado entre cidadãos e estrangeiros um direito consuetudinário, com jurisdição própria. E, com o tempo, este direito terá influenciado aquele. Em Roma, poderá ter acontecido algo do género, embora o assunto seja controvertido[iv].

Como se observará, ao logo do século XX houve uma forte comercialização do direito civil, expressa, por exemplo, em Portugal, no regime das sociedades dos artigos 980 e seguintes do CC e com a expressão mais acabada no CC italiano de 1942, em que este regime se apoia largamente, como, de resto, o regime de boa parte do direito dos (demais) contratos.

 

5. Com os descobrimentos portugueses, o centro de gravidade da vida económica europeia desloca-se do mediterrâneo para o Atlântico. O direito comercial acaba por ser assumido, em França, como um instrumento do mercantilismo e conhece aí a sua primeira sistematização legislativa geral, com as ordenanças de Colbert da segunda metade do século XVII. Aspeto saliente desta «estatização», reveladora de que a nova ordem mercantil se tinha tornado de interesse nacional, é a consagração da figura do chamado comerciante acidental, primeira manifestação de expansão da nova ordem mercantil para além das suas históricas fronteiras institucionais, relativas à profissão de comerciante e ao estatuto jurídico deste.

Na verdade, embora se o sistema continue essencialmente subjetivo - trata-se, ainda, de um direito dos comerciantes - salienta-se a sujeição objetiva ao direito comercial e à jurisdição mercantil dos atos relativos à letra de câmbio, peça central do crédito, independentemente da qualidade dos sujeitos intervenientes, bem como a equiparação a comerciantes (comerciantes «quoad actum») dos praticantes de outros atos de comércio, ficando também eles sujeitos à jurisdição consular.

Foi também a partir do início do século XVII que se desenvolveram, em boa medida por iniciativa régia e com a participação da Coroa, as companhias coloniais, com importantes disposições estatutárias, e as associadas bolsas de ações, embriões das modernas sociedades anónimas e bolsas de valores. Aqui, ainda que com algum atraso, Portugal seguiu o exemplo de outros países, como a Holanda e a França.

 

6. A Revolução francesa de 1789 foi também um marco importante. Com efeito, na sequência da mesma generalizou-se na Europa continental e no espaço de influência desta a codificação do direito, a qual se estendeu também ao direito comercial.

Em França, após o Código civil de 1804, foi promulgado o Código comercial de 1807, que viria a servir de modelo a uma primeira geração de outros códigos mercantis europeus do século XIX. Como o próprio nome indica, trata-se de um código do comércio, estruturado em termos objetivistas; não um código dos comerciantes.

Em Portugal, o movimento codificador começaria com o Código Comercial de Ferreira Borges (1833); e outro tanto sucedeu em Espanha e na Alemanha. Daí que, na falta de um código civil, que entre nós só surgiria em 1867, este Código incluísse disposições de direito comum, misturadas com as mercantis.

 

7. Para se compreender melhor a codificação mercantil iniciada com o Code de commerce e a evolução do direito comercial codificado, importa ter presente o contexto. Para além da Revolução francesa, salienta-se um outro grande acontecimento, iniciado também nos finais do século XVIII: a revolução industrial, surgida na Inglaterra e estendida subsequentemente ao continente europeu. A revolução industrial viria a determinar a passagem do anterior capitalismo comercial, centrado na intermediação nas trocas, para o capitalismo industrial, centrado na indústria transformadora, mas que impulsionou também o desenvolvimento da indústria extrativa (sobretudo carvão e matérias primas), dos transportes, de construção de pontes, estradas, etc. A revolução francesa levou à afirmação da liberdade de trabalho, comércio e indústria como fundamento de uma nova ordem económica - uma economia de mercado aberta e liberal, em contraposição à anterior economia corporativa fechada.

A ideia de indústria, que domina aquela nova forma de capitalismo, está ligada ao uso de mão-de-obra intensiva nas fábricas então criadas. Daí que, quando os autores procuraram descortinar nas leis um critério geral da «comercialidade», tenha surgido a opinião de que ele residiria na especulação e de que, na indústria (transformadora), existe uma especulação sobre a mão-de-obra.

 

8. Nesta economia liberal e aberta do século XIX, baseada na liberdade de acesso à atividade mercantil, de exercício concorrencial da mesma e de coordenação da atividade dos agentes económicos através do mercado, assumiu importância crescente a empresa industrial, ligada sobretudo à indústria transformadora, com as atividades auxiliares de agência e mediação. Mas desenvolveram-se também grandes empresas de transportes, naval e ferroviário, incluindo a construção de vias férreas e canais de navegação, entre outras.

O centro da atividade económico-produtiva foi-se deslocando para a atividade industrial - e para uma atividade industrial empresarializada: a criação e a oferta de bens no mercado passam em boa parte a ser desempenhadas por uma nova unidade económico-produtiva com identidade própria e de cariz institucional, a empresa. A par do artesão e do comerciante autónomo, atuando diretamente, de forma individual ou associada (em societates mercatorum), surge a figura do empresário, que organiza os fatores produtivos e dirige a organização com eles criada, tipicamente fazendo do exercício de certa atividade económico-produtiva levada a cabo por essa organização um negócio. A produção industrial passa a ocupar em grande medida o espaço da tradicional produção manual e artesanal (profissões manuais autónomas). Mas as profissões intelectuais-liberais conservaram o seu figurino tradicional; e manteve-se também o tradicional sistema de crédito difuso, ancorado na letra de câmbio, sendo a atividade financeira especializada (levada a cabo por casas bancárias) pouco desenvolvida.

Para os grandes empreendimentos, assume também relevo crescente e de primeira grandeza a sociedade anónima - herdeira das antigas companhias majestáticas dos séculos XVII e XVIII e, dada a sua aptidão para a afetação permanente à atividade produtiva de uma grande massa de recursos económicos e financeiros, caracterizada por Rippert como um instrumento maravilhoso do capitalismo moderno -, com o associado mercado da bolsa de valores, mormente de ações. Mas só na segunda metade do século XIX foi liberalizada a sua constituição (em 1867, na França e em Portugal).

A principal batalha do desenvolvimento económico das nações e dos Estados é, nesta altura, a da produção privada de bens. As patentes, de invenção e de introdução, foram, a par da concessão de serviços e obras públicas, um dos principais instrumentos impulsionadores desse desenvolvimento. Paralelamente, para os empresários, o principal desafio era a produção da maior quantidade possível de bens com o menor custo (eficiência produtiva).

 

9. Ao longo do século XIX e do século XX, esta economia de mercado de matriz liberal tornou-se crescentemente complexa e internacionalizada. Daí a importância dos chamados sinais distintivos do comércio - ou seja, para além da firma (ou do nome comercial, compreendendo a firma e o nome do estabelecimento), sobretudo da marca - e, mais latamente, a emergência de um novo ramo do direito: o direito industrial ou direito da propriedade industrial, compreendendo também as patentes de invenção.

A empresa - a organização produtiva de mercado autónoma historicamente ligada à indústria - foi-se também afirmando não apenas como motor do desenvolvimento industrial mas, mais abrangentemente, como a célula básica do tecido produtivo, nacional e multinacional. A admissão da participação de sociedades noutras sociedades, ocorrida no primeiro quartel do século XX, contribuiu, igualmente, para uma futura modificação de vulto na composição deste tecido produtivo: no final do século XX, este já era dominado por empresas plurissocietárias, tornando-se bastante intrincado e opaco, o que afetou o significado prático de um princípio clássico do direito das sociedades - o da tipicidade das formas societárias mercantis - e obrigou o legislador e/ou os tribunais a intervir.  

Paralelamente, houve, ainda, a progressiva formação de um setor financeiro forte, a ponto de se poder dizer que ao capitalismo industrial sucedeu o capitalismo financeiro. A letra de câmbio perdeu importância como instrumento de crédito autónomo (servindo como moeda de troca dos comerciantes e permitindo uma concessão recíproca e generalizada de crédito entre eles, por isso, pedra básica do sistema de crédito), passando a ter quase sempre como destino o desconto bancário; ou seja, tornou-se um instrumento de crédito especializado, situado na órbita da atividade bancária.

Com o desenvolvimento das empresas e após a eclosão da questão social, nos finais do século XIX, o direito do trabalho afirmou-se progressivamente como ramo autónomo do direito, não circunscrito ao contrato individual de trabalho. Quanto a este, em Portugal, a primeira lei data de 1937 e nela teve importante intervenção, como relator do parecer da Câmara Corporativa, um dos maiores comercialistas pátrios do século XX - o Prof. José Gabriel Pinto Coelho - versado sobretudo na matéria da propriedade industrial e no direito cambiário[v]. Atualmente, vigora o Código do Trabalho de 2009, com diversas alterações.

As crises de sobreprodução do segundo quartel do século XX e a correspondente saturação do mercado fizeram com que o principal desafio das empresas deixasse de ser a produção eficiente - em boa medida uma técnica adquirida - e passasse a ser a conquista e a conservação da clientela. Da batalha da produção passou-se à batalha do cliente. Nos finais do século, o comércio económico readquiriu um papel de primeira grandeza nos tecidos produtivos nacionais, com o desenvolvimento das grandes empresas e superfícies comerciais.

Os sinais distintivos ganharam importância redobrada, agora sobretudo enquanto instrumentos de acreditamento das organizações produtivas e respetivas ofertas de bens e serviços no mercado; ou seja, atendendo primacialmente à sua função publicitária, que acresce à função distintiva ou individualizadora e à associada função de indicador de qualidade. Mais latamente, alcança também posição de relevo a publicidade e desenvolvem-se técnicas de marketing cada vez mais sofisticadas; nem sempre dentro das malhas do direito e da ética dos negócios dominante. Daí o grande relevo que a regulação da qualidade da concorrência também assumiu.

Reconhecidamente, para a construção do mercado único europeu, é relevante a uniformização não apenas do direito da concorrência, entendido como direito da liberdade e efetividade da concorrência, mas também do direito da concorrência desleal, a que se alude adiante (nº 12). Daí a existência de uma série de importantes estudos sobre este direito nos vários Estados-Membros, encomendados pela Comissão Europeia. Porém, até agora, a harmonização conseguida é limitada, salvo no âmbito das relações de consumo, em que foi promulgada uma diretiva de harmonização plena - a Diretiva 2005/29/CE, transposta para Portugal pelo DL 57/2008.

 

10. Já se aludiu à relevância da atividade produtiva para os Estados, que, ainda no século XVII, levou em França à sistematização legislativa do direito comercial e depois à sua codificação, bem como ao desenvolvimento da propriedade industrial, começando pelas patentes. Durante a segunda metade do século XX, o tradicional modelo económico liberal (ou o que dele as guerras deixaram subsistir) foi em grande medida, abandonado; o mesmo sucedendo com alternativos modelos «corporativos», com os que existiram na Itália e em Portugal. Numa primeira fase, assistiu-se a um forte intervencionismo público nas existentes economias de mercado, seja pela via de medidas administrativas diretas, seja através da criação de um importante setor público empresarial. No final do século, verificou-se um movimento de certo modo inverso, de recuo deste setor, e a adoção de um novo paradigma - o da economia de mercado regulada. Quer o modelo intervencionista quer o modelo regulatório têm subjacentes preocupações de índole social e económica; de tal modo, que as economias da Europa ocidental, incluindo a portuguesa, passaram a classificar-se como economias sociais de mercado e o modelo económico correspondente como capitalismo social.

Já se afirmou que o direito comercial é um regime do mercado (a par de outros, como o DPI), ao nível dos seus «sujeitos económicos significativos» (comerciantes) enquanto atores de produção para esse mercado, centrado num dado fator de produção económica – o capital (em contraposição ao trabalho e à terra) (Sendin, 1998). Nesta ordem de ideias, o direito comercial tem a ver, sucessivamente, com o capitalismo mercantil, industrial/liberal, financeiro e agora também com o mais complexo capitalismo social. A tutela do capital e do crédito associado é um vetor essencial do mesmo.

 

11. De certo modo em contraposição à vocação expansionista que o direito comercial conheceu na segunda metade do século XIX (cfr. adiante), formou-se a partir do último quartel do século XX um novo ramo do direito - o direito do consumidor; centrado na regulação das relações de consumo e na defesa deste participante no mercado. Trata-se de uma peça importante desta nova economia de mercado regulada e social, a par do direito do ambiente e do direito laboral.

Como se observará, encontramos de algum modo preocupações de proteção do consumidor contra tal expansionismo na nossa jurisprudência, a respeito do regime das dívidas incomunicáveis dos cônjuges casados em regime de comunhão de bens (art. 10 do CCom), bem antes do moderno movimento de defesa do consumidor. Todavia, o legislador mercantil, num primeiro momento, contrariou substancialmente tal jurisprudência (1977) e, num segundo momento, foi o próprio legislador civil que consagrou uma solução geral, desfavorável aos interesses da família do devedor (consumidor), extinguindo a moratória então constante do artigo 1696.1 do CC (1995).

No direito vigente, a disposição fundamental de proteção do consumidor é o artigo 60 da CRP, desenvolvido, designadamente, pela Lei de defesa do Consumidor (Lei nº 24/96, com diversas alterações). Existe, no entanto, numerosa legislação complementar e um anteprojeto de codificação da mesma que, no entanto, não teve êxito (diferentemente do que sucedeu, por exemplo, no Brasil e na Itália).

 

12. Ainda no século XIX, formou-se uma espécie de direito comum da concorrência - o direito da concorrência desleal; visto predominantemente ora como um conjunto de regras de comportamento afirmadoras de uma certa ética dos negócios ou correção profissional, ora como uma forma de tutela difusa de valores imateriais da empresa, estabelecimento ou negócio mercantil, complementar da proteção conferida pelos direitos da propriedade industrial. A história ligação umbilical a esta forma de propriedade imaterial encontra-se bem espelhada, a nível internacional, na CUP e, a nível nacional, na LPI de 1896 e nos sucessivos códigos da propriedade industrial, de 1940, 1995 e 2003.

No estado atual das coisas - o de uma economia social de mercado concorrencial e regulada -, há elementos que permitem afirmar uma mudança de paradigma deste ramo do direito, orientado agora para a defesa de um sistema de concorrência genuína ou não falseada e articulado com um segundo conjunto de normas concorrenciais e de instituições, estas destinadas primariamente a garantir a liberdade e efetividade da concorrência, tendentes a reprimir comportamentos anticoncorrenciais e a permitir o controlo de atos de concentração económica com potencial anticompetitivo. Trata-se do direito da concorrência, também designado direito de defesa da concorrência, direito antitrust ou direito dos cartéis, afirmado como tal ainda no final do século XIX nos EUA (num contexto económico liberal) mas que apenas adquiriu na Europa continental a importância que hoje tem a partir da segunda metade do século XX. Em Portugal, a primeira lei efetivamente reguladora do assunto data de 1983. Até lá, existiram uma mini-lei da concorrência de 1936 e uma segunda de 1972, mas nenhuma delas entrou em vigor, por falta da necessária regulamentação. Hoje, vigora a Lei da Concorrência de 2012 (Lei nº 19/2012), a par dos artigos 101 e seguintes do TFUE[vi].

Atualmente, no nosso país, o direito da concorrência desleal encontra-se dividido por dois corpos de normas: o CPI (arts. 317s, 331) e, no âmbito das relações de consumo, o DL 57/2008, que transpõe a citada Diretiva de 2005/29/CE sobre as práticas comerciais desleais. Carece de ser repensado e dotado de unidade normativa.

Importa fazer uma advertência sobre a concorrência. Hoje em dia vista essencialmente como um mecanismo benéfico, promotor do desenvolvimento económico e social, ela pode ter também não apenas um efeito deletério em termos económicos mas inclusive determinar comportamentos suscetíveis de minar o próprio Estado de Direito. Na verdade, se as regras do jogo com significado económico-concorrencial não forem estritamente observadas, havendo operadores económicos que, por insuficiência da administração da justiça, incumprem normas fundamentais com impacto concorrencial, incluindo normas ambientais, sociais, fiscais, etc., o desejo de sobrevivência económica pode facilmente levar a uma imitação desses comportamentos e a um correspondente desrespeito generalizado da lei.

 

13. Voltemos à codificação mercantil. A liberdade de comércio e indústria, juntamente com o princípio da igualdade perante a lei, significa a liberdade de acesso e de exercício de qualquer atividade mercantil, sem os constrangimentos que o anterior sistema corporativo implicava, e a sujeição à lei e à jurisdição comerciais. Mas, para os ideólogos da revolução francesa, significava também que qualquer pessoa capaz deveria poder aceder aos benefícios do comércio, ficando sujeita às suas normas e aos tribunais de comércio, mesmo que não pudesse ou não quisesse exercer profissionalmente, de forma sistemática ou como modo de vida, qualquer das atividades que o compunham - fazendo desaparecer a ficção do comerciante acidental.

Daí a consagração no Code de commerce de 1807 de um sistema objetivo e atualizado de delimitação da matéria mercantil (faits de commerce), compreendendo: i) por um lado, tanto o comércio profissional como o chamado comércio ocasional (negócios objetivamente mercantis, independentemente da qualidade dos sujeitos); ii) por outro lado, tanto as atividades e negócios mercantis centrados na intermediação nas trocas (comércio tradicional), como as novas atividades «empresariais» centradas na indústria nascente e respetivos negócios (novo «comércio»). Encontramos aqui, quer a origem da teoria dos atos de comércio (TAC) que viria a tornar-se a doutrina explicativa dominante do sistema de delimitação da matéria mercantil, tanto em França como noutros países (Portugal incluído), quer os fundamentos para uma possível reconstrução do sistema, em torno da empresa, como viriam a defender alguns autores posteriores. 

Outras notas salientes no Código são as seguintes: i) acolhe a figura da sociedade anónima - com ações nominativas (i.e., com titular identificado e registadas na sociedade[vii]) e ao portador (sem titular identificado e «incorporadas» num suporte material negociável - título) -, herdeira das antigas companhias majestáticas (públicas ou parapúblicas), como instituição de direito privado, vocacionada para reunir um vasto conjunto de capitais para grandes empreendimentos e permitindo desse modo um acesso dos cidadãos em geral aos respetivos benefícios; embora a sua constituição e a alteração dos respetivos estatutos tivessem ficado dependentes de autorização administrativa; ii) mantém a separação, no direito patrimonial privado, entre o domínio dos bens móveis e do tráfico mobiliário (civil ou comercial) e o domínio imobiliário (civil); iii) relativamente negócios de entrada e saída do mercado - atos de comércio mistos -, consagra uma dualidade de regime e de jurisdição, civil e comercial, evitando desse modo uma excessiva comercialização da vida civil; iv) mantém a jurisdição mercantil; v) conserva a falência como processo de liquidação universal do património do devedor comerciante em benefício dos seus credores, em contraste com o sistema civil das meras execuções singulares; vi) a letra de câmbio ocupa um lugar de relevo, como peça fundamental do sistema de crédito; vii) existe um elenco fechado de sociedades mercantis ostensivas e dotadas de personalidade jurídica - integrado, além das sociedades anónimas, pelas sociedades em comandita por ações, pelas sociedades em nome coletivo (que são sociedades de comerciantes, apesar da sua personalidade jurídica) e pelas sociedades em comandita simples; viii) comerciante, peça nuclear do sistema e sujeito a um estatuto jurídico próprio, é quem exercer profissionalmente o comércio.

 

14. Este modelo regulatório foi seguido na generalidade dos códigos comerciais europeus da primeira metade do século XIX (códigos comerciais da primeira geração); e, com mais ou menos modificações, ainda se encontra presente na maior parte dos códigos comerciais posteriores, incluindo o Código Comercial português vigente, de 1888. A segunda geração de códigos comerciais trouxe, no entanto, novidades. Salientam-se as seguintes: i) a extensão do direito comercial ao domínio imobiliário; ii) a sujeição a um regime unitário mercantil dos atos de comércio mistos; iii) a «generalização» das formas societárias mercantis, permitindo a sua utilização para o exercício de atividades civis, sem perda da sua qualificação como organizações comerciais e da qualificação dos negócios e obrigações a elas respeitantes também como mercantis; e iv) uma mais extensa e cuidada regulação dos contratos mercantis em especial, bem como de alguns títulos de crédito, incluindo o cheque. Além disso, com o Código Comercial alemão de 1897 (HGB), preparado em paralelo com o CC (BGB), verifica-se um certo retorno ao direito comercial como direito dos comerciantes; e, mais recentemente, a crescente empresarialização da atividade mercantil levou a que códigos como o austríaco passassem a redenominar-se códigos empresariais, atualizando a terminologia e os conceitos utilizados[viii].

 

15. Ainda no século XIX, ocorreu: i) não só um desenvolvimento paralelo do aludido direito da propriedade industrial[ix] e, sob o impulso da jurisprudência francesa[x], do direito da concorrência desleal, mas também o surgimento nos EUA do direito atritrust, nos finais do século, como já se observou; ii) a elaboração, na Alemanha, de uma teoria geral dos títulos de crédito, subsequentemente importada e reformulada na Itália por Vivante, no início do século XX. Esta reformulação apresenta particular importância pela influência que viria a ter, sobretudo pela via de Tulio Ascarelli, na doutrina portuguesa e brasileira.

 

16. Já no século XX, o sistema jurídico-mercantil assim concebido e codificado entrou de certo modo em crise. Com efeito, para dar alguns exemplos, na linha do Código das obrigações suíço[xi], com o Codice civile italiano de 1942, houve uma unificação formal do direito privado, e o mesmo sucederia mais recentemente com o Código Civil holandês de 1992. Com o Código Civil de 2002, o Brasil viria, em parte, a seguir pela mesma via, deixando, no entanto, de fora matérias como a das sociedades anónimas, objeto de regulação autónoma (Lei nº 6.404/1976). As letras, livranças e cheques foram objeto de regulação internacional uniforme (LULL de 1930 e LUCh de 1931), baseada ainda na ideia da letra de câmbio como elemento nuclear do sistema de crédito, mas a progressiva especialização deste, com o desenvolvimento do setor bancário e parabancário, acabaria por mudar o respetivo paradigma, como também já se assinalou. Em França, depois de uma lei sobre sociedades anónimas de 1867, que liberalizou a sua constituição, realça-se uma lei geral sobre sociedades comerciais de 1966 (seguida da modernização do direito civil das sociedades em 1978), bem como a «recodificação recompilatória» do direito mercantil do ano 2000. Em Portugal, à margem do CCom de 1888, foi acrescentado logo em 1901 um novo tipo societário mercantil, concebido e adotado na Alemanha em 1892 - a sociedade de responsabilidade limitada (GmbH), importada para Portugal sob a designação de sociedade por quotas de responsabilidade limitada. Em 1937, a Alemanha retirou do HGB a regulação das sociedades por ações, aprovando uma lei autónoma, embora qualificando tais sociedades (pessoas jurídicas), independentemente do objeto, como comerciantes (a atual lei data de 1965). Etc.

 

17. Centrando a análise em Portugal, observa-se o que se segue. O Código Comercial de 1833 (Código Ferreira Borges) ocupava-se da seguinte matéria mercantil: i) das pessoas do comércio (incluindo comerciantes e empregados comerciais), das praças comerciais ou bolsas, dos atos comerciais e da competência da jurisdição mercantil (Parte I, livro I); ii) dos negócios e obrigações comerciais, incluindo letras e livranças, e das sociedades mercantis (Parte I, livro II); iii) do foro mercantil, das ações comerciais e da falência (quebra) (Parte I, livro III); e iv) do comércio marítimo (Parte II).

Embora mereça menção a jurisdição mercantil do Consulado de finais do século XVI, com o respetivo Regimento (1594), que foi nesta matéria fonte próxima do Código Ferreira Borges, cabe assinalar que ele teve vida efémera (havendo o tribunal sido abolido em 1602) e que, antes deste Código, não existiu um sistema de direito mercantil comparável ao que se observou noutras partes da Europa, designadamente nas repúblicas/comunas italianas e em França. Salienta-se, em todo o caso, que Portugal teve um relevante papel de Portugal no desenvolvimento dos seguros marítimos. Note-se também, como fator diferenciador, que a Coroa, a nobreza e as ordens militares tiveram um papel ativo na atividade mercantil. Os próprios reis portugueses se intitulavam, a partir do final do século XV, senhores da «Conquista, Navegação e Comércio». Ainda antes do CCom de 1833, importa assinalar a Lei da Boa Razão (18.08.1769), que, em matéria comercial, dispunha que aos casos omissos se deveriam aplicar as «leis económicas, mercantis e marítimas das nações civilizadas».

Esta falta de tradição de um tal sistema jus-mercantil talvez permita, em alguma medida, explicar porque ficou, mais tarde, letra morta o artigo 4 da Carta de Lei que aprovou o Código vigente, porque foram os tribunais de comércio extintos em 1932 (outra das razões tem a ver com as inúmeras questões de competência, que a interpretação e aplicação das regras de qualificação mercantis suscitava) e porque se encontra este Código grandemente amputado do seu conteúdo originário. Pode, na verdade, descortinar-se um direito da atividade produtiva nas próprias Ordenações, mas a codificação comercial oitocentista, relativa ao essencial desta atividade, parece ser sobretudo uma obra intelectual, de juristas iluminados, inspirada em modelos estrangeiros, ainda que adaptando-os à realidade nacional.

 

18. Seguiu-se, depois da aprovação do CC de 1867, o CCom vigente de 1888 (Código Veiga Beirão), cujas fontes inspiradoras fundamentais foram o CCom italiano de 1882 e o CCom espanhol de 1885, dividido nos seguintes quatro livros:

I - Do comércio em geral, compreendendo designadamente normas qualificadoras, que delimitam o seu campo de aplicação (arts. 1, 2 e 13), regras relativas à capacidade comercial (arts. 7 a 12), às bolsas e corretagem (arts. 82ss, 64ss), bem como, sobretudo, disposições de acesso à profissão de comerciante e que definem o estatuto jurídico dos comerciantes (arts. 13ss). As operações de bolsa são também objeto de regulação no livro II (arts. 351ss).

II - Dos contratos especiais de comércio, abrangendo: i) um conjunto de disposições gerais em que se salientam as regras relativas aos atos de comércio mistos (determinando a aplicação do regime mercantil e da então jurisdição comercial - art. 99), à solidariedade das obrigações mercantis (arts. 100 e 101) e aos juros comerciais (art. 102); ii) uma norma de qualificação das empresas comerciais (art. 230): iii) a matéria das sociedades (arts. 104ss) - incluindo as então sociedades cooperativas (arts. 207ss) e o regime fundamental das ações (arts. 166ss) e das obrigações (195ss) - e da conta ou associação em participação (arts. 224ss); iv), o regime jurídico das letras, livranças e cheques (arts. 278 a 343); v) o regime jurídico de uma série de contratos mercantis, para além dos contratos de sociedade e conta em participação, nalguns casos com as respetivas normas qualificadoras (cfr., por ex., os arts. 463 e 464) e compreendendo também a disciplina de alguns títulos de crédito adicionais [guia de transporte (arts. 369ss), conhecimento de depósito e cautela de penhor (arts. 408ss), etc.], bem como a regulação da representação jurídica dos comerciantes através dos respetivos gerentes e outros auxiliares (arts. 248ss), e, por fim, o regime geral de transmissão e reforma dos títulos de crédito mercantis (arts. 483 e 484).  Nos contratos especialmente regulados salientam-se: o mandato (abrangendo também contratos de trabalho) (arts. 231ss, 266ss); a conta-corrente (arts. 344ss), o transporte (arts. 366ss; o transporte marítimo é regulado no livro III); o empréstimo (arts. 394ss); o penhor (arts. 397ss); o depósito (arts. 403ss); o seguro (arts. 425ss; os seguros marítimos estão especialmente regulados no livro III, arts. 595ss); a compara e venda (arts. 463ss); e o reporte (arts. 477ss). Existem, ainda, normas qualificadoras relativas às operações de banco (art. 362), bem como à falência culposa de banqueiros (art. 365), à troca, a que se aplicam mutatis mutandis as regras da compra e venda (art. 480), e ao aluguer (art. 481).

III - Do comércio marítimo, compreendendo: i) a matéria dos navios, incluindo os contratos relativos aos mesmos (construção naval, transmissão, fretamento, etc.) (arts. 485ss), a propriedade, o capitão e demais tripulação (arts. 492ss, 496ss, 516ss), o conhecimento de carga ou embarque de mercadorias (arts. 538ss), privilégios creditórios e hipotecas (arts. 574ss); ii) o seguro contra riscos de mar (arts. 595ss) e o abandono de objetos segurados (arts. 616ss); iii) o contrato de risco (arts. 626ss), incluindo o respetivo título à ordem (art. 627); iv) as avarias dos navios e respetivas cargas (arts. 634ss); v) as arribadas forçadas (arts. 654ss), a abalroação (arts. 664ss), e a salvação e assistência (arts. 676ss).

IV - Das falências (arts. 692ss), regulando a situação do comerciante insolvente.

 

19. O Código deixou subsistir o foro mercantil, mas não se ocupou da matéria. Este seria, no entanto, extinto em 1932. No final do século XX, viriam a ser recriados, na jurisdição comum, tribunais especializados de comércio e também tribunais marítimos[xii]. Atualmente[xiii], existem, nalguns tribunais de comarca, juízos especializados de comércio [arts. 81.3i) e 128 da LOSJ], abrangendo matérias societárias, de registo mercantil e insolvência, e existem, ainda, tribunais com competência territorial alargada: o tribunal marítimo, o tribunal da propriedade intelectual, que abarca designadamente a matéria da propriedade industrial e também se ocupa de matérias conexas de concorrência desleal, e o tribunal da concorrência, regulação e supervisão [arts. 83.3, 111, 112 e 113 da LOSJ e 65 do Reg].

Na matéria das patentes, está previsto um futuro tribunal unificado de âmbito «europeu», instituído ao abrigo de um acordo de cooperação reforçada; e para as patentes de medicamentos existe um sistema de arbitragem necessária, criado no final de 2011.

Antes de ser extinto, o foro mercantil possuía um âmbito alargado. Além da matéria mercantil do CCom, compreendia a da propriedade industrial, ela própria em grande medida relativa à atividade produtiva, mas não necessariamente comercial.

Dispunha-se no artigo 4 do CPCom de 1905, referido a seguir: «São da exclusiva competência do juízo comercial todas as causas emergentes de atos de comércio, sobre marcas industriais ou comerciais, respetivas indemnizações de perdas e danos, e bem assim todas aquelas que as leis expressamente sujeitarem à jurisdição do mesmo juízo. § único. Embora o ato seja mercantil só com relação a uma das partes, as causas a que der origem serão sujeitas à jurisdição comercial.» Mas não abrangia as questões relativas a sociedades mercantis com objeto civil (as chamadas SCFCom – art. 106 do CCom). Apesar do teor limitado deste artigo 4, a LPI de 1896 submetia à jurisdição mercantil, ainda que em termos imperfeitos gerando dúvidas de interpretação, não apenas as questões de marcas mas também as relativas a patentes (pelo menos, o recurso contra a concessão e recusa da patente, bem como as ações de anulação e de nulidade) e outros direitos industriais (modelos, nome comercial, etc.). Note-se, também, que, sendo os atos relativos a marcas, patentes, modelos e desenhos, etc., praticados por comerciantes, no exercício do seu comércio, os mesmos entravam na competência do foro mercantil enquanto atos de comércio. O mesmo sucedia com os atos de concorrência desleal, acerca dos quais a LPI não indicava este foro como competente.

 

20. O sistema era completado com normas processuais, e também de direito probatório, que, no final do século, passaram a integrar o Código de Processo comercial de 1895[xiv], baseado no Projeto elaborado por uma comissão de jurisconsultos e comerciantes criada quando da aprovação do CCom (1888). Este seria fundido com o subsequente Código das Falências de 1899 e objeto de nova publicação oficial em 1905, perdurando até 1939. Nesta altura, a matéria passou para o novo CPC. À semelhança do que constava do CCom de 1833, no artigo 3 do CPCom estabelecia-se: «O juízo comercial é essencialmente juízo de equidade». O CPC era direito subsidiário (art. 1).

No CPC vigente, encontramos, designadamente, ações especiais de prestação de contas (arts. 941ss), bem como de regulação e repartição de avarias marítimas (arts. 953ss), assim como processos de jurisdição voluntária relativos ao exercício de direitos sociais (arts. 1048ss) e providências relativas a navios e respetiva carga (arts. 1072ss). Note-se que a prestação de contas é uma obrigação geral dos comerciantes (art. 18.4º do CCom), embora não seja privativa deles. Cabe ainda observar que, numa recente reforma da legislação comercial, de 2006, o artigo 63 do CCom, que concretizava tal obrigação, foi «misteriosamente» revogado, tal como foi eliminada a obrigação fundamental de autodisciplina dos comerciantes que constava do artigo 29 do Código, assim redigido: «Todo o comerciante é obrigado a ter livros que deem a conhecer, fácil, clara e precisamente, as suas operações comerciais e fortuna». Atualmente, este preceito tem a seguinte redação: Todo o comerciante é obrigado a ter escrituração mercantil efetuada de acordo com a lei.

 

21. Boa parte das matérias inicialmente reguladas no CCom vigente já não se encontra nele. Assim, logo em 1899, foi aprovado, com base numa lei de 1896, um Código das Falências, revogando-se o regime constante do livro IV. Posteriormente, a matéria foi integrada no Código de Processo Comercial de 1905, houve um novo Código de Falências em 1935 e, em 1939, passou para o então aprovado Código de Processo Civil (que em 1961 deu lugar a um «novo» CPC, que vigorou, com alterações, até ao atual de 2013). Tivemos, ainda, um Código da Falência e da recuperação de empresas em 1993 (CREFal) e, atualmente, vigora o CIRE de 2004. Nesta evolução, salienta-se, inter alia, numa primeira fase, a extensão do processo de liquidação universal do património de devedores insolventes aos não comerciantes e, numa segunda fase, a criação de um instituto unitário, para comerciantes e não comerciantes, bem como a instituição de mecanismos de recuperação de empresas.

O instituto da insolvência civil, para não comerciantes, foi criado em 1932 (Dec. 21.758), depois integrado, juntamente com a falência, no CPC. Aplicavam-se-lhe subsidiariamente as regras da falência. Esta dualidade de processos manteve-se até ao CREFal de 1993.

A história da regulação da falência é a história de uma matéria em que os fins são difíceis de alcançar, ficando sempre a sensação de que o sistema instituído é insatisfatório. Daí as constantes intervenções legislativas (sete códigos desde o CCom de 1833, fora as alterações dos mesmos).

 

22. Ainda nos anos trinta do século XX, a matéria das letras, livranças e cheques passou a ser regulada na quase totalidade por duas Leis Uniformes - a LULL e a LUCh, aprovadas pelas Convenções de Genebra de 1930 e 1931, respetivamente. Entretanto, foi aprovado, igualmente, um regime extracambiário do cheque, sobretudo de índole administrativa e penal, mas que impõe também às IC sacadas, como regra, o pagamento de cheques constantes de módulos por si fornecidos, de valor até 150 euros, ainda que sem provisão bastante[xv]. [xvi]

O registo comercial (arts. 45ss) também se autonomizou e «generalizou». Presentemente, existe um Código dedicado ao assunto (CRCom de 1986) e um correspondente Regulamento, abrangendo situações jurídicas relativas não apenas aos comerciantes individuais (incluindo o EIRL) e às sociedades de direito comercial com objeto comercial, mas ainda a outras organizações produtivas: sociedades de direito mercantil com objeto civil, cooperativas, empresas públicas - mesmo não societárias (EPEs) -, ACEs e AEIEs, ainda que com objeto civil, etc. O que o configura como uma instituição essencialmente relativa à atividade e às organizações produtivas.

A partir dos anos setenta, a par do regime do Código dedicado à escrituração mercantil (arts. 29ss), passou a haver planos oficiais de contabilidade, aplicáveis a comerciantes e não comerciantes. Hoje, aplicam-se em Portugal as normas internacionais de contabilidade (NIC) e o sistema de normalização contabilística de 2009. Foi também instituído um sistema de revisão das contas (DL nº 1/72). Atualmente, o estatuto dos revisores oficiais de contas (ROCs) e da respetiva Ordem consta da Lei nº 140/2015. A Lei nº 148/2015 aprovou o Regime Jurídico da Supervisão de Auditoria.

Salvo se forem aplicadas as NIC, o SNC é aplicável às seguintes entidades (art. 3 do DL 158/2009[xvii]): i) sociedades do CSC e outras empresas públicas (EPEs); ii) ACEs e AEIEs; iii) EIRL e «empresas individuais do CCom»; iv) cooperativas e outras entidades do setor não lucrativo. Dentro do setor lucrativo, excetuam-se «as pessoas singulares que, exercendo a título individual qualquer atividade comercial, industrial ou agrícola, não realizem na média dos últimos três anos um volume de negócios líquido superior a € 200 000» (art. 10.1). De resto, o SNC tem aplicação diferenciada, designadamente, consoante se trate de microentidades, pequenas, médias ou grandes entidades.

Nos anos oitenta, o instituto da firma foi refundido, generalizando-se e passando a existir, portanto, firmas comerciais e firmas não comerciais. O regime do Código (arts. 19ss) foi substituído por um regime geral (hoje constante do DL nº 129/98), completado por disposições especiais relativas às sociedades e a diversas outras entidades.

Com a modernização do direito civil, operada pelo CC de 1966, a especificidade do regime mercantil de alguns contratos como a compra e venda esbateu-se. A associação em participação, regulada nos artigos 224 ss do CCom como uma forma de associação ao negócio de um comerciante, passou a ter um novo regime (DL 231/81, que aprovou igualmente um regime para o contrato de consórcio), de aplicação geral, a qualquer negócio ou atividade produtiva, mercantil ou não. Foi também regulado o contrato de agência (DL nº 178/86), fenómeno referido no artigo 230.3º do Código, mas sem necessária circunscrição às atividades mercantis, apesar de o contrato também se designar contrato de representação comercial. Diferentemente do que sucede com o aluguer (art. 481), o CCom não contempla o arrendamento comercial. Do Decreto 5411/1919, que regulava o assunto antes de a matéria ser incorporada no CC de 1966,  decorria, porém, a natureza mercantil (com correspondente sujeição à jurisdição comercial - art. 59) dos contratos de arrendamentos de locais destinados à instalação de estabelecimentos comerciais. O diploma tem também importância histórica porque, por um lado, veio regular aspetos do trespasse e da locação do estabelecimento comercial; por outro lado, representa uma proteção «avant la lettre» das PMEs (cfr. o art. 86.1 da CRP). Note-se, no entanto, que a categoria negocial justificativa de regime especial é a dos arrendamentos comerciais e industriais, que abarcam a indústria (atividade produtiva) civil[xviii]. Mais uma vez, portanto, o importante é a atividade económico-produtiva, não apenas, dentro dela, a atividade mercantil.

Embora se possa descortinar uma alusão ao contrato de empreitada no art. 230.6º do CCom, este Código não o regula. Quando da feitura do CC de 1966, o Prof. Galvão Telles deixou-o de fora do anteprojeto relativo aos contratos em especial, por entender que a matéria devia constar do CCom. Porém, prevaleceu a opinião de que o mesmo deveria ter assento no CC. À semelhança do que sucede no CCit, podem, no entanto, distinguir-se os contratos de empreitada que são negócios de empresa (comerciais, segundo o art. 230 do CCom) dos restantes, correspondentes ao mero exercício de uma profissão.

No setor dos transportes (arts. 230.7º, 366ss), o CCom apresenta outra lacuna de vulto: a regulação do transporte aéreo, inexistente à data da sua promulgação. Para além do novo regime do transporte marítimo, de mercadorias e passageiros, realça-se a nova disciplina do contrato de transporte rodoviário nacional de mercadorias (DL 239/2003).

No setor financeiro, surgiram no último quartel do século XX diversos diplomas. Salienta-se o regime dos contratos de locação financeira (leasing) e de factoring (hoje, DLs 149/95 e 171/95), bem como do certificado de depósito (DL 372/91), além do RGIC[xix].[xx] No setor dos seguros (arts. 425ss), realça-se o novo regime do contrato de seguro (DL nº 72/2008) e a correspondente possibilidade de configurar a apólice como título à ordem (art. 38).

A partir dos anos oitenta, o direito marítimo tem vindo a ser modernizado, havendo sido publicados vários diplomas legais que substituíram o correspondente regime do Código. Em grande medida, trata-se de novos regimes contratuais e do conhecimento de carga: contrato de transporte de mercadorias por mar (DL 352/86) e contrato de transporte de passageiros por mar (DL 349/86), contrato de fretamento (DL 191/87), contrato de reboque (DL 431/86, este regulando matéria nova). Mas não só: o DL 201/98, por exemplo, define o novo estatuto legal do navio e o DL 203/98 regula a salvação marítima.

 

23. Ainda na área financeira, a matéria das bolsas e da corretagem foi objeto de nova regulamentação. Salientam-se o DL nº 8/74 e, posteriormente, o CMVM de 1991. Presentemente, o diploma fundamental é o Código dos Valores Mobiliários de 1999 (CVM), que contém um regime geral dos valores mobiliários (arts. 39ss) e do mercado de instrumentos financeiros, incluindo, designadamente, ofertas públicas de VM (arts. 108ss), formas organizadas de negociação de IF (arts. 198ss) e a intermediação financeira (arts. 289ss). No que se refere à corretagem, verificou-se uma mudança de paradigma: de um «ofício pessoal, público e viril» de nomeação pública (art. 64 CCom, arts. 94ss do DL 8/74), com posterior possibilidade de constituição de SNC e SCS (art. 92 do DL 8/74), passou-se à imposição da sociedade anónima como forma organizativa (DL 262/2001).

As bolsas também deixaram de ser estabelecimentos públicos sujeitos a autorização governamental (cfr. os arts. 82 e 83 do CCom) e assistiu-se a partir de finais do século XX a um movimento de integração internacional. Atualmente, a Euronext Lisbon é uma sociedade anónima, integrada na rede europeia Euronext (com um a holding de cúpula de direito holandês).

 

24. Grandes alterações ocorreram também no exercício associativo da liberdade de empresa. Com efeito, como se assinalou, logo em 1901 foi acrescentado aos tipos societários do CCom (SNC, SCS, SA e SCA) um novo tipo social de responsabilidade limitada - a sociedade por quotas. Contrariamente ao disposto no artigo 4 da Lei de aprovação do Código, isso ocorreu através de uma lei avulsa, não através da alteração do Código. Seguiram-se diversos diplomas reguladores de certos aspetos do direito das sociedades (e dos valores mobiliários por estas emitidos), em que se salienta o DL 49.381/1969 (regime jurídico de fiscalização das sociedades anónimas).

Em 1980, deu-se uma alteração de vulto, quer em termos formais quer em termos substanciais: o regime das sociedades cooperativas (arts. 207ss) foi revogado e, no seu lugar, foi promulgado o primeiro Código Cooperativo. As cooperativas deixaram de se classificar como sociedades (de capital variável), formando entidades associativas autónomas, sujeitas a uma lógica e regras próprias. O Código vigente data de 2015[xxi].

Em 1986, foi revogado o regime das sociedades constante dos artigos 104 a 206, bem como a LSQ de 1901 e regimes societários parcelares entretanto aprovados, surgindo no seu lugar o CSC, atualmente o principal diploma do direito associativo privado nacional[xxii]. Este Código foi objeto de numerosas alterações posteriores. Salientam-se duas: em 1996, foi introduzido um novo tipo (ou sub-tipo) societário - a SuQ (arts. 270-A a G); em 2006/2007, procedeu-se a uma reforma abrangente, orientada por duas ideias-força - a simplificação de formas e procedimentos (nem sempre criteriosa, donde resultam nalguns casos normas e regimes dificilmente compreensíveis ou justificáveis, como sucede com o registo das quotas, que além de inutilmente complexo e dificilmente exequível para a generalidade das SQ nacionais perdeu o controlo da legalidade que sempre tivera, e o regime da redução do capital) e a melhoria dos sistemas de governança societária. Note-se, ainda, que o CSC se ocupou da matéria das sociedades coligadas e, dentro destas, contém um significativo regime dos grupos societários, embora o conceito restrito destes limite a sua importância prática e deixe em aberto o problema regulatório dos chamados «grupos de facto», assentes em relações de domínio não total (simples ou qualificado).

Além disso, para as sociedades abertas, existe um grupo significativo de normas no CVM (arts. 13ss). Diversos diplomas setoriais regulam também certos aspetos das sociedades mercantis (RGIC, RJAS[xxiii], etc.). O próprio CIRE contém normas relativas a estas (cfr. sobretudo o art. 198). O mesmo sucede com o Regime jurídico do setor público empresarial (RJSPE)[xxiv]. Note-se que as sociedades por quotas e anónimas com controlo público são as formas mais comuns de empresa pública (cfr. os arts. 5 e 13).

Recentemente, com implicação direta no direito das sociedades e no funcionamento destas, houve uma dupla alteração de fundo: impôs-se a nominatividade das ações e outros valores mobiliários, proibindo a emissão de novos valores ao portador e impondo a conversão dos existentes (Lei nº 15/2017) e, sobretudo, foi aprovado o Regime Jurídico do Registo Central do Beneficiário Efetivo, transpondo parcialmente a Diretiva (UE) 2015/849. A respetiva Lei impõe uma clara identificação das pessoas singulares detentoras, direta ou indiretamente, de participações sociais e do controlo efetivo da sociedade, devendo as sociedades manter um registo atualizado dos respetivos beneficiários efetivos e tendo os sócios obrigações declarativas com vista a esse fim.

 

25. A partir de anteprojeto elaborado por dois eminentes comercialistas, Ferrer Correia e Vasco Lobo Xavier, o CC de 1966 modernizou o regime geral das sociedades (arts. 980ss); e, na sequência disso, em 1977, houve também uma revisão do regime das sociedades mercantis de pessoas (SNC e SCS). Uma das novidades fundamentais consistiu em desvincular a perduração da sociedade das contingências relativas ao respetivo substrato ou elemento pessoal (sócios), fazendo desaparecer certas causas de dissolução e, desse modo, reforçando o seu caráter de entidades associativas de membros variáveis, expansíveis e redutíveis, à semelhança das SQ e SA[xxv].  

O atual artigo 980 do CC caracteriza a sociedade, em geral, como uma associação de duas ou mais pessoas, fundada num contrato, que se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício em comum de certa atividade económica não de mera fruição (atividade produtiva lato sensu), a fim de repartirem os lucros resultantes dessa atividade.  No domínio do CCom e da LSQ e 1901, discutiu-se se este fim lucrativo era também uma característica das sociedades de direito mercantil. O Professor Ferrer Correia defendia que não. Entretanto, o problema prático foi minorado, através da criação de uma estrutura económico-associativa complementar das estruturas básicas, mormente sociedades - o agrupamento complementar de empresas (ACE)[xxvi]. Posteriormente, acrescentou-se, a nível europeu, uma forma associativa semelhante - o agrupamento europeu de interesse económico (AEIE)[xxvii]. Ainda no plano europeu, importa referir a sociedade anónima europeia (societas europaea - SE)[xxviii] e um vasto programa de harmonização das legislações dos Estados-Membros, através de diversas diretivas.

Importa referir, ainda, a regulação em 1972 das sociedades gestoras de carteiras de títulos, categoria que compreendia as sociedades de controlo, tendo como objeto estatutário exclusivo a gestão de participações noutras sociedades como forma indireta de exercício de atividades comerciais ou industriais, as sociedades de investimento e as sociedades de aplicação de capitais[xxix]. Atualmente, o panorama regulatório encontra-se substancialmente alterado. Mas subsiste um regime especial para as SGPS[xxx].

À semelhança do que já se previa no artigo 106 do CCom, o artigo 1.4 do CSC admite - a par das sociedades comerciais puras (com objeto comercial, no todo ou em parte - art. 1.2) - a constituição de sociedades de direito mercantil, reguladas por este código, com objeto exclusivamente civil, tradicionalmente chamadas sociedades civis sob forma comercial[xxxi]. Isto significa que as sociedades comerciais em sentido lato são todas estas sociedades de direito comercial, reguladas pelo CSC, compreendendo as sociedades comerciais puras (com forma e objeto mercantis) e as sociedades comerciais com objeto puramente civil. O legislador utiliza frequentemente este conceito lato de sociedade comercial[xxxii].

Com ligação estreita à atividade e às sociedades mercantis, previu-se no estatuto dos ROCs de 1972 a existência de sociedades civis de revisores (SROC)[xxxiii]. Dispunha-se expressamente que as mesmas não poderiam constituir-se sob forma comercial (art. 59.1). Nesta matéria como na das profissões liberais em geral, ocorreu, no entanto, uma evolução. Hoje, a regra é a de que as sociedades de profissionais liberais podem constituir-se como sociedades de direito mercantil - mormente sob a forma de sociedades por quotas e anónimas - mesmo quando sujeitas a associações públicas profissionais como as conhecidas ordens dos médicos, arquitetos, etc. Dispõe-se no artigo 4 da Lei[xxxiv]: «1 - As sociedades de profissionais podem ser sociedades civis ou assumir qualquer forma jurídica societária admissível segundo a lei comercial, salvo o disposto no número seguinte. 2 - As sociedades de profissionais não podem constituir-se enquanto sociedades anónimas europeias. 3 - No que a presente lei não dispuser, são aplicáveis às sociedades de profissionais as normas da lei civil ou da lei comercial, consoante se trate de uma sociedade de profissionais sob a forma civil ou de uma sociedade de profissionais sob a forma comercial, respetivamente. 4 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, são aplicáveis às sociedades de profissionais que se constituam enquanto sociedades unipessoais por quotas as disposições da presente lei compatíveis com a sua natureza.» A grande especificidade das sociedades profissionais (ou sociedades de profissionais, como a lei lhes chama) reside na circunstância de os respetivos sócios (profissionais) se obrigarem - a título principal, não acessório - a exercer a sua profissão no quadro da sociedade, enquanto sócios [o que constitui uma obrigação social de indústria, embora a lei não a qualifique como entrada; cfr. os arts. 3e) e 11.3 da Lei], mesmo tratando-se de sociedades por quotas ou anónimas, cujo regime geral proíbe as entradas de indústria (arts. 202.1 e 277.1)[xxxv].

 

26. O comerciante, com os instrumentos da respetiva atividade mercantil, é, historicamente, a figura central do direito comercial. Isto é assim mesmo nos códigos de base objetivista. Diferentemente do que sucede atualmente - em que o tecido produtivo é constituído essencialmente por sociedades por quotas e anónimas, muitas delas funcionando em rede ou em «grupo» -, quando o CCom foi elaborado a profissão do comércio ainda era exercida sobretudo por pessoas singulares, individualmente (comerciante singular) ou de forma associada (SNC, SCS), com responsabilidade pessoal e ilimitada pelas dívidas contraídas (salvo quanto aos capitalistas sócios comanditários). Daí a importância do regime das respetivas dívidas, em especial quando o comerciante era casado num regime de comunhão de bens, e também do tema da capacidade da mulher casada, que apresentava então limitações (art. 16 do CCom).

Para além da assinalada alteração sócio-económica (recuo da importância do comerciante singular), ocorreram entretanto modificações jurídicas significativas de duas ordens. Primeira. Em 1977, o exercício do comércio por qualquer dos cônjuges passou a ser livre, não dependendo agora do consentimento do outro cônjuge (novo art. 1677-D do CC[xxxvi]), e o artigo 1691.1d) do CC passou a dispor que são da responsabilidade de ambos os cônjuges (respondendo por elas o património comum do casal e subsidiariamente os respetivos patrimónios pessoais - art. 1695.1): «As dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges no exercício do comércio, salvo se se provar que não foram contraídas em proveito comum do casal ou se vigorar entre os cônjuges o regime de separação de bens». Correspondentemente, o artigo 15 do CCom (que presumia o proveito comum do casal em relação às dívidas contraídas pelo marido comerciante) passou a ter a seguinte redação: «As dívidas comerciais do cônjuge comerciante presumem-se contraídas no exercício do seu comércio». Existe aqui, portanto, uma cadeia de presunções: as dívidas comerciais do cônjuge comerciante presumem-se relativas ao exercício do seu comércio e não à sua esfera civil (art. 15 CCom) e, vigorando entre os cônjuges um regime de comunhão de bens, estas presumem-se contraídas em proveito comum do casal.

Não é claro, no entanto, que, em face do artigo 2 II, este artigo 15 traga algo de novo. Tudo depende da interpretação (ampla ou restrita) que se dê a esse artigo 2 II.

Segunda alteração. Em 1986, o comerciante individual passou a poder exercer a profissão no quadro de uma estrutura formal - o EIRL -, limitando desse modo a sua responsabilidade patrimonial. Como se observou, a partir de 1996, passou a poder fazê-lo também de forma indireta, através de uma SuQ.

Ainda no que respeita às dívidas comerciais dos cônjuges - mais propriamente àquelas que, num regime de comunhão, são da responsabilidade de apenas um dos cônjuges (dívidas incomunicáveis) -, o artigo 10 do CCom gizava um esquema para tornar efetiva a execução do direito à meação do cônjuge devedor, que redundava numa prevalência dos interesses comerciais sobre os interesses da família. Por isso, mediante Assento de 1964, o STJ veio estabelecer que este artigo apenas se aplicaria, no caso mais significativo da compra e venda, ao cônjuge devedor se este contrato fosse mercantil em relação a ele. E exigia, ainda, para a sua aplicação, no caso das dívidas cambiárias (no domínio das relações imediatas), que estas fossem comerciais substancialmente.

Na prática, tal significava limitar grandemente a aplicação do preceito: esta ficava reservada sobretudo para os devedores comerciantes, quanto às dívidas relativas ao exercício do seu comércio. O Assento, mais tarde completado já noutro contexto normativo, por um segundo de 1978, tem interesse porque contraria a ideia de expandir o regime mercantil aos atos de comércio mistos acolhida no artigo 99 do Código; e, nessa medida, pode ser visto como «amigo do consumidor», numa altura em que o moderno direito de defesa deste não existia. Porém, em 1977, o legislador reagiu e, agora já em face da moratória então estabelecida no artigo 1696.1 do CC de 1966, veio afastar tal moratória mesmo em relação às dívidas comerciais apenas por parte do credor; o que está de acordo com a ideia expansionista do direito comercial presente na regra relativa aos atos de comércio mistos e com o princípio da tutela do credor. Finalmente, em 1995, o CC foi alterado, suprimindo-se a moratória em causa, pelo que o assunto perdeu interesse prático. O direito civil «comercializou-se».

Outra alteração relevante ocorreu relativamente aos juros. Na sua versão inicial, o artigo 102 dispunha que haveria lugar a juros nos atos comerciais se tal fosse convencionado «ou de direito» e nos casos especiais fixados no Código; sendo a taxa comercial supletiva de 5% aplicável salvo estipulação escrita de taxa diferente. Porém, em 1930, o CC de 1867 foi alterado passando a estabelecer uma taxa legal supletiva de juros de 6%, para as dívidas civis e comerciais, derrogando correspondentemente o preceito. Atualmente, o § 2 manda aplicar aos juros comerciais o disposto nos artigos 559º-A e 1146º do Código Civil (juros usurários).

Especialmente significativa foi, no entanto, uma alteração mais recente relativa aos juros moratórios. O atual artigo 102 dispõe nos §§ 3 a 5: (§ 3) «Os juros moratórios legais e os estabelecidos sem determinação de taxa ou quantitativo, relativamente aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais, singulares ou coletivas, são os fixados em portaria conjunta dos Ministros das Finanças e da Justiça»; (§ 4) «A taxa de juro referida no parágrafo anterior não poderá ser inferior ao valor da taxa de juro aplicada pelo Banco Central Europeu à sua mais recente operação principal de refinanciamento efetuada antes do 1.º dia de janeiro ou julho, consoante se esteja, respetivamente, no 1.º ou no 2.º semestre do ano civil, acrescida de sete pontos percentuais, sem prejuízo do disposto no parágrafo seguinte»; (§ 5) «No caso de transações comerciais sujeitas ao Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de maio, a taxa de juro referida no parágrafo terceiro não poderá ser inferior ao valor da taxa de juro aplicada pelo Banco Central Europeu à sua mais recente operação principal de refinanciamento efetuada antes do 1.º dia de janeiro ou julho, consoante se esteja, respetivamente, no 1.º ou no 2.º semestre do ano civil, acrescida de oito pontos percentuais.»[xxxvii]

Este regime dos §§ 3 e 4 suscita, no entanto, uma questão: para a sua aplicação, é necessário que sejam comerciais não apenas o crédito mas também a dívida? Ou seja, o ato ou negócio de onde esta provém deve ser comercial em relação ao devedor, não bastando que o seja em relação ao credor? O assunto será analisado a seu tempo. Para já, cabe referir apenas que a resposta afirmativa estará em consonância com a proteção do consumidor já detetada na jurisprudência que prevaleceu a respeito do artigo 10 do CCom, enquanto a resposta negativa está de acordo com o princípio histórico de proteção do credor, aqui especialmente relevante porque estamos a falar de juros de mora.

Num tempo em que a inflação era muito elevada e portanto compensava o não pagamento pontual das letras de câmbio, cuja Lei Uniforme consagra uma taxa de juros moratórios de 6%, o legislador interveio, concedendo ao portador de letra, livrança e cheque a faculdade de exigir juros legais (DL 262/83, art. 4). Apesar do caráter internacional da LULL, tal regime, pelo menos quando aplicado aos títulos nacionais, foi considerado conforme ao primado do direito internacional e portanto também à Constituição[xxxviii].

 

27. Ainda no que respeita ao comerciante, o artigo 14.1º proíbe o exercício da profissão às associações e corporações cujo objeto não consista na prossecução de interesses materiais (breviter, entidades de fim ideal ou desinteressado). O artigo 17 dispõe que o Estado, as autarquias e, ainda, as misericórdias e outras instituições de beneficência não podem ser comerciantes mas podem praticar atos de comércio, ficando quanto a eles sujeitos às disposições do Código.

Acerca das associações e fundações em geral, importa assinalar que, nos termos do artigo 14 da Constituição de 1976, as pessoas coletivas gozam os direitos e estão sujeitas aos deveres (fundamentais) compatíveis com a sua natureza, ou seja: seguramente, i) com ressalva dos que sejam inseparáveis da pessoa singular; discutivelmente, ii) dentro dos demais limites da respetiva capacidade jurídica tal como definida pela lei ordinária. O artigo 160 do CC determina que a capacidade as pessoas coletivas abrange todos os direitos e obrigações necessários ou convenientes à prossecução dos seus fins (nº 1), com ressalva dos que sejam inseparáveis da pessoa singular e dos que sejam vedados por lei (nº 2).

Conjugando a parte final deste preceito com o artigo 14.1º do CCom, temos duas leituras possíveis. Primeira: as associações e fundações não têm capacidade profissional para serem comerciantes, ou seja, não podem ter esta qualidade e o correspondente estatuto jurídico. Se exercerem de forma significativa e habitual o comércio, estarão a atuar fora da sua capacidade de gozo, convertendo-se em associações ou fundações irregulares, porventura sujeitas a liquidação forçada[xxxix], e não podem invocar a qualidade de comerciantes. Pode discutir-se se lhes é oponível esta qualidade de «comerciante aparente». Tal interpretação está também em consonância com o art. 13, numa leitura apertada do nº 1º. Segunda leitura: as associações e fundações têm capacidade para ser comerciantes (rechtliches Können), mas estão proibidas de exercer o comércio, não estão autorizadas a fazê-lo (rechtliches Dürfen). Se o fizerem, estão a prosseguir um objeto contra legem, de forma ilícita, como se fossem sociedades mercantis, tornando-se «comerciantes irregulares», o que justifica a sua liquidação forçada. É pelo menos discutível que possam invocar a qualidade de comerciantes, ainda que ela lhes possa ser oposta.

 No que toca ao Estado e autarquias locais - hoje, também regiões autónomas - vigorava ao tempo da feitura do Código o princípio constitucional da subsidiariedade da iniciativa económica pública: o Estado e as autarquias apenas deveriam suprir, quanto ao fornecimento de bens ou serviços, as lacunas da iniciativa privada. Embora o assunto não seja pacífico, em face da atual Constituição, existe liberdade de iniciativa pública empresarial [art. 80b) e c)], em pé de igualdade com a iniciativa privada [arts. 61.1 e 80c)]. Porém, tornou-se praticamente exceção o exercício direto de uma atividade produtiva pelo Estado ou as autarquias. Para esse efeito, existe um setor empresarial público, constituído por entidades (empresas públicas) juridicamente distintas e com um regime jurídico próprio (RJSPE)[xl]. Note-se, aliás, que um dos atos de comércio autorizados pelo CCom é o contrato de sociedade. Subsiste, em todo o caso, quando há o exercício direto, a norma do artigo 17: tal não leva à qualificação do Estado ou da autarquia em causa como comerciantes (estes não têm tal capacidade profissional) e portanto também não se lhes aplica o estatuto jurídico do comerciante.

As misericórdias e demais instituições de beneficência pertencem hoje ao setor (cooperativo e) social de propriedade dos meios de produção (art. 82.4 da CRP). A possibilidade de participação em sociedades, como forma de melhorar as condições de realização dos seus fins, decorre do próprio preceito.

As associações privadas - de fim ideal ou imaterial, mas também de fim interessado, como as associações profissionais (sindicatos e associações empresariais) - podem,  no entanto, dentro da respetiva capacidade jurídica: i) desenvolver internamente atividades que, em ambiente de mercado, seriam mercantis, para melhor prosseguirem os seus fins (uma associação desportiva ou recreativa pode ter, por exemplo, um serviço de bar ou restaurante para os associados); ii) apesar do teor literal do preceito (quando confrontado com o artigo 17), à semelhança do Estado e autarquias, podem participar em sociedades mercantis e até deter SuQs para melhor prosseguirem ou financiarem os seus fins (cfr., aliás, o art. 61.1 da CRP); iii) autorizar terceiros a, em espaços seus, exercerem uma atividade mercantil (máxime, exploração de cantinas, bares, restaurantes, papelarias ou livrarias).

As associações desportivas merecem análise à parte, mormente em face da progressiva profissionalização  e autonomização jurídica do exercício de certas modalidades desportivas, que se transformaram num negócio (verdadeiras empresas de espetáculos públicos - cfr. o art. 230.4.º do CCom - organizadas sob a forma de SADs). Deixa-se a mesma para outra ocasião.

 

28. O comércio (cfr. os arts. 1, 2 e 13.1º) pode entender-se genericamente como um conjunto de transações de mercado, centrado na troca onerosa de bens e serviços. Neste sentido lato, compreende tanto os negócios inseridos no exercício de uma atividade económico-produtiva (comércio profissional), como negócios isolados (comércio ocasional). O Código, na linha do Code de commerce, adota esta perspetiva alargada: i)  reconhecendo a qualquer pessoa, singular ou coletiva, a faculdade de celebrar contratos (por exemplo, uma compra e venda ou um contrato de sociedade mercantil) ou praticar outros atos de comércio (por exemplo, apor o seu aceite ou aval numa letra de câmbio), sem que tais atos ou contratos se integrem ou estejam conexos com uma atividade mercantil da pessoa em causa (art. 1); ii) e reconhecendo às pessoas em geral - mas com limitações - o direito de acesso à profissão de comerciante (arts. 13s, 16 e 17).

Porém, o comércio também pode entender-se, mais restritamente, como um conjunto de atividades económico-produtivas - levadas a cabo por atores profissionais, singulares ou coletivos, num dado espaço geográfico e em ambiente de mercado, atores esses cuja ação é coordenada por este - com os respetivos negócios. É o exercício de tais atividades ou a circunstância de o mesmo constituir o objeto estatutário de certas entidades que leva à qualificação de quem o leva a cabo ou se propõe levá-lo a cabo como comerciante (arts. 13 e 230). Mercado é, neste sentido, um local ideal de interação comunicativa (cfr. Orlando de Carvalho).

Visto o Código a esta luz, nele podem identificar-se dois grupos de atividades mercantis: i) as correspondentes a certos contratos especialmente regulados e/ou qualificados como comerciais: atividade bancária (art. 362), de intermediação nas trocas (arts. 463ss, 480), de aluguer (art. 481), de construção naval (art. 489), etc., formando uma espécie de categoria histórica (conjunto de atividades que historicamente foram desenvolvidas pelos comerciantes, até à época da codificação); e, adicionalmente, ii) as atividades «empresariais» identificadas no artigo 230 - ou seja, as novas atividades produtivas que ao tempo da feitura do Código (1888) o legislador considerou equiparáveis às anteriores, merecendo por isso integrar a profissão de comerciante, com o estatuto jurídico respetivo: indústria transformadora, editorial, de construção civil, de espetáculos públicos, etc. Mas também este segundo grupo constitui uma categoria histórica: abarca as atividades que no último quartel do século XIX mereceram ao legislador a assimilação ao comércio tradicional[xli].

Isto levanta um problema porque o direito comercial é, na realidade, o direito geral da atividade económico-produtiva (faltando no direito civil um corpo de normas e instituições correspondente) e esta é uma realidade dinâmica: desde 1888, novas atividades surgiram e algumas atividades não elencadas adquiriram uma relevância sócio-económica que nessa altura não possuíam ou passaram a ser exercidas de modo mais «empresarial». Dito de outra forma: se o elenco das atividades identificáveis no Código fosse fechado, este diploma legal já teria provavelmente nascido desatualizado. Como se verá, este é um dos problemas fundamentais a resolver neste curso.

 

29. Termina-se esta breve introdução com uma referência à Constituição e a alguns países lusófonos, bem como às situações plurilocalizadas. A CRP consagra a liberdade de iniciativa económica privada como liberdade fundamental - nuclearmente análoga aos direitos, liberdades e garantias (cfr. o art. 17) - no artigo 61.1, a par da iniciativa cooperativa (arts. 61.2-4) e autogestionária (art. 61.5). Tal liberdade é, no fundo, a liberdade de empresa dos particulares institucionalmente reconhecida, juntamente com a liberdade de empresa pública, no artigo 80c) e com outros afloramentos, por exemplo no artigo 86. Contrapõe-se à liberdade profissional autónoma do artigo 47.1, também ela uma liberdade económico-produtiva, mas em que sobreleva a respetiva dimensão pessoal e, por isso, integra aquele grupo dos direitos, liberdades e garantias (e o subgrupo daqueles que têm caráter pessoal).

Tal liberdade de empresa constitui uma componente fundamental do modelo sócio-económico consagrado na Lei fundamental - um modelo democraticamente aberto de economia mista e social de mercado regulada (arts. 2, 9, 53ss, 80ss)[xlii]. Trata-se de uma liberdade, por natureza, de exercício concorrencial, dada a natural pluralidade de iniciativas. Mas não basta este dado naturalístico: o seu exercício concorrencial faz parte das regras do jogo que têm que ser observadas. Especificamente, a Constituição determina que a concorrência - enquanto mecanismo promotor do desenvolvimento económico e social (utilidade social) - deve ser efetiva, livre de restrições artificiais [arts. 81f) e 99c)], e equilibrada ou salutar [arts. 81f) e a)], ou seja, não falseada e dotada de verdadeira utilidade social.

A liberdade de empresa pode ser exercida individualmente ou de forma associada, no quadro de estruturas jurídicas formais ou, residualmente, de modo informal. Tem implicadas, portanto, a existência de organizações produtivas e a respetiva liberdade de organização [cfr. o art. 80c)], incluindo a liberdade de associação. Por razões de boa estruturação e funcionalidade do sistema sócio-económico, existe, no entanto, um princípio de tipicidade das formas associativas mercantis, expresso, a respeito das sociedades, no artigo 1.3 do CSC. Embora o seu significado prático esteja em parte enfraquecido pelo reconhecimento atual da coligação de sociedades e, em especial, da empresa plurissocietária, mantém a sua vigência.

A empresa, sendo uma organização criadora de valor, constitui uma «coisa produtiva». Nessa medida, é um bem jurídico fundamental, constitucionalmente protegido (cfr., em geral, os arts. 62 e 83 e o art. 82). Note-se que a liberdade de empresa postula o aproveitamento e a tendencial apropriação dos resultados da atividade empresarial; e que a empresa, enquanto organização produtiva, é também um desses resultados, um resultado de formação sucessiva e continuada, fruto do génio empreendedor dos promotores e de um investimento permanente, direito e indireto, em tempo, esforço, capital e conhecimento.

Neste contexto, faz sentido ver o direito comercial como o direito privado fundamental da atividade produtiva com relevância para a estruturação de um sistema sócio-económico funcionante; noutros termos, o ramo do direito com vocação para estabelecer o regime fundamental do exercício da liberdade de empresa. Acima de tudo, após a modernização do direito civil dos contratos, é o direito das principais organizações produtivas - empresas e estruturas jurídicas da empresa - e respetivos atores jurídico-económicos (empresários mercantis).

Tendo em conta a sua evolução histórica, legal e doutrinal, pode, ainda, ser encarado, mais latamente, como uma área do direito que engloba o direito dos títulos de crédito e instrumentos financeiros, o direito comum da concorrência (concorrência desleal) e do mercado, mormente os mercados financeiros, e o próprio direito industrial; apesar da existência de diferentes corpos normativos. O ponto de contacto é a atividade produtiva; já o tendo sido também os tribunais de comércio. Há mesmo quem acrescente o direito (de defesa) da concorrência, que é conveniente ser visto em articulação com o direito da concorrência desleal (este relativo à qualidade da concorrência: Koppensteiner, 2017).

 

30. Já se aludiu à parcial unificação do direito privado brasileiro com o CC de 2002. Merece ainda menção especial o que se segue. Em primeiro lugar, cabe assinalar o Código das Empresas Comerciais de Cabo Verde (1999), que, além da matéria societária (livro II), contempla ainda, designadamente, a matéria do estabelecimento comercial, das empresas comerciais (compreendendo o estatuto do empresário mercantil) e da cooperação empresarial (livro I). Em segundo lugar, destaca-se o Código Comercial de Macau (1999), com 4 livros: o primeiro dedicado à empresa e ao exercício da empresa em geral; o segundo às sociedades comerciais e formas de cooperação empresarial; o terceiro relativo às obrigações comerciais e aos contratos (com regulação de um grande número deles); e o quarto respeitante aos títulos de crédito, em geral e em especial. Moçambique possui também um novo Código Comercial (2005). À semelhança do de Macau, divide-se em 4 livros: o primeiro, dedicado ao «exercício da empresa comercial»; o segundo, relativo às sociedades; o terceiro, aos contratos e obrigações mercantis; e o quarto aos títulos de crédito. Angola atualizou parcialmente o Código Comercial (Lei 6/03) e promulgou uma Lei das Sociedades Comerciais (Lei 1/04), bem como, designadamente, uma lei sobre contratos de distribuição (2003). Também Timor-Leste aprovou uma nova Lei das Sociedades Comerciais (2004).

Justifica-se uma breve nota sobre Angola e Moçambique. No primeiro caso, a grande reforma ocorreu no direito das sociedades, objeto de nova lei. De resto, o CCom foi objeto de uma atualização limitada. Designadamente, no artigo 2, qualificam-se como atos de comércio os regulados «na presente lei e demais legislação complementar»; no artigo 13, acrescentou-se o nº 3.º, de modo a incluir nos comerciantes os «sujeitos dotados de personalidade jurídica quando exercerem uma atividade mercantil»; e foi completada a lista das empresas comerciais do artigo 230, acrescentando: a intermediação nas trocas, através de compras e vendas mercantis; o fornecimento de bens e a prestação de serviços a terceiros, incluindo, entre outros, a hotelaria e restauração, as agências de viagens e turismo, a saúde, a educação, o entretenimento e a segurança; a atividade bancária e financeira; a mediação de seguros e imobiliária; a indústria da pesca (captura e transformação de pescado); a indústria extrativa, incluindo a exploração de pedreiras; a atividade de operador portuário; e a atividade de execução de empreitadas de obras públicas. O regime dos artigos 10 e 15 é semelhante ao português (embora, quanto ao primeiro, caiba recordar a extinção, em 1995, da moratória do artigo 1696.1 do CC). Os comerciantes beneficiam de uma taxa de juros moratórios majorada (art. 102 § 3º).

A lei que aprovou o Código Comercial de Moçambique (DL nº 2/2005) revogou o CCom então vigente, com exceção da matéria das cooperativas (arts. 207ss) e do comércio marítimo (livro III). Embora tenha esta designação e, segundo o artigo 1 regule «a atividade dos empresários comerciais, bem como os atos considerados comerciais», na realidade, estamos perante um Código das empresas comerciais, respetivos empresários e negócios de empresa, bem como de instrumentos tipicamente empresariais, como são os títulos de crédito. As sociedades de direito comercial, enquanto pessoas jurídicas, são qualificadas como empresários mercantis, mesmo tendo objeto civil (art. 2). Por isso, neste caso, a lei de aprovação deu um prazo para os interessados poderem cancelar, querendo, o registo comercial e alterar a firma, suprimindo a alusão à forma comercial, de modo a evitar a aplicação do novo regime (art. 5). Para o exercício de uma empresa comercial, as formas societárias mercantis são obrigatórias (art. 82).

As empresas comerciais correspondem à generalidade das organizações produtivas. Com efeito, o artigo 3 define empresa comercial como «toda a organização de fatores de produção para o exercício de uma atividade económica destinada à produção, para a troca sistemática e vantajosa, designadamente: a) da atividade industrial dirigida à produção de bens ou serviços; b) da atividade de intermediação na circulação de bens; c) da atividade agrícola e piscatória; d) das atividades bancária e seguradora; e e) das atividades auxiliares das precedentes»; - com exceção das organizações que levem a cabo uma «atividade económica que não seja autonomizável do sujeito que a exerce».

Quanto aos atos de comércio, dispõe o artigo 4 que são considerados como tais os «praticados no exercício de uma empresa comercial» e os «especialmente regulados na lei em atenção às necessidades da empresa comercial, designadamente os previstos neste Código, e os atos análogos» (nº 1). Acrescenta-se, ainda: «os atos praticados por um empresário comercial consideram-se tê-lo sido no exercício da respetiva empresa, se deles e das circunstâncias que rodearam a sua prática não resultar o contrário» (nº 2).

No que respeita às obrigações mercantis, realçam-se: os princípios da solidariedade (art. 461; cfr. o art. 462, relativo à fiança), da onerosidade (art. 464) e do favorecimento dos créditos mercantis mediante o estabelecimento de uma taxa de juros moratórios agravada em 2% (art. 463).

No que se refere ao CC brasileiro, realça-se a inclusão no mesmo de um regime geral dos títulos de crédito (arts. 887ss), e um livro II sobre a empresa (arts. 966ss), que inclui regras sobre o estabelecimento (arts. 1142ss). É clara a inspiração italiana. O debate sobre a unificação do direito privado não terminou, porém, subsistindo sobretudo em torno de um projeto de novo Código comercial apresentado em 2011.

No CECom de Cabo Verde, constam as seguintes noções de empresa e de estabelecimento mercantil: «Constitui a empresa a organização de fatores humanos, materiais e jurídicos, destinada ao exercício profissional, pelo empresário seu titular, de uma atividade económica com o objetivo de produção ou troca de bens ou de serviços» (art. 1.2); «O estabelecimento comercial é o bem jurídico constituído pelo conjunto de fatores produtivos organizado por um empresário comercial para a prática de atos do comércio, no âmbito do exercício profissional de uma atividade comercial» (art. 3)[xliii]. «São empresas comerciais as que têm por objeto a prática de atos de comércio, no exercício de atividades comerciais, como tais definidas na lei comercial». «São empresários comerciais, também designados por comerciantes: a) As pessoas que praticam atos de comércio de forma profissional, mediante a organização de uma empresa comercial e o exercício da respetiva atividade; b) As sociedades comerciais» (art. 76). «Sociedade comercial é a empresa constituída por duas ou mais pessoas que si obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício de uma atividade comercial, a fim de obterem e repartirem os lucros resultantes dessa atividade» (art. 104.1). «Nos casos expressamente previstos neste código, a sociedade comercial poderá ser constituída por um único sócio» (art. 104.2). No preâmbulo, esclarece-se que a comercialidade se define pelo CCom de 1888, excluindo-se, em conformidade, as atividades agrícolas e artesanais e as profissões liberais (ponto 2.7).

 

31. Grande parte das situações jurídico-mercantis apresenta elementos de conexão com outras ordens jurídicas ou respeita mesmo ao tráfico internacional e intracomunitário de bens e serviços. Isso significa a existência de numerosas convenções e tratados internacionais potencialmente aplicáveis, bem como de diversos instrumentos normativos e institucionais da União Europeia, falando-se inclusive de uma lex mercatoria essencialmente assente em usos e práticas do comércio internacional, boa parte compilados, como sucede com as Regras e Usos Uniformes relativos aos Créditos Documentários e os Incoterms (International Commercial Terms). Significa, ainda, a existência de normas de conflitos, igualmente de fonte interna, mercantil (cfr., por ex., o art. 3 do CSC) e civil (cfr. os arts. 25ss do CC), internacional (por ex., convenções de Genebra relativas a letras e livranças e aos cheques) e da União Europeia (v.g., Regulamentos Roma I e II, aplicáveis às obrigações, contratuais e extracontratuais)[xliv].

Salientam-se também a ocorrida expansão da arbitragem comercial internacional e, tanto no plano internacional como interno, o fenómeno das cláusulas contratuais gerais de grandes organizações produtivas - que cumprem um papel de certo modo equiparável ao de verdadeiros «regulamentos privados», com a inerente limitação da igualdade e da liberdade contratuais das contrapartes (mais fracas) – e a proliferação de códigos de conduta, disciplinadores da atividade produtiva. Num certo retorno às formas privadas de formação do direito mercantil.

 

32. Termina-se esta breve introdução com uma ideia chave: o direito comercial é, no essencial, o direito da atividade económico-produtiva de mercado relevante para a existência de um sistema produtivo capaz de promover o desenvolvimento económico e social, de modo a atingir uma sociedade de bem estar. Nuclearmente é, assim, o direito das organizações produtivas que levam a cabo tal atividade - empresas (mercantis) -, dos respetivos sujeitos (comerciantes-empresários) e estruturas jurídicas, dos correspondentes negócios de empresa e de outros instrumentos de exercício da mesma atividade; corresponde ao exercício da liberdade de empresa. As empresas são organizações produtivas de mercado: centros de atividade concorrencialmente (i) implantados no sistema de interação comunicativa que este mercado constitui (que nele detêm uma posição sujeita a uma lógica concorrencial) e que (ii) nele atuam, de modo a explorarem, concorrencialmente, uma parte das oportunidades de ganho que este encerra. A ponte entre a empresa e os demais participantes no mercado é feita, designadamente, através de certos veículos de individualização, comunicação e acreditação - os sinais distintivos, em que avultam a firma, para as transações pessoais e formais, o logótipo e a marca.

De fora fica a atividade produtiva levada a cabo de forma não empresarial (máxime, profissões manuais e liberais que não adotem uma forma societária mercantil), na realidade uma atividade produtiva residual, situada nas margens do sistema produtivo, ainda que com importância crescente no que respeita às profissões liberais. Tradicionalmente, a atividade agrícola também tem sido deixada de fora, mesmo quando empresarializada, salvo na medida em que forem (voluntariamente) adotadas as formas societárias mercantis. Trata-se, no entanto, de aspeto a ponderar melhor (cfr. sobretudo o exemplo moçambicano). 

 

 



[i] Texto de caráter didático, destinado a servir como apoio às aulas de direito comercial na Escola de Lisboa da Faculdade de Direito da UCP (ano letivo 2017-2018). Não dispensa a consulta de obras de história deste ramo do direito e, pelo menos, de um dos manuais indicados na bibliografia da disciplina.

Comentários são bem vindos.

[ii] Do latim commercium, significando literalmente, segundo alguns, commutare (permutar, trocar) merces (mercadorias); mais restritamente, atividade de comprar para revender e revenda de produtos comprados para esse efeito (troca vantajosa ou negócio).

[iii] Pelo menos em fases mais evoluídas, os grandes mercadores também organizavam a produção de bens, formando redes de «artesãos».

[iv] Sobre toda esta matéria, cfr., por exemplo, Menezes Cordeiro (2016), § 2, p. 47ss, com mais indicações.

[v] Note-se que o CC de 1867 apenas regulava o trabalho assalariado nos arts. 1391ss como trabalho relativo a certo serviço com duração limitada, remunerado ao dia ou hora, enquanto o artigo 1 da Lei nº 1952/1937, mais próximo de situações típicas do CCom, já definia o contrato de trabalho como aquele pelo qual uma pessoa, mediante remuneração, colocava à disposição de outra a sua atividade profissional.  Na Lei, previa-se também uma futura regulamentação especial do contrato de trabalho a bordo.

[vi] Sobre a mesma, pode ver-se, designadamente, o Comentário Conimbricence, de M. Lopes Porto et alii, Almedina, 2013. Existe, ainda, um controvertido Regime das práticas individuais restritivas do comércio (DL 166/2013), tendo como objetivo declarado a proteção das partes fracas da cadeia económica (máxime, grande distribuição alimentar), ou seja, os pequenos e médios produtores, e também, indiretamente, os consumidores. Sobre ele, cfr., por ex., Miguel Ferro, O novo RPIRC, AAFDL, Lisboa, 2014.

[vii] Em França, as ações nominativas conservaram sempre este caráter «escritural» ou desmaterializado, mesmo quando era emitido um documento comprovativo do registo. Diferentemente das ações ao portador, este era um mero documento probatório, não um título circulante.

[viii] O Unternehmensgesetzbuch austríaco (código comercial de 1897 reformado em 2005 e 2008) contém, por exemplo, a seguinte noção de empresa: Ein Unternehmen ist jede auf Dauer angelegte Organisation selbständiger wirtschaftlicher Tätigkeit, mag sie auch nicht auf Gewinn gerichtet sein [§ 1(2)].

[ix] Houve também um desenvolvimento do direito da propriedade intelectual stricto sensu (direito de autor).

[x] A partir da cláusula geral sobre responsabilidade civil constante do Código civil.

[xi] Livro V do CC, aprovado por lei federal de 1911 e objeto de diversas alterações posteriores.

[xii] Estes últimos, «instituídos» pela Lei n.º 35/86, de 4 de setembro.

[xiii] Lei de Organização do Sistema Judiciário (LOSJ - Lei nº 62/2013), regulamentada pelo DL nº 49/2014..

[xiv] Reaprovado com alterações por Lei de 13.05.1896.

[xv] DL 454/91, já com diversas alterações. Quanto a este último aspeto, a norma fundamental é a do artigo 8: 1 - A instituição de crédito sacada é obrigada a pagar, não obstante a falta ou insuficiência de provisão, qualquer cheque, emitido através de módulo por ela fornecido, de montante não superior a (euro) 150. 2 - O disposto neste artigo não se aplica quando a instituição sacada recusar justificadamente o pagamento do cheque por motivo diferente da falta ou insuficiência de provisão. 3 - Para efeitos do previsto no número anterior, constitui, nomeadamente, justificação de recusa de pagamento a existência de sérios indícios de falsificação, furto, abuso de confiança ou apropriação ilegítima do cheque.

[xvi] A par das letras, o legislador criou, com função semelhante, um outro título, o extrato de fatura (Dec. 19 490/1931), impondo a sua utilização quando das compras e vendas a prazo entre comerciantes, se não houvesse a emissão de uma letra.

[xvii] Alterado e republicado pelo DL 98/2015 (que transpõe a Diretiva 2013/34/UE).

[xviii] Cfr. EM, Sumários, p. 52ss, e evaristomendes.eu. Note-se também que existe uma atividade regulada de compara e edificação de casas para arrendar, que há diversos tipos de arrendamento, etc., tudo a merecer uma análise mais aprofundada do tema.

[xix] Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo DL 298/92, com numerosas e substanciais alterações. Uma versão consolidada pode consultar-se, por exemplo, no sítio do Banco de Portugal na Internet.

[xx] O regime dos contratos de garantia financeira (em especial, penhor financeiro e alienação fiduciária em garantia) (DL 105/2004), o regime jurídico da titularização de créditos (DL 453/99, alterado e republicado pelo Decreto-Lei n.º 303/2003), etc., são outras tantas matérias em que a inovação se fez sentir.

[xxi] Lei nº 119/2015, que revogou o Código anterior, de 1996.

[xxii] Como tal, com vocação para se aplicar, mutatis mutandis, em caso de lacuna, mesmo a entidades associativas de caráter civil; como historicamente sucedeu com o regime da falência.

[xxiii] Regime jurídico de acesso e exercício da atividade seguradora e resseguradora, aprovado pela Lei nº 147/2015.

[xxiv]Aprovado pelo DL n.º 133/2013, ao abrigo da autorização legislativa conferida pela Lei nº 18/2013. Cfr. os arts. 5ss.

[xxv] Cfr. os agora revogados arts. 120 e 156 do CCom (antes e depois da alteração de 1977 - DL 363/77). Há quem apelide este reforço institucional da sociedade civil como uma empresarialização da mesma. Para uma visão acerca dos tipos sociais e da evolução histórica do direito das sociedades em Portugal a partir do CCom de 1833, tem muito interesse os estudos de Rui Pinto Duarte, «O quadro legal das sociedades comerciais ao tempo da Alves & C.ª», in Estudos Comemorativos dos 10 Anos da FDUNL, II, Almedina 2008, p. 479-505, e «O impacto do 25 de Abril no Direito das Sociedades», DSR 14 (2015), p. 29-48, bem como, mais latamente acerca do direito comercial, «Breve introdução do Direito Comercial português», in Estudios de Derecho Civil, Libro homenaje al Prof. Dr. Dr. h.c. José Gomez Segade, Marcial Pons 2013, p. 111-121.

[xxvi] Lei 4/73 e DL 430/73.

[xxvii] RegCEE 2137/85 e DL 148/90 (AEIE com sede em Portugal, considerado comerciante se o objeto é mercantil).

[xxviii] Regulamento (CE) n.º 2157/2001; DL 2/2005. Está prevista também a futura existência de uma societas privata europaea (SPE) e de uma societas unius personae (SUP).

[xxix] DL 271/72.

[xxx] DL 495/88, objeto de diversas alterações posteriores.

[xxxi] No domínio do CCom, esta designação tinha a sua justificação, porque, na aplicação do direito comercial, o artigo 106 excluída o regime da falência e a jurisdição mercantil.

[xxxii] Cfr., por ex., o artigo 198 do CIRE.

[xxxiii] Arts. 59ss do DL 1/72.

[xxxiv] Lei 53/2015 (aprova o Regime jurídico da constituição e funcionamento das sociedades de profissionais que estejam sujeitas a associações públicas profissionais).

[xxxv] Lê-se no artigo 11: «1 - São admitidas entradas em dinheiro, bens ou indústria, nos termos previstos na legislação referida no n.º 3 do artigo 4.º 2 - As entradas em indústria não são computadas na formação do capital social e presumem-se iguais, salvo estipulação em contrário do contrato de sociedade. 3 - Os sócios profissionais ficam ainda obrigados, para além das respetivas entradas, a exercer em nome da sociedade de profissionais a atividade profissional que constitua o respetivo objeto principal.»

[xxxvi] Este veio consagrar a liberdade profissional dos cônjuges, nos seguintes termos: Cada um dos cônjuges pode exercer qualquer profissão ou atividade sem o consentimento do outro.

[xxxvii] Segundo o Aviso n.º 8544/2017 da Direção-Geral do Tesouro e Finanças, a taxa manteve-se, para o segundo semestre de 2017, nos 7% e 8%, respetivamente. A taxa legal supletiva de juros civis é de 4% desde 2003 (Portaria n.º 291/03).

[xxxviii] Estabeleceu-se no Assento do STJ nº 4/92 que nas letras e livranças emitidas em Portugal seria aplicável esta taxa de juros legal e não a dos artigos 48 e 49 da LULL. Os Acórdãos do TC de 10.07.1985 e 5.07.1989 consideraram, por maioria, conforme à Constituição a norma legal em apreço, quanto às letras emitidas e pagáveis em território português. Note-se, porém, que isto só pode valer quando a taxa for igual ou superior, não inferior, à da LU. No Acórdão de 31.010.1984, publicado, por ex., na RLJ 120, p. 74ss, com anotação concordante de Afonso Queiró (p. 78s), o TC entendeu, também por maioria,  que a contrariedade de uma lei ordinária a uma norma de direito (convencional) internacional gera mera inconstitucionalidade indireta e que, por isso, não estaria sujeita à sua apreciação.

[xxxix] Cfr., a respeito das sociedades, o artigo 172 do CSC.

[xl]Aprovado pelo DL n.º 133/2013, ao abrigo da autorização legislativa conferida pela Lei nº 18/2013.

[xli] A atividade transportadora (fora o transporte aéreo, inexistente ao tempo da feitura do Código) integra o primeiro grupo, sendo historicamente das atividades auxiliares da intermediação nas trocas mais antigas (cfr. o art. 366, quanto ao transporte terrestre e fluvial, e os arts. 538ss, 563ss, quando ao transporte marítimo); mas está também prevista no artigo 230.7.º.

[xlii] Cfr. Evaristo Mendes, Anotação ao artigo 61 da CRP, in Jorge Miranda/Rui Medeiros, CPA I (Coimbra Editora 2010), «Constituição e Direito Comercial», in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda (Coimbra 2012), e «Modelo económico constitucional e Direito Comercial», in Estudos em Memória do Prof. Doutor Paulo Sendin (UCE 2012).

[xliii] Dispõe, ainda, o artigo 4: «O estabelecimento comercial é constituído pela universalidade dos bens e fatores produtivos organizados pelo empresário comercial, com todo o seu ativo e passivo, incluindo os direitos relativos ao uso da instalação ou instalações afetas à exploração da respetiva atividade, ao nome, à insígnia, à clientela, aos equipamentos, às mercadorias e a quaisquer outros elementos a ele pertinentes».

[xliv] De notar, ainda, por exemplo, que a Conferência da Haia de DIP aprovou em 2015 uns Principles on choice of law in international commercial contracts (Princípios relativos à Escolha da Lei aplicável aos Contratos Internacionais).