Evaristo Mendes


 

 

 

 

 

Evaristo Mendes

 

Transmissão de ações e exercício de direitos sociais.

Breve comentário de jurisprudência

 

 

 

Palavras-chaves: ações – valores mobiliários – transmissão – consensualidade -legitimidade – legitimação – restrições à transmissibilidade – preferência estatutária - contrato-promessa – execução específica – capital de risco

Keywords: shares - securities - transfer of shares/secutities - exercise of rights in a company - limitations to the transferability of shares - venture capital

 

O texto que agora se divulga destinou-se a uma ação de formação na Uria Menendez - Proença de Carvalho, dedicada a temas atuais relativos à transmissão das ações, que teve lugar em março de 2019; focando-se na análise de alguma jurisprudência recente (§ 1.º). Adicionalmente, procedeu-se a uma breve análise de dois pontos em especial, suscitados pelos arestos selecionados: o de saber se é possível transmitir uma ação valor mobiliário por mero efeito de um contrato translativo (§ 2.º); e o da legitimidade para requerer o registo, no caso de transmissão de ações tituladas nominativas (§ 3.º).

 

Sumário:

 

§ 1.º Jurisprudência. I - Acórdão STJ de 21.03.2017 (AR): Execução específica de contrato-promessa de transmissão de ações tituladas (nominativas); Preferência estatutária na alienação das ações. II - Acórdão do STJ de 21.03.2017 (FR): Validade dos acordos parassociais que asseguram a uma entidade de capital de risco a recuperação do valor investido em ações da entidade financiada; Execução específica do contrato-promessa de compra e venda de ações tituladas ao portador. III - Acórdão do STJ de 5.02.2019: Ações tituladas ao portador – legitimação para o exercício dos direitos sociais; Iter translativo das ações tituladas ao portador. IV - Acórdão do TRL de 16.01.2018: Ações ao portador – legitimação para o exercício dos direitos sociais. V - Acórdão do STJ de 15.05.2008: Alienação de ações valores mobiliários – validade formal; Iter translativo das ações valores mobiliários. § 2.º O problema das transmissões solo consensu. § 3.º Legitimidade para requerer o registo de ações tituladas nominativas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

§ 1.º

Jurisprudência

 

I

Acórdão STJ de 21.03.2017 (Alexandre Reis)[i]

 

Tema principal do Acórdão: Execução específica de contrato-promessa de transmissão de ações tituladas (nominativas).

Máximas de decisão: I - A transmissão das ações tituladas nominativas não opera por mero efeito do contrato, sendo necessários, para o efeito, um título e a tradição para o adquirente das ações devidamente endossadas. II – Sendo necessária esta tradição, o contrato-promessa de compra e venda das ações é insuscetível de execução específica.

 

Tema secundário: Preferência estatutária na alienação das ações.

Máxima de decisão: Apesar do disposto no artigo 328.4 do CSC, o direito de preferência atribuído pelo pacto social de uma SA tem mera eficácia relativa, não tendo os preferentes um direito de sequela exercitável mediante ação reivindicatória ou de preferência.

 

 

Sumário:

 

I - A sociedade anónima é um instrumento de captação de poupanças disseminadas, para a obtenção do maior lucro possível, pelo que, ao invés das sociedades de pessoas, tem como elemento preponderante o seu capital e nas relações nela estabelecidas sobreleva, pois, o intuitu pecuniae, o tendencial anonimato e a correspondente impessoalidade.

II - Para atingir esta sua função social típica e manter a expectativa da rápida e fácil recuperabilidade do investimento, a lei arreda quaisquer embaraços à transmissão da qualidade de sócio, consagrando, como regra geral, a livre transmissibilidade dos títulos (acções) representativos deste tipo de sociedade, sejam eles escriturais ou titulados, abrangidos pela estatuição do art. 328.º, n.º 1, do CSC.

III - Ainda assim, excepcionando essa regra, o legislador optou por permitir a atenuação da índole normal da S.A., facultando a existência de sociedades com reduzido número de acionistas e que comportam uma componente também personalizada, por possuírem caraterísticas mais fechadas, designadamente de âmbito familiar.

IV - Com esse pressuposto, embora proibindo a exclusão da transmissibilidade das acções, a lei permite que, no contrato de sociedade, os sócios possam impor à livre circulação dos títulos uma ou várias das pontuais limitações taxativamente previstas nas alíneas a) a c) do n.º 2 do citado art. 328.º, e não mais do que essas, quando, da interpretação objectiva dos respectivos estatutos, resulte a necessidade de relativizar o paradigma típico da despersonalização da sociedade anónima, dotando-a de instrumentos idóneos à sua autodefesa, com a introdução de elementos personalísticos, com vista a assegurar a titularidade das acções a algumas pessoas, a fim de prevenir a destabilização do seu controlo.

V - Por isso, a consagrada possibilidade de os sócios poderem estabelecer no contrato de sociedade a limitação à livre circulação dos títulos decorrente do direito de preferência dos outros accionistas ancora-se, sempre e primordialmente, na necessidade de tutela do interesse social e só reflexamente nos interesses dos accionistas, enquanto titulares da sociedade e na estrita medida em que o são, sendo descartáveis as condições que não sejam justificadas por tal interesse, que deve subjazer ao controlo a efectuar pela sociedade de uma eventual transmissão de títulos.

VI - Nos termos do n.º 4 do referido art. 328.º do CSC, a cláusula de preferência convencionada e que haja sido reproduzida nos títulos (nominativos) é invocável perante terceiros e estes não poderão alegar o seu desconhecimento, sendo, pois, oponível a todos os terceiros adquirentes (de boa ou má fé), em geral. Quando não estiver reproduzida nos títulos, tal cláusula só pode ser oposta aos adquirentes (de má fé) que tenham conhecimento do incumprimento das obrigações à mesma inerentes.

VII - Porém, não resulta da citada norma que aos preferentes seja conferido um direito de sequela, pelo que a transmissão que viole esse direito de preferência, dada a (mera) eficácia relativa da oponibilidade a terceiros do interesse social prosseguido pela correspondente cláusula, apenas poderá fundamentar a exigência pelos respectivos titulares, ao obrigado à preferência, da reparação dos danos que lhes tenha causado tal comportamento, mas não o direito a recorrer a uma ação reivindicatória ou de preferência.

VIII - Perante o expendido, não pode um promitente-vendedor opor ao outro contraente o seu próprio incumprimento das obrigações impostas pelo estatuto societário, adequadas, segundo a lei presume, a tutelar o interesse social e não o interesse reflexamente radicado na esfera dos demais accionistas, individualmente considerados, nem, muito menos, o radicado na sua própria esfera pessoal.

IX - E não pode o tribunal emitir o juízo de que a autora era (promitente) adquirente de má fé se os réus (oponentes) não invocaram essa má fé (psicológica), isto é, se não alegaram o conhecimento pela autora do incumprimento por aqueles da obrigação de notificar por escrito todos os accionistas para poderem exercer o direito de preferência, no caso, um facto essencial integrante da inerente excepção (art. 5.º do CPC).

X - Ainda que assim não fosse, a invocação da putativa oponibilidade, oferecida pelos réus, com fundamento no incumprimento pelos próprios das obrigações estatutárias e como meio para obterem um maior preço para os títulos que seriam objecto do negócio prometido e não, propriamente, para garantirem o interesse social tutelado pelo invocado fundamento, seria abusiva e, consequentemente, ineficaz por colidir, manifestamente, com os princípios da boa fé e do fim social ou económico do direito que pretenderiam exercer (art. 334.º do CC).

XI - É insusceptível de execução específica o contrato promessa de transmissão de acções tituladas nominativas de uma S.A. – como no caso sucede – , por a tal se opor a natureza da obrigação assumida, dado que a transmissão de acções, o efeito com aquele almejado, não se operaria por mero efeito do contrato de compra e venda, antes só ficaria perfeita com a tradição para a adquirente das acções devidamente endossadas, ou seja, com a declaração de transmissão (pelo transmitente) escrita em tais títulos, em conformidade com o art. 102.º, n.º 2, do CMVM, o que significa que a transmissão não se concretizaria com a mera declaração negocial dos faltosos e apenas esta poderia ser suprida pelo tribunal (cf. art. 830.º do CC).

 

 

1. O caso

 

1.1 Uma sociedade anónima (D) tinha pelo menos 6 acionistas, entre os quais A - uma SQ SGPS, tendo gerente F, além do cônjuge[ii] - e B. F era o presidente do CA da SA e B[iii] era o presidente da mesa da mesma[iv].

O contrato de sociedade da SA dispunha que as ações seriam «nominativas e registadas nos termos da lei» e livremente transmissíveis entre acionistas e seus descendentes[v]; estando as demais transmissões sujeitas à preferência da sociedade, dentro dos limites legais, e dos demais acionistas e, ainda, ao consentimento da primeira. Para o exercício da preferência, os respetivos beneficiários deveriam ser notificados, «30 dias antes da transação». Estas restrições não constavam, porém, dos títulos emitidos. Na realidade, tratava-se de ações tituladas nominativas.

Entre a acionista A e o acionista B foi celebrado, em 16.11.2005, um contrato-promessa de aquisição de um lote de ações detido por este último, mediante o pagamento de certo preço, em prestações. O contrato-promessa ficou sujeito à condição suspensiva de a sociedade consentir na «cessão», deixando de produzir efeitos na falta do consentimento, e «às demais obrigações legais e estatutárias que condicionarem a transmissão das ações»[vi]. Estabelecia-se, ainda, no mesmo que a promitente compradora poderia, em caso de mora ou incumprimento, requerer sentença que produzisse os efeitos da declaração negocial do faltoso, nos termos do art. 830 do CC, e que as ações deveriam ser entregues na data da celebração, por escrito, do contrato de compra e venda, contra o pagamento da última prestação.

Após a conclusão do contrato, B terá tido indícios de que a SA poderia valer significativamente mais do que aquilo que servira de base à fixação do preço, pedindo informações a F, na qualidade de presidente do CA, acerca da sociedade, e não cumpriu o contrato-promessa - isto é, não outorgou o contrato definitivo de compra e venda - nem devolveu uma livrança avalizada em branco dada em garantia do pagamento do preço[vii]. Apesar de a última prestação só ser devida com a entrega dos títulos, quando da celebração do contrato definitivo, o preço foi integralmente pago.

 

1.2 Em 29.11.2005, B enviou à SA uma carta registada com aviso de receção a comunicar a sua intenção de venda das ações, comunicando o valor e as demais condições do negócio, para o exercício da preferência e prestação do consentimento. Porém, não fez o mesmo relativamente aos demais acionistas.

Em 21.12.2005, na reunião da AG convocada para o efeito e presidida por B, em que estiveram presentes acionistas detentores da maioria do capital e em que foram apreciados outros pedidos congéneres de 4 outros acionistas, foi deliberado o não exercício do direito de preferência, por falta de reservas disponíveis para o efeito, e a prestação do consentimento, ficando os requerentes «autorizados à negociação inter-partes»[viii].

 

Perante a não disponibilidade de B para celebrar o contrato definitivo de compra e venda das ações, a A propôs contra ele uma ação, pedindo, designadamente, a sua  condenação na entrega dos títulos «devidamente endossados». B defendeu-se argumentando, nomeadamente, que, apesar do pagamento integral do preço, não tendo ele nem a autora notificado os demais acionistas para exercerem a respetiva preferência estatutária, não se encontrava cumprida a condição suspensiva do contrato-promessa; acrescentando depois que, embora os títulos não contivessem as aludidas restrições à transmissão, A estava de má fé quanto a este aspeto (ou seja, tinha conhecimento da sua existência).

 

1.3 O tribunal de primeira instância satisfez substancialmente aquele pedido da autora (A), condenando B na entrega dos títulos[ix], «a fim de [neles] ser aposta por funcionário judicial a competente declaração de transmissão a favor da A»; e, ainda, em execução específica do contrato-promessa, declarou «transmitida para a autora a propriedade» das ações [colocando-se a questão de saber se este aspeto estava compreendido no pedido], determinando também a comunicação da aquisição à SA, para registo, nos termos do art. 102 do CVM. 

O TRC revogou, no entanto, a decisão, absolvendo B do pedido, por ter considerado demonstrado o incumprimento por este da obrigação de dar preferência aos demais acionistas, cujos interesses (e também o interesse da sociedade) deveriam ser acautelados, sendo este incumprimento oponível à A, nos termos do art. 328.4 do CSC, por esta não ser reputada adquirente de boa fé (mas conhecedora da existência da preferência)[x]. O STJ revogou esta parte do acórdão recorrido, decidindo, inter alia: «condenar os RR a entregar à A, devidamente endossadas as ações identificadas no contrato-promessa».

 

2. Fundamentação da decisão do STJ

 

Na fundamentação da decisão do STJ, para além de um exercício abusivo por B do direito de invocar o seu próprio incumprimento da obrigação de dar preferência, salientam-se as seguintes afirmações ou ideias:

 

1)      A SA é, tipicamente, um instrumento de captação de poupanças disseminadas, para a obtenção do maior lucro possível, sobrelevando a vertente capitalista, o tendencial anonimato e a correspondente impessoalidade;

2)      Daí a regra da livre transmissibilidade das ações, com a respetiva qualidade de sócio.

3)      Mas a lei admite a atenuação desta sua índole, juntando-lhe uma componente personalizada, através de limitações estatutárias a essa transmissibilidade.

4)      Estas são apenas as taxativamente previstas no art. 328.2 do CSC e destinam-se a servir como mecanismos de autodefesa da sociedade, prevenindo a desestabilização do seu controlo, evitando a entrada de terceiros para tutela do interesse social, seja este entendido como interesse próprio da mesma ou como o interesse comum dos sócios na prossecução do máximo lucro, através do exercício da atividade da empresa coletiva.

5)      Mesmo no caso da preferência dos acionistas, o que, primordialmente, conta não é o seu interesse individual, mas este interesse social, sendo a respetiva defesa o seu escopo implícito. Os interesses dos acionistas - «enquanto titulares da sociedade e na estrita medida em que o são» - apenas são reflexamente considerados.

6)      Havendo uma cláusula de preferência societária, sobre o sócio que pretende alienar as ações impende a obrigação de comunicação do projeto aos preferentes, com todos os termos e condições (art. 416 do CC); embora a comunicação também possa ser feita pelo proponente adquirente.

7)      Como as demais cláusulas restritivas, a de preferência é oponível a terceiros adquirentes, independentemente de estes terem ou não conhecimento da mesma, desde que, tratando-se de ações tituladas, ela se encontre transcrita nos títulos; faltando esta transcrição, sê-lo-á apenas aos adquirentes de má fé, isto é, conhecedores da restrição (e do incumprimento da respetiva obrigação) (art. 328.4).

8)      Prosseguindo-se através da preferência o interesse social e tendo o direito de preferência mera eficácia relativa, a sua violação apenas obriga a reparar os danos causados. O art. 328.4 não lhe liga um direito de sequela dos preferentes, exercitável mediante ação reivindicatória ou de preferência.

9)      Além disso, como o que releva é o interesse social, mostra-se importante a circunstância de, na aludida deliberação da AG, ter sido autorizada a «negociação inter-partes».

10)  Acresce que a má fé de A – ou mais rigorosamente os factos dos quais ela se poderia extrair – para ser relevante deveria ter sido invocada, o que não sucedeu.

 

11)  Estando em causa ações tituladas nominativas, a sua transmissão não opera por mero efeito do contrato, tornando-se necessária a «tradição para o adquirente das ações devidamente endossadas» (art. 102 do CVM). Mas esta também não basta: é necessário, para o efeito, um título (no caso, a compra e venda) e o modo (esta tradição).

12)  Daqui decorre a insusceptibilidade de execução específica do contrato-promessa. Na verdade, pretendendo-se com ela a transmissão das ações e não se dando esta com a mera declaração negocial da parte faltosa, única que poderia ser suprida pelo tribunal, sendo necessária, ainda, a traditio com endosso, a essa execução específica opõe-se a natureza da obrigação assumida.

 

 

3. Algumas observações. a) Execução específica do contrato-promessa de compra e venda de ações tituladas

 

1)      A execução específica do contrato-promessa de compra e venda, faltando a declaração negocial do vendedor, destina-se a suprir esta falta. O que – contrariamente ao entendimento do Supremo – se mostra viável em hipóteses como a vertente. Na verdade, em execução do contrato, cabia ao comprador pedir e ao tribunal declarar emitida tal declaração negocial (do vendedor), ficando deste modo celebrado o contrato de compra e venda.

2)      Questão diferente consiste em saber se o contrato de compra e venda assim concluído - com uma declaração negocial do comprador e uma sentença substitutiva da declaração negocial do vendedor - opera, sem mais, a transmissão das ações, atendendo à sua condição de valores mobiliários, visto que estes possuem um regime de transmissão especial, constante do CVM (no caso, do art. 102). Trata-se de um ponto acerca do qual não há unanimidade, nem na doutrina, nem na jurisprudência[xi].

3)      Entendendo-se que não opera, como defendem os partidários da ressuscitada teoria do título e do modo, seguida no Aresto, para produzir tal efeito tornava-se necessária a condenação adicional na entrega das ações com a competente declaração de transmissão, entrega essa que, no caso, o próprio contrato-promessa, aliás, impunha. E, uma vez obtida a entrega dos títulos, voluntária ou coerciva, faltando esta declaração, concebe-se, igualmente, a sua execução específica, ainda nos termos do art. 830 do CC, ou, como se decidiu na primeira instância, sendo a mesma lavrada por funcionário judicial – podendo aqui invocar-se, diretamente ou por analogia, o art. 102.2b) do CVM.

4)      Mas a condenação na entrega das ações com a competente declaração de transmissão também se justificava se se admitir a transmissão solo consensu - mediante o simples contrato de compra e venda -, porque o que o adquirente em geral pretende (e era esse o caso) é, não apenas esta transmissão, mas uma transmissão segura e com eficácia plena; a qual depende da adicional entrega dos títulos com tal declaração de transmissão neles aposta e, ainda, do registo na sociedade, aspeto também contemplado na decisão da primeira instância[xii].

5)      Note-se também que, sendo necessário um título (compra e venda, in casu) e um modo (entrega do título com declaração de transmissão), para operar a transmissão, como se defende no Acórdão, a simples condenação na entrega das ações com esta declaração não produz o efeito visado. Faltará o título.

6)      O que acaba de dizer-se requer, no entanto, uma observação adicional. O problema da execução específica do contrato-promessa de compra e venda de ações valores mobiliários é um problema recorrente na jurisprudência[xiii], tendo associada a questão de saber se, a par do seu modo especial de transmissão, regulado no CVM, pode existir uma transmissão consensual, de direito comum. Acerca desta questão, far-se-á uma breve nota mais adiante (§ 2.º).

7)      Quanto ao contrato-promessa, a sua execução específica poderia pertinentemente discutir-se se a compra e venda de valores mobiliários fosse um contrato real quoad constitutionem. Tal não sucede, porém. Com efeito, mesmo para os partidários da teoria do título e do modo, as formalidades exigidas para a transmissão ocorrer (no caso, a entrega dos títulos com declaração de transmissão neles inscrita) são exteriores ao negócio causal (no caso, a compra e venda) - não requisitos constitutivos deste, necessários para a sua perfeição[xiv].

8)      Sendo assim, para os defensores desta tese, o que se torna patente é a insuficiência da execução específica do contrato-promessa para operar a transmissão, uma vez que o negócio causal é degradado para a condição de um contrato meramente obrigacional; contendo, no lugar do efeito translativo, a obrigação de fazer adquirir, que se cumpre realizando as formalidades necessárias. Todavia, insuficiência não significa inadmissibilidade ou impossibilidade jurídica.

9)      É certo que, em tais condições, a compra e venda não corresponde ao tipo legal, tal como regulado nos arts. 874 e ss do CC, legalmente configurado como um contrato real quoad effectum, mesmo quando a transmissão não pode dar-se no momento da sua celebração[xv]. Mas, para além de a compra e venda comercial – aqui em questão (cfr. o art. 463 do CCom, mormente o n.º 5.º) – não ter de corresponder ao tipo legal civil, o problema nunca seria de admissibilidade ou inadmissibilidade da compra e venda obrigacional (estamos no âmbito da autonomia privada), mas de qualificação ou não do contrato celebrado como compra e venda[xvi].

10)  Admitindo a transmissão dos valores mobiliários por mero efeito do contrato (tese da consensualidade), a sua transmissão ocorre, no caso da compra e venda, com a conclusão deste, mediante execução específica do contrato-promessa. Porém, como se observou, só com a adicional entrega dos títulos «endossados» o interesse típico do comparador é satisfeito; não bastando, também aqui, essa execução específica.

 

 

4. b) Restrições à transmissibilidade das ações. Preferência estatutária

 

11)  Se o titular de ações promete, sem condições, vendê-las e, paralelamente, está obrigado a dar preferência, sobre ele impendem duas obrigações - a de fazer adquirir as ações pelo promitente comprador, outorgando o contrato de compra e venda e praticando os demais atos necessários, e a de dar preferência, cabendo-lhe decidir qual delas cumpre e sujeitando-se às consequências do incumprimento da outra. Havendo um contrato-promessa, coloca-se, no entanto, a questão de saber quando surge a obrigação de dar preferência, se esse contrato não estiver sujeito a uma condição suspensiva.

12)  A preferência estatutária é um vínculo genético, intrínseco ou inerente às ações, definindo o seu modo de ser no tráfico jurídico; o que a distingue da simples preferência decorrente de um pacto de preferência, vínculo externo de índole pessoal. E só cumpre a sua finalidade típica e primordial de controlo das entradas na sociedade se tiver mais que uma simples eficácia obrigacional[xvii].

13)  Na verdade, são-lhe reconhecíveis, em tese, três tipos de efeitos: o obrigacional, o real - efetivável mediante ação de preferência - e um efeito que podemos designar como corporativo, permitindo à sociedade não reconhecer como sócio o adquirente das ações quando tenha havido desrespeito pela preferência[xviii]. Apenas adicionando ao efeito obrigacional pelo menos um destes últimos haverá, designadamente, um eficaz filtro das entradas de novos membros na sociedade.

14)  Do artigo 328.4 do CSC – relativo à oponibilidade das cláusulas restritivas da transmissibilidade das ações aos adquirentes das mesmas - não se retira o efeito real, como também observa o Supremo[xix]. Contudo, o sentido do mesmo - que importa ver também à luz do n.º 5 e tendo presente o art. 239.5 do CSC - dificilmente se compatibiliza com a existência de uma simples obrigação de dar preferência. Com efeito, constando a cláusula dos estatutos e nessa medida sendo objeto de publicidade legal (registal), a obrigação de dar preferência opõe-se, sem mais, a quem seja ou venha a ser sócio. A sua eficácia em relação ao adquirente das ações, a que alude tal preceito, há de ser, portanto, um mais que acresce a tal obrigação e respeita a esse adquirente enquanto (terceiro) adquirente.

15)  Este é, no entanto, um aspeto que carece de maior reflexão. Em tese geral, sendo as ações «bens» registados, embora o seu tráfico não seja sujeito a registo, e beneficiando a inerente preferência estatutária da publicidade legal do registo comercial, é possível reconhecer a esta eficácia real[xx]. E esta deve, inclusive, ver-se como conatural à sua função típica[xxi].

16)  No que respeita ao escopo e aos interesses protegidos, não há dúvida de que o interesse da sociedade tem primazia. O próprio art. 328.3 o revela, ao permitir a supressão da preferência sem o consentimento de um ou mais titulares, resolvendo neste sentido uma antiga questão controvertida[xxii].

17)  É certo que a preferência, além de uma função de controlo das entradas e de uma adicional função de manutenção do equilíbrio de poder no seio da sociedade, também pode cumprir a função de tutela do interesse dos sócios em que a coletividade social seja composta por acionistas reciprocamente escolhidos. Apesar disso, pode ser suprimida pela maioria necessária para alterar os estatutos. Apenas enquanto existir esta função é de considerar.

18)  No caso vertente, o pacto social previa uma cláusula de preferência aplicável não apenas à compra e venda, mas também a outros negócios translativos. O que, em termos gerais, coloca o problema das chamadas preferências impróprias (ou cláusulas de preempção), envolvendo designadamente três questões, todas elas controvertidas: i) a da sua admissibilidade; ii) a do valor da preempção; e iii) a da sua eficácia.

19)  Com efeito, quanto à admissibilidade, elas cabem dentro do texto da lei [art. 328.2b), que manda estabelecer nos estatutos «as condições do exercício» do direito de preferência e fala genericamente em «alienação» das ações]; e são reconhecidas por parte da doutrina[xxiii]. Mas também têm opositores, designadamente sustentando que uma preferência, em sentido técnico, pressupõe que o titular da mesma esteja em condições de proporcionar ao obrigado à preferência o mesmo que obteria do adquirente preterido; o que, do mesmo passo, circunscreve o seu campo de aplicação aos negócios compatíveis com a regra do tanteio ou paridade de condições[xxiv]. Mesmo para quem as admita, elas parecem dificilmente admissíveis no contexto das transmissões executivas[xxv].

20)  Sendo admitidas, coloca-se o problema do valor pelo qual poderão ser exercidas. Aqui, a regra deve ser a de que, em conformidade com o espírito do sistema [cfr. o art. 329.3c)], este não poderá afastar-se, pelo menos sensivelmente, do valor real societário das ações[xxvi].

21)  Quanto à eficácia, para além do problema comum às preferências stricto sensu, mostra-se especialmente problemática uma hipotética ação de preferência. Ou seja, a reconhecer-se a eficácia real das preferências estatutárias, esta parece de circunscrever às preferências em sentido próprio[xxvii].

22)  Também no caso vertente, além da preferência dos acionistas, expressamente prevista na lei [art. 328.2b)], havia uma preferência a favor da sociedade. Deve admitir-se esta, ainda que, designadamente, dentro dos limites do princípio da intangibilidade do capital social (cfr. o art. 317.4)? Pode, em sentido contrário, afirmar-se que, diferentemente do que sucede nas SQ, o legislador quis aqui preservar a base/saúde financeira da sociedade, situando o problema no plano das relações entre acionistas[xxviii]?

23)  A resposta, qualquer que ela seja, presta-se a discussão. Mas afigura-se excessivo rigor a exclusão de autonomia estatutária na matéria.

24)  A terminar este ponto, uma observação de ordem prática. Dadas as reservas jurisprudenciais e a controvérsia existente acerca da eficácia das preferências estatutárias, é recomendável que o pacto social contenha uma cláusula a reconhecer à sociedade o poder de amortizar as ações (nos termos do art. 347) caso seja realizada uma transmissão destas sem observância da preferência.

 

 

5. (cont.) Cláusulas de consentimento e cláusulas mistas

 

25)  Ainda no caso em apreço, havia uma cláusula mista de consentimento e preferência. Tal é possível em face do teor do art. 328.2? Sendo a resposta afirmativa, pode a prestação do consentimento ficar subordinada à observância da preferência? E, neste caso, se a obrigação de dar preferência não for cumprida, pode a sociedade recusar eficazmente o consentimento?

26)  Já se aludiu a este problema (supra, n.º 4). Realça-se, por um lado, que parece excessivo rigor não admitir as cláusulas mistas, frequentes mormente em SAs que resultaram da transformação de SQs, onde têm larga tradição. Mas, por outro lado, importa também não perder de vista que, sobretudo se a resposta às duas últimas questões for positiva, o efeito restritivo da transmissibilidade é consideravelmente superior ao que resultaria da adoção das restrições em alternativa.

27)  Adicionalmente, pode ainda perguntar-se: i) sendo o negócio para que se pede o consentimento uma compra e venda, a cláusula pode dispor que o valor a pagar em caso de recusa de consentimento é um valor diferente do oferecido? ii) sendo recusado o consentimento, que sucede se a sociedade não cumprir pontualmente a obrigação estatutária de fazer adquirir as ações?

28)  Quanto à primeira questão, que apresenta alguma analogia com a das preferências impróprias, por um lado, é de reconhecer que o regime legal, enquanto regime de proteção dos acionistas, para quem a alienação das ações é a via normal de saírem da sociedade e de liquidarem o investimento em ações, é essencialmente imperativo. Mas, em consonância com o inspirador modelo francês, essa imperatividade essencial não deve ir ao ponto de impedir que o pacto social fixe critérios de determinação do valor de aquisição (ou amortização), desde que não (sensivelmente) inferiores ao valor real societário das ações; evitando do mesmo passo o problema dos negócios simulados e da prova da simulação.

29)  Vejamos a segunda questão. As cláusulas de consentimento, para serem válidas, têm de dispor que, em caso de recusa deste, a sociedade fica obrigada a (amortizar, adquirir ou) a fazer adquirir as ações em causa (art. 329.3). Por conseguinte, havendo uma cláusula válida, se a sociedade recusar o seu beneplácito, assume estatutariamente tal obrigação. 

30)  Porém, a sociedade pode não cumprir voluntariamente. Neste caso, o acionista alienante poderá exigir judicialmente o cumprimento, obtendo uma condenação da sociedade, porventura assistida de uma sanção pecuniária compulsória, já que a obrigação de fazer adquirir as ações não é suscetível de execução específica[xxix].

31)  Trata-se, no entanto, de uma solução insuficiente; e, inclusive, menos protetora do acionista do que o regime previsto para as quotas (art. 231), o que seria incompreensível. Este deve, portanto, ter a faculdade de fixar à sociedade um prazo razoável, findo o qual, na falta de cumprimento, a obrigação se considera definitivamente incumprida; considerando-se ineficaz a recusa do consentimento e, portanto, livre a transmissão[xxx]. É o que resulta de uma aplicação, mutatis mutandis, do regime das quotas, por identidade ou maioria de razão, embora em acréscimo da obrigação de fazer adquirir[xxxi].


II

Acórdão do STJ de 21.03.2017 (Fonseca Ramos)[xxxii]

 

 

Temas versados no Acórdão: I - Validade dos acordos parassociais que asseguram a uma entidade de capital de risco a recuperação do valor investido em ações da entidade financiada II - Execução específica do contrato-promessa de compra e venda de ações tituladas ao portador.

 

Máximas de decisão: I – São válidos os dos acordos parassociais celebrados entre um acionista e uma entidade de capital de risco que asseguram a esta a recuperação do valor investido em ações da entidade financiada. II – Um contrato-promessa de compra e venda de ações tituladas ao portador é suscetível de execução específica.

 

 

Sumário:

 

I. O investimento realizado por Fundos de Capital de Risco (FCR) [podem ser sociedades de capital de risco (SCR) e, ainda, investidores em capital de risco (ICR)], constitui instrumento de financiamento societário, private equity, podendo consistir, de entre as várias modalidades previstas na lei, em a sociedade investidora tomar participação no capital social da sociedade investida (target), podendo intervir ou não na sua gestão, se assim for contratualmente estipulado.

II. Essa participação é, forçosamente, temporária, na lógica investimento-desinvestimento, e, normalmente, é feita ao abrigo de acordos parassociais.

III. O investimento em capital de risco é aleatório, contingente, sendo comum à entidade investidora e à sociedade investida o objectivo de conseguir lucros.

IV. Se, por acordo entre o FCR investidor e a sociedade investida, foram acordados critérios para determinar o valor a pagar no momento do desinvestimento, no termo da vigência contratual: acordo que garantia um retorno mínimo, pré-estabelecido, tal acordo, celebrado ao abrigo do princípio da liberdade contratual – art. 405º, nº1, do Código Civil – e da autonomia negocial, pode ser nulo se violar os preceitos legais imperativos dos arts. 280º, nº1, e 294º do Código de Processo Civil, ou anulável se exprimir usura – art. 282º.

V. Pode ser objecto de execução específica – art. 830º, nº1, do Código Civil - o contrato promessa unilateral de compra e venda de acções ao portador, assumido pelo accionista da sociedade investida que celebrou o acordo parassocial para adquirir as acções que representam a participação accionista do FCR, a fim de este obter o pagamento do valor investido, estando o promitente adquirente em mora.

VI. Tal sentença supre a declaração de vontade do promitente comprador em mora e opera eficácia translativa imediata da titularidade de tais acções, não carecendo a perfeição negocial do contrato, de quaisquer outras formalidades, mormente, a prevista no art. 101º do Código de Valores Mobiliários, que impõe a efectiva entrega dos títulos ao adquirente.

 

1. O caso

 

Indo ao que interessa, uma sociedade gestora de um FCR adquiriu, para este Fundo, uma participação numa SA, celebrando em paralelo, com o acionista de referência desta (anterior titular das ações que compunham essa participação), um acordo parassocial que envolvia, inter alia, em determinadas circunstâncias e prazo, uma promessa de (re)compra das ações do Fundo, pelo valor das mesmas correspondente a uma fração do maior de dois valores da sociedade – o valor de rendimento e o valor contabilístico ajustado – ao tempo da prevista aquisição das ações.

Posteriormente, houve um aditamento a esse acordo, pelo qual se estipulou que, sem prejuízo do critério geral de fixação do preço da compra e venda, o promitente comprador teria de pagar determinado montante mínimo, correspondente ao valor por que as ações haviam sido adquiridas para o Fundo pela respetiva sociedade gestora.

Verificados os respetivos pressupostos, a sociedade gestora do Fundo pretendeu efetivar a alienação das ações por este valor mínimo; e, perante a passividade do promitente comprador, propôs uma ação judicial tendente à execução específica do «contrato»-promessa de compra contido no acordo parassocial.

O promitente comparador contestou, designadamente: 1) a validade do aditamento ao acordo parassocial, por eliminar o risco de perda suportado pelo Fundo, entendendo que tal descaracterizava a participação deste como capital de risco, o que não seria permitido pela legislação relativa a este; e 2) a suscetibilidade de execução específica da promessa de compra das ações, por se tratar de uma promessa unilateral, sem recíproca obrigação de venda, e porque, tratando-se de ações tituladas ao portador, para a transmissão das mesmas, correspetiva da obrigação de pagar o preço reclamado, seria necessária a entrega das mesmas, nos termos do art. 101 do CVM.

Confirmando as decisões das instâncias, o STJ – que admitiu o recurso por se tratar de questões jurídicas dotadas de especial relevância e complexidade – deu razão ao Fundo.

 

2. Fundamentação da decisão do STJ. a) O problema da validade dos acordos que asseguram a uma entidade de capital de risco a recuperação do valor investido em ações da entidade financiada

 

Quanto ao problema da validade do aditamento ao acordo parassocial, o Supremo admitiu que, em tese geral, ele poderia colocar-se, mormente em face dos artigos 280 e 294 do CC. Porém, em seu entender, no caso vertente, o mesmo estava dentro dos limites da autonomia privada, não ofendendo as normas legais relativas ao capital de risco, nem se demonstrando uma contrariedade a tais preceitos da lei civil.

 

A tal respeito, tece, quanto ao primeiro aspeto, as seguintes considerações:

 

«O facto de a actividade do FCR implicar, nos termos da lei aplicável, uma participação temporária e a sua actividade ter como objecto um investimento na empresa considerada de potencial económico (a investida) não deixa de comportar risco.

Não significa que esse investimento em capital de risco não deva ser recuperado. Quem investe visa o ganho, ninguém investe para perder. O investimento feito pelos FCR é uma forma relativamente recente de financiamento num tempo de escassez do crédito bancário. Tem obrigatoriamente de ser temporário: é aleatório porquanto, apesar do ingresso de capitais e/ou de actividade de gestão na sociedade investida, o Fundo investidor, como é da lógica negocial, acautela a rentabilidade do seu investimento de risco.

Não considerar assim, seria admitir que a sociedade investida pudesse beneficiar do investimento accionista do FCR sem que esta se pudesse munir, negocialmente, de contrapartidas que assegurassem a rentabilidade do investimento, que, repete-se, é obrigatoriamente temporário, não podendo sequer a sociedade de risco ficar detentora do capital da investida, quando “desinvestir”, findo o prazo contratual acertado.»

 

Quanto ao segundo aspeto, observa:

 

«Foi acordado que o valor seria, no mínimo de € 670 500,00, ou seja o que fora investido, tendo sido previamente determinado o critério para definição do preço. O ter-se acordado que o valor do retorno seria igual ao valor do investimento, inscreve-se na margem de risco negocial, quer para o investidor, quer para o investido. O investimento em “private equity”, como instrumento de financiamento, não é, poder-se-á dizer, senão actividade de elevado risco.

Não tendo sido, sequer, alegada qualquer circunstância que, supervenientemente, tivesse alterado de maneira patentemente lesiva do Recorrente o equilíbrio contratual, a equação económica do negócio, nem tão pouco se tendo provado qualquer vício da vontade negocial do Recorrente, (como alegou sem êxito), não se entrevê que a alteração introduzida de 28.11.2008, ao acordo parassocial, constitua um negócio nulo.»

 

E, depois de citar Pais de Vasconcelos quanto aos riscos (e dilemas) envolvidos no capital de risco, na perspetiva da gestão da sociedade investidora e da sociedade investida, acrescenta:

 

«A questão colocada pelo Recorrente não se relaciona, in casu, com a gestão da sociedade investida, mas o contrato de financiamento pode comportar uma margem de risco semelhante face à natureza dos interesses em jogo e à preponderância que a entrada do FCR tem na vida da sociedade target.

Se essa margem de risco tivesse sido intoleravelmente transposta, poder-se-ia colocar em causa a validade do contrato, o que não é o caso. Conclui-se, assim que o acordo parassocial mesmo depois do aditamento de 28.11.2008, não enferma de nulidade.»

 

3. Breve comentário

 

Não se percebe bem o argumento. Com efeito, o problema em análise não tem a ver com a assunção de um risco intolerável, mas com o inverso disso: a eliminação do risco natural de uma participação social – no caso da titularidade de um FCR -, mediante a assunção de uma obrigação de compra da mesma pelo valor por que fora adquirida (sendo este o valor mínimo do desinvestimento) ou, sendo superior, pelo respetivo valor real.

E vistas assim as coisas, temos um sócio que, pela lei societária e estatutariamente, participa nos lucros e nas perdas sociais, mas que, em virtude do acordo parassocial em apreço, não participa nestas perdas. O que coloca um efetivo problema em face da legislação relativa ao capital de risco: pelo menos um problema regulatório, mas também, porventura, um reflexo problema de validade do acordo que elimina o risco de perda inerente à participação acionária assumida na sociedade financiada. Com efeito, isso pode ver-se como um desvirtuamento do capital de risco: in casu, o Fundo apenas realizou um investimento sem risco; não assumiu uma verdadeira posição de capital de risco. No plano jurídico-societário, o acordo é suscetível de ser qualificado como leonino, na medida em que isenta o Fundo das perdas inerentes à participação social assumida; embora este ponto de vista se preste a discussão [xxxiii]. Justificava-se, por isso, uma análise mais aprofundada do assunto.

Muito sucintamente, cabe dizer o que se segue. O desenvolvimento histórico do capital de risco, em Portugal, está, em boa medida, associado a um tempo em que havia fortes limitações ao crédito que os bancos podiam conceder. A constituição, por estes, de sociedades de capital de risco foi uma das vias adotadas para ultrapassar o problema.

Mas isso teve um «preço»: no fundo, a lógica operativa destas sociedades era a mesma dos bancos – elas eram, como estes, entidades financiadoras, fornecedoras de capital que se pretendia que fosse capital «alheio», embora utilizando instrumentos de capital próprio, as participações sociais assumidas nas entidades financiadas. Daí as comuns cláusulas de neutralização parassocial do risco inerente a estas participações, assegurando às SCR direitos de desinvestimento por um valor mínimo garantido, via de regra, correspondente ao montante investido.

Todavia, no plano legislativo e institucional, as coisas evoluíram[xxxiv]. Acentuando a especificidade do fenómeno do capital de risco - envolvendo um efetivo investimento em capital de risco, ou seja, um investimento participativo com boas perspetivas de obtenção de um rendimento elevado mediante a valorização da sociedade em que se investe, mas também com uma correspondente sujeição a perdas -, salienta-se, no ano de 2002, a perda, pelas SCR, da qualidade de sociedades financeiras, sujeitas à supervisão do BdP, e a sua passagem para a supervisão da CMVM[xxxv].

Quer isto dizer que as SCR e os FCR passaram legalmente a ter um objeto específico preciso, compreendendo no essencial e necessariamente uma atividade de investimento em instrumentos de capital próprio – com o inerente risco de perda -, ainda que porventura complementados com outras formas de financiamento. O simples financiamento, a título profissional, sem risco de perda do capital aplicado, qualquer que seja o esquema adotado para a eliminação desse risco, está fora do objeto legal destas entidades; ou, noutros termos, está fora da sua capacidade profissional. Daí a não sujeição à supervisão do BdP.

   Por conseguinte, conceder a certa entidade um financiamento, através da aquisição de participações sociais, não apenas com direito de desinvestimento assegurado, mas, ainda, com reembolso garantido do capital, significa exercer uma atividade de concessão de crédito legalmente não autorizada às SCR e aos FCR. Significa, ainda, uma subtração à lógica societária do investimento em instrumentos de capital próprio, máxime, quotas e ações, implicado no próprio conceito legal atual de capital de risco. E pode, inclusive, cair nas malhas do art. 6.1 do CSC, na medida em que se trata de atos vedados por lei.

 

4. Fundamentação da decisão do STJ (cont.). b) O problema da execução específica do contrato-promessa de compra e venda de ações tituladas

 

Quanto à questão da execução específica do contrato-promessa, cita-se vária doutrina e jurisprudência a favor da mesma[xxxvi], considerando em especial o problema da execução específica de contratos-promessas de compra e venda de ações tituladas, suscitado pelas regras de alienação destas, em especial, a exigência de entrega dos títulos, nas ações ao portador (art. 101 do CVM). A tal respeito, salienta-se o que se segue.

 

Estando em causa uma transmissão de ações tituladas ao portador fora do mercado da bolsa, como também se afirma no Acórdão recorrido, esta «só fica perfeita com a entrega dos títulos». Mas, como se decidiu no Acórdão do STJ de 15.05.2008, a validade do contrato de compra e venda não depende desta formalidade; não podendo confundir-se o modo da transmissão (no caso a entrega dos títulos) com exigências de forma do contrato (assim, também, o Ac.STJ de 13.0.3.2007, proc. 07A379).

 

E, depois de transcrever uma passagem do Acórdão do TRL de 12.07.2007 (proc. 2794/20007), no mesmo sentido, conclui:

«Sendo o contrato em apreciação passível de execução específica e valendo a decisão judicial como declaração de vontade, assim suprida, do Réu, promitente-comprador das acções, o negócio jurídico translativo das acções tem causa, que é o contrato de compra e venda, o contrato prometido, pelo que opera a transmissão da propriedade das acções para o recorrido.»

«De todo o modo, a execução específica de um contrato de compra e venda opera os efeitos translativos do contrato – arts. 874º e 879º do Código Civil – mesmo tendo por objecto acções tituladas ao portador, transmissão que ocorre fora do mercado bolsista, ficando o negócio a produzir os seus efeitos independentemente de não ocorrer simultaneidade entre o pagamento do preço e a entrega dos títulos.»

5. Breve comentário

O texto do Aresto suscita dúvidas:

1)      Por um lado, diz-se nele que a entrega dos títulos é necessária para a perfeição da transmissão, donde poderia retirar-se que ela opera por força do contrato de compra e venda, embora tenha eficácia e valor limitados; as citações doutrinais e jurisprudenciais vão, porém, no sentido de que só há transmissão com essa entrega.

2)      Por outro lado, no penúltimo parágrafo aqui transcrito, não é claro se existe um «negócio translativo» distinto da compra e venda, do qual esta é causa, ou se é a própria compra e venda, negócio causal, que opera a transmissão.

3)      Por fim, independentemente do que se defenda para as transmissões negociais em geral, do último parágrafo parece retirar-se que, havendo a conclusão de um contrato de compra e venda de ações tituladas ao portador, em execução específica de um contrato-promessa, o próprio contrato de compra e venda opera a transmissão. Mas não é absolutamente seguro que assim seja.

Seja como for, a solução dada ao problema da execução específica do contrato-promessa diverge da acolhida no acórdão proferido no mesmo dia, acima comentado.

 

 

 

 

 


 

III

Acórdão do STJ de 5.02.2019 (Paulo Sá)[xxxvii]

 

 

Tema principal do Acórdão: Ações tituladas ao portador – legitimação para o exercício dos direitos sociais.

Máxima de decisão: O portador de ações tituladas ao portador não está, sem mais, legitimado para exercer os inerentes direitos sociais, cabendo-lhe provar a sua aquisição.

 

Tema implicado: Iter translativo das ações tituladas ao portador.

Máximas de decisão: I - A transmissão das ações tituladas ao portador não se dá por mero efeito de um contrato translativo (título), sendo necessária, ainda, a entrega física dos títulos (modo). II – Do contrato apenas emerge o direito de exigir ao transmitente a entrega dos títulos.

 

 

Sumário:

 

«I. Tendo a A. intentado uma acção de anulação de deliberações sociais, competia-lhe a alegação e prova dos factos constitutivos do seu direito (art.º 342.º, n.º 1, do CC), a saber, a sua qualidade de accionista e a existência de deliberação não votada por si.

II. A propriedade sobre as acções – independentemente da sua forma de representação ou da modalidade que revestem – não se transmite por mero efeito do contrato” e também que “não se dá apenas e tão só por efeito do modo”, só se efectuando por força do contrato e do modo.

II. O adquirente que não recebeu as acções (ao portador) não pode aliená-las (a aquisição de acção por si alienada seria considerada uma aquisição a non domino), nem onerá-las, nem exercer qualquer das faculdades inerentes à titularidade da acção, designadamente as de votar, receber dividendos, juros ou outros rendimentos (porque lhe falta a legitimidade para tal).

III. Por outro lado, o contrato de sociedade em apreço impôs, no seu art.º 10º que os accionistas com direito de voto na assembleia geral são os que têm as suas acções averbadas ou depositadas numa instituição de crédito ou registadas nos termos legais até 10 dias antes da mesma, o que não está restringido pelo CSC.

IV. Uma vez que a ré pôs em causa que a autora fosse titular do direito de propriedade sobre as acções, afastando a respectiva presunção de propriedade, incumbia a esta, quer no momento em que se apresentou nas assembleias, quer no momento em que instaurou a acção, ter alegado e provado, o negócio causal subjacente, através do qual, juntamente com a entrega das acções, adquiriu o direito de propriedade sobre as mesmas.

V. E deveria a A, no cumprimento do disposto no artigo 10.º do pacto social, ter provado o averbamento ou depósito das acções de que se apresentava como portadora, ou tê-las registado até ao 10.º dia anterior ao designado para as Assembleias Gerais, em que pretendeu exercer o direito de voto.

VI. A alteração legislativa operada no CVM, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 486/99, de 13 de Novembro, pela da Lei n.º 15/2017, de 3 de Maio e o projecto de lei n.º 205/XIII, que lhe serviu de base, reforça o entendimento supra, ao estabelecer uma proibição de emissão de novos valores mobiliários ao portador e ao apresentar como justificação a criação de um sistema mais controlado e que permita ganhos “de segurança, de credibilidade, de simplificação e de integração sistemática”.»

 

1. O caso

 

Numa SA com um capital de 100 000 €, dividido em 20 000 ações tituladas ao portador com o valor nominal unitário de 5 €, A pretendeu, através de representante, participar em duas reuniões da AG que tiveram lugar no dia 30.08.2014, exibindo 10 500 títulos; mas tal pretensão foi-lhe negada pela presidente da mesa. Tais reuniões respeitavam às contas de 2004 a 2013 (decorrendo da convocatória que não terá havido a aprovação e a certificação das mesmas durante todo este período[xxxviii]).   

A sociedade fora constituída no ano 2000, entre D e C, marido e mulher, que ficaram titulares de 9 940 ações cada um, e três filhas, E, F e H, com 40 ações cada uma; podendo as ações ser nominativas ou ao portador. O art. 7 do pacto social estabelecia um direito de preferência na alienação de ações nominativas a não acionistas, a título oneroso ou gratuito. O art. 10, por sua vez, estatuía designadamente: i) que a AG seria constituída pelos «acionistas com direito a voto» (conferindo 100 ações um voto) que tivessem as suas ações «averbadas ou depositadas» numa IC ou «registadas nos termos gerais», até 10 dias antes da assembleia; e ii) que os acionistas que não pudessem comparecer podiam fazer-se representar através de outro acionista ou membro dos corpos sociais, mediante carta com indicação do representante.

Em 7.09.2012, C vendeu às filhas as suas ações. Não há notícia de que tenha havido consentimento do marido. Os títulos também não terão sido entregues, estando na posse e à guarda de D. Por isso, as filhas requereram, ao que tudo indica em 2014, a notificação judicial avulsa deste para proceder à sua entrega; e, em face da recusa, instauraram ação executiva para a entrega de coisa certa. 

Na primeira reunião da AG de 30.08.2014, dos acionistas, apenas há notícia de ter estado presente a presidente da mesa. Na segunda, terão estado ela e o mandatário de «duas outras senhoras que o mandatário subscritor não reconheceu ou identificou» (sic). A presidente da mesa não contestou os poderes do representante da A, mas não admitiu a sua participação «por não lhe reconhecer a qualidade de acionista da sociedade nos termos do art. 10.º do Pacto social uma vez que, a ser verdadeira a transmissão [para ela] das ações, não cumpriu o disposto no artigo 7.º do Pacto Social, [i] seja no que toca ao reconhecimento por parte da sociedade da transmissão de ações, [ii] seja na notificação para o exercício da preferência ali previsto, [iii] seja por último porque não deu nota à sociedade da transmissão daquelas ações e por isso não consta[va] do respetivo livro de registo de ações».

Em face do impedimento de participar nas reuniões da AG, A instaurou uma ação declarativa de anulação das deliberações. A 1ª instância julgou a ação procedente, mas a Relação revogou a decisão, absolvendo a ré do pedido[xxxix]. A interpôs recurso para o Supremo, que, no entanto, negou a revista.

Nas alegações de recurso, por um lado, A invocou a presunção de titularidade das ações conferida pela posse dos títulos - baseando-se no art. 104.1 do CVM e em diversas regras do CC, relativas à posse e, ainda, no art. 408.1 deste Código - e observou que, em conformidade, o ónus de prova de falta de legitimidade cabia à sociedade. Por outro lado, entendeu que o art. 10 do pacto social respeitava apenas às ações nominativas, sendo inaplicável ao caso, dado tratar-se de ações ao portador[xl].

Na resposta, a sociedade, por um lado, contra-alegou que a ação de anulação pressupunha a prova da qualidade de acionista por parte da A (autora), o que não sucedera, por outro lado, que o direito de participação na AG apenas é concedido a quem tem essa qualidade, cabendo a quem pretende exercê-lo a prova desta (arts. 59.1 do CSC e 341.1 do CC), prova que A não fizera. Além disso, a existir uma presunção de titularidade, ela teria sido elidida pela ré documentalmente, através do aludido contrato de compra e venda das ações realizado entre mãe e filhas. A qualidade de acionista não se bastaria com a mera detenção das ações ao portador, já que para a sua transmissão é necessário um título, negócio causal ou subjacente válido, e essa entrega.

 

 

2. Fundamentação da decisão do STJ: o portador de ações ao portador não está legitimado para o exercício dos respetivos direitos sociais

 

No essencial, o STJ, no Aresto em análise, perfilhou a tese de que o portador de ações tituladas ao portador não se encontra legitimado para exercer os direitos sociais inerentes a essas ações, cabendo-lhe, para o efeito, provar a titularidade das ações. Na respetiva fundamentação, salienta-se o seguinte:

 

2.1 Iter translativo das ações valores mobiliários. Necessidade e insuficiência do negócio causal

 

1)      O vocábulo «ação» compreende três significados - o de fração do capital, o de participação social e o de «documento que incorpora a situação jurídica do sócio» (valor mobiliário) -, sendo esta a aceção que aqui interessa.

2)      É questão controvertida saber se a transmissão das ações - tituladas ou escriturais - se dá por mero efeito do contrato (tese 1), se apenas ocorre com observância das formalidades exigidas pelo CVM - que no caso das ações ao portador consistia, até à sua extinção, na «traditio ou entrega física» dos títulos, nas ações tituladas nominativas consiste na declaração no título seguida de registo e, nas ações escriturais, no registo na conta do adquirente - (tese 2), ou se não depende de um contrato mas tão só de atos independentes do contrato (sistema alemão).

3)      Embora o entendimento prevalente na doutrina tenha sido o da consensualidade, ainda hoje perfilhado por Pedro Albuquerque, vendo na entrega dos títulos ao portador e nas formalidades previstas para as ações nominativas meros requisitos de legitimação para o adquirente exercer os direitos sociais, segue-se a posição acolhida no acórdão do STJ de 15.05.2008 (e de 13.03.2007) e em autores como Coutinho de Abreu, Vera Eiró, Soveral Martins e Ferreira de Almeida, segundo a qual a transmissão «só fica perfeita com a entrega (ações tituladas ao portador), a declaração de transmissão escrita no título (ações tituladas nominativas) ou o registo em conta (ações escriturais)»; mas sendo necessário, ainda, um título ou negócio causal válido. 

4)      Com efeito, a crítica da tese consensualista constante do acórdão de 2008 é elucidativa: i) o facto de o adquirente apenas poder exercer os direitos inerentes às ações com o respetivo registo ou a posse dos títulos confirma a tese oposta; ii) o adquirente que não recebeu os títulos (nas ações tituladas ao portador) ou que não beneficia de declaração de transmissão e de registo a seu favor (nas ações tituladas nominativas) não pode aliená-las (a aquisição de ação por si alienada seria uma aquisição a non domino), nem onerá-las, nem exercer qualquer das faculdades inerentes à titularidade das ações, porque lhe falta legitimidade para tal; iii) «Não pode, pois, ser qualificado como titular das ações, como titular de um direito de propriedade sobre elas, não se compreendendo, nem tendo sentido a afirmação da titularidade de um direito vazio de conteúdo».

5)      «Na verdade, por mero efeito do contrato, apenas adquire o direito a requerer o registo das ações (nominativas) ou o direito de exigir do transmitente a entrega das ações (ao portador)», ou seja, simples direitos de crédito, não as facultades próprias de um «direito absoluto, do direito de propriedade». A propriedade não se transfere.

6)      O art. 408.1 do CC admite exceções à regra da eficácia real dos contratos e o CVM previu uma exceção a essa regra [e ao art. 879a) do CC]. Assim, além dos acórdãos do STJ de 15.05.2008 e de 13.03.2007, os do TRC de 3.07.2012 e 15.11.2016 (contra, um de 23.05.2010) e os do TRL de 29.11.2011 e 16.01.2018.

 

2.2 Ação de anulação de deliberações sociais. Legitimidade

 

7)      Independentemente desta questão, tendo A intentado ação de anulação de deliberações, tomadas em AG na qual foi de facto impedida de participar, competia-lhe a alegação e prova dos factos constitutivos do direito (art. 342.1 do CC), ou seja: i) qualidade de acionista; e ii) a existência de deliberação não votada por si[xli].

8)      É certo que ela alega ser portadora dos títulos, pelo que gozaria da presunção de propriedade (art. 1268 do CC), o que lhe conferiria legitimidade para o exercício dos inerentes direitos sociais. Porém, «uma vez que a ré pôs em causa» que ela fosse «titular do direito de propriedade sobre as ações», incumbia-lhe «ter alegado e provado» – quer no momento em que se apresentou na AG, quer naquele em que instaurou a ação de anulação - «o negócio causal subjacente, através do qual, juntamente com a entrega das ações, adquiriu o direito de propriedade sobre as mesmas».

9)      O que se compreende, porque, em tese, o portador de títulos de ações ao portador pode tê-los achado ou furtado, «sendo certo que a maior parte do lote das ações de era portadora tinha sido cedida pela sócia C à filhas (…), estando a totalidade das ações à guarda do sócio e pai das cessionárias, D».

 

2.3 Regras estatutárias de participação na AG. Extinção das ações ao portador

 

10)  Além disso, o pacto social previu no art. 10 que poderiam participar na AG os acionistas com «ações averbadas ou depositadas numa instituição de crédito ou registadas nos termos legais até 10 dias antes da mesma, o que não está restringido pelo CSC». Como este «se aplica indubitavelmente às ações ao portador», estando provado que todas as ações eram ao portador e «constavam de um livro de registo», competia à A a prova de um destes atos.

11)  De resto, importa salientar que, por razões tributárias e de transparência, as ações ao portador, que pela sua fácil transmissão podem dar azo à manipulação do exercício dos direitos sociais, foram recentemente extintas.

 

3. Breve comentário

 

3.1 Transmissão de ações valores mobiliários, em especial, ações tituladas ao portador

 

1)      Como se notou, no que respeita à transmissão de ações valores mobiliários (fora de mercado regulamentado, por ato voluntário entre vivos, a título singular), o Acórdão perfilha a tese neo-formalista, segundo a qual o mero acordo das partes não basta para operar o efeito translativo, tornando-se necessário o adicional cumprimento das formalidades previstas no CVM: no caso dos valores mobiliários ao portador, a traditio dos títulos, que se afirma ser uma entrega física. Com efeito, a crítica à tese consensualista já teria sido feita no Acórdão de 15.05.2008, cuja argumentação incorpora[xlii]. Acrescenta-se, ainda, no que respeita às ações tituladas nominativas, que por efeito do contrato apenas se adquire o direito a requerer o registo.

2)      Justificam-se algumas observações. Primeira: nesta crítica às teses da consensualidade, apenas se descortinam dois argumentos: i) se o adquirente apenas pode exercer os direitos inerentes às ações com o respetivo registo ou a posse dos títulos, é porque estas formalidades são necessárias para a transmissão; ii)  se os títulos não são entregues a quem pretende adquirir ações ao portador, ele está impossibilitado de exercer os correspondentes direitos; logo o pretenso direito de propriedade sobre elas seria um direito vazio de conteúdo.

3)      Na verdade, a adicional afirmação de que o adquirente que não recebeu os títulos, nas ações tituladas ao portador, carece de legitimidade para as alienar – e de que a aquisição de ações por si alienadas seria uma aquisição a non domino - é uma simples afirmação, contraditada pelos partidários das transmissões consensuais: para estes, se houver uma transmissão de ações por efeito direto do contrato, é claro que o adquirente tem legitimidade para as alienar e, portanto, a aquisição será a domino. A legitimidade (material) não se confunde com a legitimação cartular (legitimidade formal, conferida pelo título, que pode não coincidir com aquela).

4)      No caso das ações tituladas nominativas, a afirmação de que quem não beneficia de declaração de transmissão e de registo a seu favor também as não pode alienar, pelo mesmo motivo, justifica observação análoga. Notando-se, ainda, no que respeita ao exercício dos direitos sociais, uma confusão entre formalidades translativas e registo legitimador.

5)      Quanto ao primeiro argumento – o de que, se o adquirente apenas pode exercer os direitos inerentes às ações com o respetivo registo ou a posse dos títulos, é porque estas formalidades são necessárias para a transmissão –, basta um exemplo para evidenciar que o mesmo não procede: se A transmitir a B uma quota ou um lote de ações simples (não valores mobiliários) mas a transmissão não for notificada à sociedade ou, se dependendo do consentimento desta, houver sido realizada sem este ter sido prestado, o titular da quota ou das ações é, nos termos gerais de direito, B, mas, segundo o direito societário, A permanece sócio e legitimado para o exercício dos direitos sociais, não B.

6)      Do mesmo modo, as formalidades relativas às ações valores mobiliários – declaração de transmissão aposta nos títulos ou entrega destes – são necessárias para se verificar uma transmissão das mesmas suscetível de ser oposta à sociedade, eficaz em relação a ela se se verificarem as demais condições desta eficácia, mas não o são, ou não o são necessariamente, para haver uma transmissão eficaz entre as partes (e, inclusive, em relação a terceiros em geral). Estão aqui em jogo dois conceitos essenciais do direito das sociedades e do direito do títulos de crédito e dos valores mobiliários, mas ausentes no discurso do aresto: o de transmissão de ações eficaz em relação à sociedade, em contraposição a uma transmissão sem essa eficácia[xliii]; e o de legitimação, cartular ou escritural, relativa ao exercício dos direitos sociais, que não se confunde com o de titularidade das ações, em que via de regra se funda a legitimidade material.  

7)      Quanto ao argumento do direito vazio de conteúdo, bastam também alguns exemplos para demonstrar a sua não procedência: vejam-se o caso das ações próprias (em que há uma titularidade das ações sem encabeçamento dos correspondentes direitos e vinculações sociais, que ficam suspensos), o disposto no art. 227.2 (em que há uma suspensão semelhante de direitos relativos a quotas da titularidade dos herdeiros ou legatários após a aceitação da herança ou do legado), as situações de transmissão de quotas ou ações ineficazes face à sociedade (cfr. o exemplo dado a respeito do argumento precedente), etc. Tenha-se também presente que, passando a titularidade das ações para o adquirente, por efeito do contrato, o alienante fica naturalmente obrigado: a não dispor das mesmas, a exercer os direitos sociais no interesse e por conta do novo titular, etc. Não existe, portanto, vazio.

8)      A ulterior alusão à propriedade, neste contexto, carece, igualmente, de razão de ser, porque não é de um direito desta natureza que estamos a falar[xliv].

9)      Na realidade, o tema é muito mais complexo do que aquilo que transparece dos acórdãos em apreço e os argumentos, a favor e contra as teorias em confronto, vão muito para além daquilo que neles está espelhado. Voltar-se-á ao tema adiante (§ 2.º). Mas levanta-se já uma ponta do véu: o CVM, nos arts. 80 (101) e 102, contém exceções à regra da transmissão por mero efeito do contrato[xlv] ou contém regras de transmissão especiais para as ações enquanto valores mobiliários? Sendo este o caso, como se resolve um eventual conflito entre uma transmissão de direito comum (consensual) e uma transmissão segundo o modo de circulação próprio do valor mobiliário?

10)  Segunda observação: o Supremo não se limita a afirmar que a teoria translativa adequada é a do título e do modo. Diz, ainda, que, no caso das ações tituladas ao portador, este modo consiste na entrega física dos títulos.

11)  Acerca deste ponto, cabe, no entanto, recordar que a teoria em apreço admite a entrega simbólica e as formas espiritualizadas da traditio brevi manu (por ex., aquisição por comodatário) e do constituto possessório (v.g., alienação com retenção em penhor ou usufruto).

12)  Terceira observação: a ideia de que, no caso das ações tituladas nominativas, o beneficiário do contrato apenas adquire o direito a requerer o registo das ações está em aparente desacordo com o art. 102, que apenas reconhece, pelo menos literalmente, legitimidade ao alienante [art. 102.4/2c)][xlvi].

13)  Mas este é um ponto que merece reflexão: em face dos princípios cartulares e do art. 55.1, o adquirente empossado dos títulos, com declaração de transmissão a seu favor, não deve considerar-se legitimado para o efeito? Voltar-se-á ao tema adiante (§ 3.º).

14)  Quarta observação: as teses consensualistas conhecem duas variantes. Numa delas, havendo um conflito entre uma transmissão de direito comum (consensual) e uma segunda transmissão jus-mobiliária, esta segunda prevalece sempre, mesmo tendo o adquirente cartular (ou escritural), no momento da aquisição, conhecimento da primeira[xlvii]. Ressalvam-se apenas excecionais situações de fraude. Na outra, a segunda aquisição será uma aquisição a non domino, de quem já não tem legitimidade para alienar, e, portanto, o adquirente apenas será protegido nos termos do art. 58 do CVM.

15)  Nas críticas ao consensualismo, pressupõe-se comummente esta segunda variante; mas não pode esquecer-se a primeira.

16)  Quinta observação: toda a emissão de valores mobiliários, incluindo ações, envolve um registo – o registo global da emissão (art. 43 do CVM). Este registo, mesmo que identifique os titulares originários das ações, não prova a titularidade das mesmas. No caso das ações tituladas ao portador, não há nenhum registo de titularidade; nem a legitimação é registal, mas cartular.

 

3.2 Os títulos ao portador como títulos de legitimação real

 

17)  Os títulos ao portador são necessários para exercer os direitos neles inscritos[xlviii] e, como são, ainda, títulos legitimadores (art. 55 do CVM) – mais especificamente, trata-se de títulos de legitimação real, conferida pela simples posse dos títulos[xlix] -, são também suficientes[l].  Quem os exibe não tem de fazer nenhuma prova adicional; nem sequer tem de revelar quem é o verdadeiro titular.

18)  Este conceito de legitimação – cartular, no que respeita aos valores mobiliários titulados ao portador – é um conceito fundamental dos títulos de crédito e dos valores mobiliários[li], decisivo para resolver o caso, mas está ausente do texto do acórdão.

19)  O artigo 55.1 do CVM diz expressamente: «Quem, em conformidade com o registo ou com o título, for titular de direitos relativos a valores mobiliários está legitimado para o exercício dos direitos que lhe são inerentes». Ou, numa formulação mais correta: em matéria de valores mobiliários, aquele que justifica o seu direito pelo registo ou pelo título considera-se legitimado para o seu exercício [lii].

20)  No caso, encontrando-se a A cartularmente legitimada, para exercer o direito de impugnação das deliberações sociais, cabia à ré provar a sua falta de legitimidade material; não o inverso.

21)  No que respeita ao direito de participar nas reuniões da AG, legalmente a situação seria a mesma. E, aqui, a tese neo-realista da transmissão joga contra o decidido, porque as supostas adquirentes das ações de C não ficaram na posse dos títulos. Mesmo que se admitam as formas espiritualizadas de traditio, não há elementos para afirmar que alguma delas existiu[liii].

22)  Importa ver, no entanto, se, quanto a este aspeto, havia regras estatutárias derrogatórias do regime legal; relevantes para a discussão no âmbito da ação de anulação. Atentemos neste aspeto.

 

3.3 Regras estatutárias de legitimação

 

23)  No art. 10 do pacto social, encontra-se um regime especial de legitimação, que o STJ considerou permitido pelo CSC[liv]: as ações deveriam estar «averbadas ou depositadas» numa instituição de crédito ou «registadas nos termos gerais», até 10 dias antes da assembleia.

24)  Este carecia, no entanto, de interpretação, no contexto global do contrato de sociedade, para verificar a sua aplicabilidade ou não às ações ao portador. Sendo certo que, a respeito destas, não tem cabimento falar em averbamento ou registo.

 

3.4 Observação final

 

25)  O verdadeiro thema decidendum do Acórdão respeita à legitimidade para o exercício de direitos sociais, no caso das ações tituladas ao portador. Para o resolver, o Supremo não tinha de se pronunciar sobre o iter translativo destas. Nessa medida, a verdadeira máxima de decisão será aquela que se referiu como principal, ou seja: O portador de ações tituladas ao portador não está, sem mais, legitimado para exercer os inerentes direitos sociais, cabendo-lhe provar a sua aquisição. Se para esta ocorrer era necessário apenas um contrato translativo ou, ainda, um modo, é questão supérflua.

26)   Quanto à solução dada, já exprimimos a nossa discordância: o portador das ações encontrava-se cartular ou formalmente legitimado (legitimado pelos títulos acionários); pelo que a eventual falta de legitimidade material teria de ser alegada e provada pela sociedade. Só assim não seria se se concluísse que os estatutos continham, para as ações ao portador, uma regra especial de legitimação, quanto ao direito de participar em assembleias gerais.

27)  O Aresto não é, porém, uma espécie isolada. Apresenta-se a seguir um outro, do TRL, na mesma linha.

 

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IV

Acórdão do TRL de 16.01.2018 (Isabel Fonseca)[lv]

 

 

Tema versado no Acórdão: Ações ao portador – legitimação para o exercício dos direitos sociais.

Máxima de decisão: O portador de ações tituladas ao portador não está, sem mais, legitimado para exercer os inerentes direitos sociais, cabendo-lhe provar, ainda, o negócio subjacente à detenção dos títulos.

 

 

 Sumário:

 

1.– Nos termos do art. 380º, nº1 do C.P.C., “qualquer sócio” pode requerer a suspensão das deliberações sociais, nos moldes aí enunciados, o que significa que essa qualidade é pressuposto da instauração do referido procedimento cautelar especificado, incumbindo ao demandante o ónus de alegação e prova de que é acionista da sociedade anónima cuja deliberação está em causa.

2.– O que, arrogando-se os requerentes serem titulares de um conjunto de ações ao portador, passa pela alegação e prova (i) de que são possuidores dessas ações e (ii) do negócio causal à detenção dos títulos[lvi].

 

1. O caso

 

No presente caso, houve a instauração de uma providência cautelar de suspensão de deliberações sociais de certa sociedade anónima. Os requerentes foram acionistas desta sociedade e terão alienado as suas ações a uma SGPS, cabeça de grupo, de que eram sócios, a qual terá ficado, em agosto de 2013, acionista única dessa SA (e de outras sociedades operacionais de cabeleireiro). As deliberações cuja suspensão se requer foram tomadas em 2017, em «AG» universal composta apenas pela SGPS, na qualidade de acionista única, sem convocação dos requerentes; à semelhança do que já sucedera em assembleias anteriores, em que, inclusive, a SGPS fora representada por um dos requerentes.

A instauração da providência vem na sequência da destituição dos requerentes como administradores.

Tendo eles mantido na sua posse os títulos acionários[lvii], importava saber a quem pertenciam as ações e, designadamente, apurar se ocorrera a sua transmissão para a SGPS ou não. As ações eram ao portador e tinham aposto no verso de cada título um «endosso expresso» a favor da SGPS.

Mais especificamente, colocava-se, antes de mais, a questão de saber se os requerentes, apesar da declaração de transmissão aposta nos títulos, por se tratar de títulos ao portador, se encontravam (cartularmente) legitimados para participar na reunião da AG (cfr. o art. 55.1 do CVM), devendo ter sido convocados, e para propor a providência cautelar. Sendo esse o caso, colocavam-se duas ulteriores questões: i) a de saber se tinham legitimidade material para o fazer (por serem titulares das ações) ou se, apesar daquela legitimação, a sociedade provara a falta desta legitimidade material, mormente em face do teor dos títulos e da atuação de um dos requerentes como representante da SGPS na qualidade de sócia única; ii) no caso de não se considerar feita esta prova, a de saber se havia um exercício abusivo do direito de ação (venire contra factum proprium).

Quanto à primeira destas questões, o TRL (como a primeira instância) considerou que a prova de falta de legitimidade material fora feita (havia factos donde decorria pertencerem as ações à SGPS)[lviii]. Quanto à segunda, entendeu também que se verificava uma situação de abuso.

 

Apesar disso, não obstante ter-se dado como provada a transmissão das ações para a SGPS, acrescenta-se: «E se é certo que, pese embora esse negócio, os requerentes se apresentam como detentores das referidas ações ao portador, também se considera, seguindo a apontada orientação [teoria do título e do modo, acolhida no AcSTJ de 2008], que se impunha que os requerentes alegassem e provassem o negócio causal à detenção dos títulos, o que não lograram fazer, não bastando, para o efeito que ora pretendem – aquisição da qualidade de acionistas da requerida –, a prova da mera detenção das ações».

 

2. Breve nota

 

2.1 Este último trecho – que, aliás, se encontra refletido no sumário do Acórdão, em especial no n.º 2 - não se percebe bem. O caso já estava decidido sem ele. A menos que se tenha pensado numa hipotética retransmissão posterior das ações da SGPS para os requerentes.

Atendendo apenas a ele, justificam-se as mesmas observações que se fizeram a respeito do anterior acórdão do STJ, ou seja: quem se mostra portador de ações ao portador encontra-se cartularmente (ou formalmente) legitimado para o exercício dos correspondentes direitos sociais (art. 55.1 do CVM; cfr. o art. 104.1) – a menos que, no que toca à participação em reuniões da AG, haja uma cláusula estatutária, por exemplo, a exigir o depósito prévio dos títulos na sede da sociedade. Não carece, por isso, de fazer prova da sua legitimidade material (normalmente conferida pela titularidade das ações). Esta presume-se, cabendo à sociedade, se tiver interesse nisso, ilidir a presunção; ou seja, provar que, apesar da aparência de legitimidade inerente à posse dos títulos (isto é, apesar da legitimação cartular), não há realmente legitimidade. Noutros termos, o portador das ações não precisa de justificar o direito que se arroga provando qualquer negócio causal aquisitivo.

No caso concreto, havia, no entanto, elementos pelo menos prima facie comprovativos de que as ações haviam passado para a titularidade da SGPS. A própria inscrição constante dos títulos o indicava; acrescendo o comportamento dos requerentes, mormente de um deles, ao longo de vários anos. Isto por um lado. Por outro lado, se num título ao portador se apõe uma inscrição de que ele pertence a outra pessoa, descaracterizando-o como título ao portador, em rigor ele deixa de cumprir a função circulatória e legitimadora que lhe é própria.  

 

2.2 Mas há uma questão adicional: tendo havido um contrato de alienação das ações a favor da SGPS, sem entrega dos títulos, houve realmente transmissão em face da teoria do título e do modo? Pelo menos seguindo a tese do STJ segundo a qual é precisa a entrega física, isso não parece ter acontecido.

Considerando as formas espiritualizadas de entrega, pode entender-se que a inscrição da declaração de transmissão nos títulos, que aliás os descaracteriza como títulos ao portador, inverteu o título da posse, passando os requerentes a detê-las em nome alheio, como o seu comportamento posterior revela (sobretudo o de um deles).

 


V

Acórdão do STJ de 15.05.2008 (Santos Bernardino)[lix]

 

Tema principal do Acórdão: Alienação de ações valores mobiliários – validade formal.

Máxima de decisão: A validade de um contrato de alienação de ações valores mobiliários não depende das formalidades necessárias para operar a transmissão.

 

Tema secundário: Iter translativo das ações valores mobiliários.

Máxima de decisão: A transmissão das ações valores mobiliários fora do mercado da bolsa requer um contrato translativo (título) e o cumprimento de certas formalidades adicionais (modo): entrega dos títulos, no caso das ações tituladas ao portador; aposição nos títulos de uma declaração de transmissão, se as ações forem tituladas nominativas; e registo em conta, se forem escriturais.

 

 

Sumário:

 

«1. A transmissão das acções tituladas e escriturais, fora do mercado bolsista, só fica perfeita com a entrega (acções tituladas ao portador), a declaração de transmissão escrita no título (acções tituladas nominativas), ou o registo em conta (acções escriturais); mas estes actos – que integram e traduzem o modo – não bastam, só por si, para operar a transmissão, que exige que eles se apoiem num título válido, num negócio jurídico, o negócio causal subjacente.

2. Tal significa que a transmissão não se opera por mero efeito do contrato, nem apenas e só por efeito do modo, só se efectuando por força do contrato e do modo.

3. A compra e venda de acções não é um contrato real quoad effectum – é um contrato com efeitos imediatos meramente obrigacionais, como os contratos do mesmo tipo tendo por objecto títulos de crédito em papel, para cuja transmissão se exige a tradição, o endosso ou acto equivalente.

4. Os actos exigidos por lei, e que integram o modo, não se referem ao contrato, mas sim à transmissão da propriedade das acções: são actos essenciais para a transmissão destas, mas não contendem com a validade formal do contrato.

5. Assim, um contrato de compra e venda de acções ao portador não deixa de ser válido pelo facto de o transmitente não ter feito entrega, ao adquirente, dos títulos representativos das acções; e este pode requerer judicialmente o cumprimento do contrato, a entrega das acções.»[lx]

 

Breve comentário

 

1. O analisado acórdão do STJ de 5.02.2019, no que respeita ao modo de transmissão de ações valores mobiliários, segue, em grande medida ipsis verbis, o presente Aresto[lxi], em que - a respeito das ações (tituladas) em geral, porque no caso a espécie não foi indicada – se acolhe a doutrina do título e do modo, citando sobretudo Coutinho de Abreu e Vera Eiró.

Porém, em nenhum dos casos o thema decidendum era esse. Concretamente, no Acórdão que agora se comenta, a questão a decidir consistia em saber se - adotando tal doutrina - as formalidades dos arts. 101.1 e 102.1 do CVM (também do 80.1) são requisitos de forma do negócio causal, determinando a sua falta a nulidade do negócio (tese defendida pela autora, em ação não contestada e sem alegações da ré, recorrida), ou não o são. Quanto a ela, novamente citando Coutinho e Abreu e Vera Eiró, o Supremo, como aliás as instâncias, considerou estarem em causa apenas requisitos da produção do efeito translativo e não de requisitos de forma[lxii].

 

Note-se que, para resolver esta questão, não era preciso afirmar a doutrina do título e do modo, embora se compreenda que o STJ haja tratado dela, porque a autora a defendia, para sustentar a sua tese da nulidade do contrato causal, in casu uma compra e venda, realizada sem entrega dos títulos (apesar de pago o preço), que na sua opinião seria um contrato obrigacional. Ou seja, para decidir o caso que lhe foi submetido, o Tribunal não tinha que tomar posição acerca do iter translativo. Com efeito, se se entender que o contrato de compra e venda tem eficácia real, ainda se torna mais nítida a independência do mesmo em relação a tais formalidades, surgindo estas claramente como um elemento externo apenas necessário para consolidar a transmissão - que, como transmissão geral que é, cede perante uma eventual transmissão cartular ou escritural -, para se aplicar o regime de tutela da circulação do art. 58 do CVM[lxiii] e para a transmissão ter eficácia plena, incluindo eficácia legitimadora.

Sendo assim, a máxima de decisão deveria ser, em rigor, a seguinte: ainda que se adote a teoria do título e do modo quanto à transmissão das ações valores mobiliários, a validade de um contrato de alienação destas não depende das formalidades que compõem o modo.

 


VI

Súmula dos Acórdãos

 

 

As questões de que se ocupam os Acórdãos são, sobretudo as seguintes:

 

1.ª) Um contrato-promessa de compra e venda de ações valores mobiliários (titulados) é suscetível de execução específica?

Quanto a ela, respondeu-se negativamente no Acórdão do STJ de 21.03.2017 relatado por Alexandre Reis; e respondeu-se afirmativamente em acórdão do mesmo tribunal e da mesma data, de que foi relator Fonseca Ramos. Como resulta dos respetivos comentários, entendemos que - seja qual for a doutrina perfilhada acerca da transmissão de ações valores mobiliários, mediante ato voluntário entre vivos a título singular - a execução específica, nos termos do art. 830 do CC, é de admitir, ainda que a mesma seja, por si só, insuficiente para a integral satisfação do interesse típico do adquirente.

 

2.ª) A transmissão de ações valores mobiliários, mormente ações tituladas, mediante ato voluntário entre vivos a título singular, fora de mercado regulamentado, dá-se por mero efeito do contrato, por exemplo, um contrato de compra e venda, ou, para a mesma ocorrer, é necessário algum ato ou formalidade adicional?

 Trata-se de uma questão controvertida, mas na jurisprudência prevalece a tese segundo a qual o CVM perfilha a antiga teoria do título (negócio causal) e do modo; derrogando a regra geral da transmissão solo consensu. O Acórdão de referência é o do STJ de 15.05.2008, relatado por Santos Bernardino, embora, como se observou, essa não fosse a questão central sobre a qual o tribunal tinha de se pronunciar. Na mesma linha, vão os acórdãos do Supremo de 21.03.2017, relatado por Alexandre Reis, e de 5.02.2019, de que foi relator Paulo Sá, conquanto nestes casos a questão central também fosse outra. Já do Acórdão de 21.03.2017 relatado por Fonseca Ramos é possível retirar que, ocorrendo a conclusão de um contrato de compra e venda de ações tituladas ao portador em execução de um contrato-promessa, a transmissão das mesmas constitui um efeito direto do contrato; embora o texto não seja isento de dúvidas.

 

3.ª) Se for de adotar a teoria do título e do modo quanto à transmissão das ações valores mobiliários, a validade de um contrato de alienação destas depende das formalidades que compõem o modo?

Respondeu, com razão, negativamente o STJ no Acórdão de 15.05.2008, relatado por Santos Bernardino[lxiv].

 

4.ª) Uma preferência estatutária relativa à transmissão de ações tituladas nominativas tem eficácia real, podendo o titular da preferência, em caso de desrespeito da mesma, intentar a competente ação de preferência?

Trata-se também de uma questão controvertida. Teve uma resposta negativa no Acórdão do STJ de 21.03.2017, relatado por Alexandre Reis.

 

5.ª) São válidos os dos acordos parassociais celebrados entre um acionista e uma entidade de capital de risco que asseguram a esta a recuperação do valor investido em ações da entidade financiada?

A questão teve uma resposta afirmativa no Acórdão do STJ de 21.03.2017, relatado por Fonseca Ramos. Mas a solução mostra-se discutível.

 

6.ª) No caso das ações tituladas ao portador, a posse ou detenção dos títulos é, em geral, suficiente para o exercício dos correspondentes direitos sociais?

Responderam negativamente o STJ, no Acórdão de 5.02.2019, relatado por Paulo Sá, e o TRL, no Acórdão de 16.01.2018, relatado por Isabel Fonseca. Segundo estes arestos, o portador das ações teria de provar a existência de um título aquisitivo das mesmas. Esta doutrina está, porém, em direta contradição com o caráter legitimador dos títulos ao portador, como resulta do art. 55.1 do CVM[lxv].[lxvi]

 


§ 2.º

O problema das transmissões solo consensu

 

 

1. Como se escreveu num texto dos anos 80 do século XX, dedicado à compra e venda como contrato translativo, segundo o princípio da consensualidade – também chamado princípio do mero contrato ou princípio da eficácia real –, «nos contratos translativos, a transmissão do direito dá-se solo consensu. É o próprio acordo a causa da transmissão», no sentido de que o contrato justifica e opera esta. «Já no direito anterior ao código civil de 1867 as partes costumavam atribuir aos contratos celebrados por escrito eficácia real e, segundo Coelho da Rocha, tal era de “attender e respeitar”[lxvii]». «No direito actual, o princípio do mero contrato resulta dos arts. 408 e 409 do CC e também do articulado relativo à compra e venda [arts. 874 e 879 a); cf. o art. 939 e, para a doação, o art. 954 a)], sobretudo, interpretando-os à luz dos trabalhos preparatórios do Código Civil, donde decorre o propósito de manter a tradição jurídica que vinha do Código de Seabra[lxviii]»[lxix].

Trata-se de uma «herança espiritual da Escola de Direito Natural. É certo que, em Portugal, se pode dizer que a sua consagração foi apenas o último passo de uma evolução, já que as formas espiritualizadas da tradição e o constituto possessório[lxx] tinham esvaziado de conteúdo material o princípio de que nudis pactis dominia rerum non transferuntur e, além disso, se interpreto correctamente as palavras de Coelho Rocha (…), tinha-se mesmo admitido, ainda antes do CC de 1867, que as partes pudessem nos contratos escritos atribuir eficácia real ao acordo translativo. A ser assim, este Código, no artigo 715 (cf. também o artigo 1549), apenas generalizou e consagrou uma regra da prática. O mesmo se terá, aliás, passado noutros países, como a Itália[lxxi]. No entanto, foi a concepção voluntarista do direito e do contrato da Escola de Direito Natural que influenciou decisivamente o pensamento jurídico francês, sobretudo Domat e Pothier, e que levou à sua consagração legal pela primeira vez no Código napoleónico.»[lxxii]

«Focando especialmente os valores mobiliários[lxxiii], que constituem os títulos mais significativos objecto da compra e venda, não parece haver razão para os subtrair ao princípio de que a transferência do direito e do título se dá entre as partes solo consensu.

       Com efeito, o título, que nas concepções doutrinais dominantes constitui o «veículo» de transmissão do direito nele «incorporado», é um bem móvel e, como tal, transmissível segundo o regime geral de circulação dos bens desta natureza. Ele destina-se a dotar o direito de uma circulação mais fácil, mais rápida e mais segura, isto é, de uma lei especial de circulação, e não a substituir com carácter absoluto as formas de transmissão do direito comum.» «Face [ao emitente], o único modo eficaz de transmitir o direito é aquele que corresponde à lei de circulação do título. Mas o regime e a função do título e uma adequada ponderação dos interesses envolvidos na sua circulação não são em nada afectados com a aplicação do regime comum de transmissão dos direitos às relações entre as partes.

       Aliás, tratando-se de títulos causais e declarativos, meramente representativos de um direito pré-existente, a sua emissão e entrega ao titular pode significar – por força da lei ou dos estatutos ou, ainda, de um acordo tácito nesse sentido – que o criador do direito e emitente do título só é obrigado a reconhecer a circulação do direito que se faça pelo modo de transmissão do título, mas tal facto nunca poderia significar uma alteração do regime geral de circulação do direito quando não estão em causa os interesses do emitente nem a circulação comercial do título é afectada. A regra fundamental na matéria é a de que o emitente é devedor do portador legítimo do título. Daqui decorre que a transmissão comercial do título prevalece sobre uma sua transmissão anterior de direito comum e que o emitente tem, em princípio, um interesse merecedor de tutela em não reconhecer como titular do direito quem não justifica a sua titularidade de acordo com o regime de circulação do título. Mas a questão da possibilidade de uma transmissão de direito comum com eficácia entre as partes é, uma vez dada prevalência à transmissão comercial e respeitado aquele interesse do emitente, indiferente do ponto de vista dos títulos de crédito».

       Em suma, «[h]avendo uma transmissão de direito comum (ainda que notificada) incompatível com uma transmissão comercial, (...) ela prevalece, tal como prevalece, no regime comum, a transmissão que primeiro foi notificada. Respeitados estes princípios, uma transmissão do direito e do título fica sujeita aos princípios gerais.

       Dito de outra forma, a transmissão do direito pelo modo de circulação do título é apenas a sua transmissão com eficácia face àquele perante quem o direito é exercido (e a terceiros adquirentes do mesmo direito). Qualquer transmissão de direito comum é uma transmissão válida e eficaz desde que não incompatível com uma transmissão comercial. Só não terá, em princípio, aquela eficácia.»[lxxiv]

 

Ainda quanto ao sentido e alcance do princípio da consensualidade, importa salientar que o mesmo significa a aptidão dos contratos translativos para, por si sós, sem necessidade de formalidade adicional como a traditio ou o registo, operarem a transmissão. Esta é um efeito direto do contrato. Porém, não tem de ser um efeito imediato. Na verdade, para o efeito translativo se produzir, por força do acordo das partes, é necessária a verificação de certos pressupostos gerais: que o bem ou o direito alienado exista, tenha existência autónoma e esteja individualizado (cfr. os arts. 408, 880 s do CC) e que o transmitente tenha legitimidade para dispor dele (cfr. os arts. 881 e 892 ss do CC e o art. 467 do CCom). Se faltar algum deles, ao tempo da celebração do contrato, a transmissão apenas ocorrerá, se e quando o mesmo se vier a verificar. Noutros termos, a transmissão é um efeito direto e, via de regra, imediato do contrato; mas este só atua uma vez verificados aqueles pressupostos gerais[lxxv].

 

2. Retomou-se o tema em tempos mais recentes, com o Prof. Almeida Costa, a respeito das ações tituladas nominativas, embora com conclusões transponíveis para as ações tituladas ao portador e para as ações escriturais, estas com a ressalva de que a respetiva fungibilidade intrínseca limita o campo de aplicação do princípio[lxxvi]. Esquematizam-se adiante os principais argumentos, em boa medida aí apresentados, a favor da transmissão solo consensu das ações valores mobiliários. Antes, porém, importa fazer algumas observações.

2.1 A primeira respeita ao enquadramento legal do problema. No domínio do CCom de 1888, que considera, no art. 483, os títulos de crédito mercantis não ao portador nem endossáveis transmissíveis segundo o regime da cessão de créditos, discutiu-se se esta era a via de circulação das ações e obrigações nominativas ou se estas, sendo tituladas, tinham um regime de circulação especial; havendo prevalecido esta segunda tese. Sendo este o caso, importava, ainda, saber se a forma de transmissão civil ficava excluída. Com anotação concordante de Vaz Serra, o STJ, mediante Acórdão de 16.06.1972, admitiu as duas formas de transmissão – cartular e de direito comum[lxxvii]

 Após a Revolução de 1974, no quadro de uma política económica e social de forte pendor intervencionista, assistiu-se a uma hiperregulação da titularidade e da transmissão das ações, primeiro com o DL 150/77, depois com o DL 408/82 e com os arts. 326 e ss do CSC, de que resultava, numa das interpretações possíveis da lei, que apenas haveria uma válida e/ou eficaz transmissão de ações com a observância das formalidades aí prescritas[lxxviii]. A jurisprudência refletiu, em grande medida, tal interpretação[lxxix].

Com o CVM de 1999, voltou-se à «normalidade», passando o art. 80.1 a dispor: quanto às transmissões, fora de bolsa, de valores mobiliários escriturais, que os mesmos se transmitem mediante registo na conta do adquirente; quanto aos valores mobiliários ao portador, entretanto extintos (cfr. a Lei 15/2017 e o DL 123/2017), que os mesmos se transmitiam, em geral, mediante entrega do título (art. 101.1 do CVM); e que os valores mobiliários titulados nominativos se transmitem por declaração inscrita no título a favor do transmissário[lxxx], seguida de registo junto do emitente[lxxxi] (art. 102.1 do CVM). Como se observou, a subsistente tese de que, para a validade dos contratos de alienação, seria preciso cumprir estas formalidades foi, designadamente, rejeitada pelo citado Acórdão do STJ de 15.05.2008.

Sobra, no entanto, a questão: em face destes preceitos do CVM, tais formalidades são necessárias para, conjuntamente com um título causal válido (mormente, um contrato de compra e venda) ou por força da regra especial de tutela do adquirente de boa fé (art. 58 do CVM), a transmissão ter lugar? Noutros termos: o Código retoma a antiga teoria do título e do modo? Ou, a par dos modos especiais de circulação aí previstos, continua a ser possível uma transmissão por mero efeito do contrato?

Numa leitura literal, intuitiva e sem memória, ignorando o que ocorreu no passado, por cá e além fronteiras, esses modos especiais de transmissão serão exclusivos; pelo menos quanto aos valores mobiliários titulados ao portador e aos valores mobiliários escriturais[lxxxii]. Numa interpretação contextual, sistemática e teleológica dos preceitos, integrando-os no sistema jurídico como um todo e atendendo àquela que se afigura a principal razão de ser da existência de leis especiais de circulação – a promoção de um tráfico jusmobiliário rápido e seguro -, a conclusão parece ser a da subsistência do princípio da consensualidade: a existência de modos especiais – não excecionais -  de transmissão apenas coloca um problema de conciliação ou compatibilização de transmissões de direito comum e de transmissões jusmobiliárias que se mostrem conflituantes[lxxxiii].

2.2 A segunda observação respeita à própria teoria do título e do modo. Conhecendo esta formas espiritualizadas de traditio e aceitando-se o constituto possessório como «modo» de transmissão, que se ganha com a eliminação do princípio da consensualidade do domínio em análise, sobretudo atendendo à génese prática deste? Uma das vantagens de tal eliminação poderia ser a da clareza jurídica. Mas a teoria não gera, pelo contrário, uma inútil complicação e uma possível fonte de litígios acerca da verificação ou não de um modo espiritualizado? A menos que se adote uma conceção «primitiva» e hiper-realista da mesma – entendendo, no caso dos valores mobiliários titulados, pelo menos ao portador, que o modo é constituído pela entrega física dos títulos (cfr. o Ac.STJ de 5.02.2019) -, afigura-se ser esse o caso. 

2.3 A terceira observação tem a ver com o próprio conceito das ações como valores mobiliários e o significado do seu modo especial de transmissão. As ações surgem como unidades de valor e de participação social – ou participações sociais em sentido objetivo, relativamente autónomas -, correspondentes a cada uma das frações em que o capital social se divide[lxxxiv], com o registo da sociedade (ou aumento do capital)[lxxxv]; sendo, enquanto tais, transmissíveis nos termos gerais de direito (em que pontua o princípio da consensualidade, para «bens» e direitos, reais e não reais)[lxxxvi].

A sua ascensão à condição de valores mobiliários dá-se mediante a dotação das mesmas com uma forma especial de representação – cartular (ações tituladas) ou registal (ações escriturais) [cfr. os arts. 1a) e 46.1 do CVM]. As ações tituladas nominativas apresentam, no entanto, especificidades. Originariamente, eram ações registadas ou «escriturais» e sempre assim se mantiveram no direito francês, cujo código comercial esteve na base da figura. Porém, nalguns países, como Portugal, a Alemanha, a Itália, etc., o documento que normalmente se emitia para prova da respetiva titularidade foi elevado à condição de título de crédito (circulante), passando este a ter inscritas as ações com o inerente direito ao registo e mantendo-se o registo detido pela sociedade como registo legitimador, destinado ao exercício dos direitos sociais.

Deste modo, passou a haver as ações ao portador - representadas por um título circulante e legitimador (valores mobiliários titulados), que lhes conferia um modo especial e simplificado de circulação (a traditio, fazendo presumir a existência de um título) e habilitava o respetivo detentor a exercer os correspondentes direitos sociais - e as ações nominativas, valores mobiliários mistos, compostos por um título circulante - que também lhes conferia uma lei especial de circulação (a traditio do título com uma declaração de transmissão), e legitimador quanto ao exercício do direito ao registo (título de legitimação intermédia) - e pelo registo das ações, legtitimador do exercício dos direitos sociais (instrumento de legitimação social ou final). O momento circulatório foi, no entanto, considerado de tanta relevância, que este valor mobiliário se inseriu historicamente na figura dos títulos de crédito (circulantes), sendo o paradigma dos chamados títulos nominativos (de massa), e o CVM considera-o uma espécie dos valores mobiliários titulados (agora a única subsistente) (arts. 102 e 104.2).  

Em França, apesar de, legalmente, as ações ao portador se transmitirem mediante tradição do título e as ações nominativas mediante inscrição no registo da sociedade, este foi dominantemente entendido como o seu modo de transmissão especial, de direito comercial, mantendo-se a possibilidade de transmissão das mesmas, nos termos gerais, por mero efeito de um acordo translativo. Na Alemanha - país em que se desenvolveu a teoria dos títulos de crédito, depois importada com modificações pela Itália e, em boa medida através da doutrina transalpina, pelos autores portugueses -, é hoje pacífico que as ações tituladas nominativas se transmitem nos termos gerais (como o nosso art. 483 do CCom também sugere) e, ainda, por endosso, sendo este o seu modo especial de circulação [§ 68 (1) da AktG]; isto, apesar da dominante teoria realista dos títulos de crédito, defendendo a sua equiparação a coisas móveis, e de o sistema translativo de coisas e direitos reais ser o do modo[lxxxvii]. O mesmo sucede em Espanha (art. 120 da LSC), apesar de neste país vigorar um sistema do título e do modo.[lxxxviii]

Quanto às ações ao portador, na Alemanha, o assunto mostra-se controvertido. Tradicionalmente, a teoria da incorporação leva a afirmar a sua equiparação a coisas móveis, aplicando-se o regime destas (sistema do modo); mas autorizada doutrina contemporânea contesta pertinentemente tal orientação, já que o título, meramente declarativo, se limita a qualificar a posição jurídica acionária nele inscrita - pertencente à categoria dos direitos não reais -, residindo o cento de gravidade do fenómeno nesta última e não no papel que a enforma e publicita[lxxxix].  

No que respeita às ações escriturais, embora o registo em conta se possa considerar funcionalmente equivalente ao título dos valores mobiliários titulados, por um lado, ainda é mais nítido que tal registo não confere às ações qualquer corpo suscetível de as colocar na órbita da propriedade[xc]. Por outro lado, se é verdade que a ação surge como valor mobiliário com o registo em conta (particular), já antes ela era um «bem» ou uma posição jurídica registados (publicamente), sem que o registo tenha qualquer impacto no seu regime circulatório. Com efeito, as ações são, logo à nascença, antes de serem valores mobiliários, «bens» ou direitos registados, nascendo como tais com o registo da sociedade (ou um aumento de capital), mas o seu tráfico não é um tráfico registado.

Mas mesmo que se entenda o registo em conta como um registo constitutivo ou de titularidade, daí não se segue a necessidade do registo para operar a transmissão. As quotas de SQ são registadas, como as ações participações, e possuem, ainda, um tráfico jurídico registado, mas o registo relativo a este tráfico é meramente declarativo. Outro tanto sucede, por exemplo, com os direitos da propriedade industrial (registo constitutivo quanto à génese do direito, mas declarativo, quanto ao tráfico)[xci].

2.4 A quarta observação respeita ao âmbito de uma possível aplicação do princípio da tradição, em vez do princípio da consensualidade. Ele tem a ver com a transmissão mediante negócio entre vivos a título singular de coisas móveis corpóreas; representando um retorno ao princípio de que nudis pactis dominia rerum non transferuntur, característico do antigo sistema translativo do título e do modo, que é, ainda, o sistema de países como a Suíça, a Espanha, a Áustria, o Brasil, etc. As transmissões por morte e as transmissões forçadas em geral (executivas, mediante nacionalização, etc.) - bem como as próprias transmissões universais entre vivos, pelo menos aquelas em que há a extinção do titular do direito, como acontece quando ele é incorporado noutro - estão fora do seu campo de aplicação. E o mesmo sucede com a transmissão de «bens», direitos ou posições jurídicas não reais.

Ora, quanto a este segundo aspeto, importa notar que o artigo 102 do CVM, a respeito dos valores titulados nominativos, ao dispor que eles se transmitem mediante declaração de transmissão inscrita nos títulos[xcii], compreende não apenas transmissões por ato voluntário entre vivos, mas também, designadamente, as transmissões por morte e executivas, as quais sem dúvida ocorrem independentemente do cumprimento desta formalidade, por força do direito sucessório; a declaração de transmissão apenas formaliza uma transmissão já ocorrida. E o mesmo vale, mutatis mutandis, para os valores mobiliários escriturais, acerca dos quais o art. 80.1 dispõe genericamente que, fora de mercado regulamentado, eles se transmitem mediante registo na conta do adquirente, e o art. 67.1 determina que este registo é feito com base em ordem escrita do disponente ou em documento comprovativo do facto a registar.

Quanto ao primeiro aspeto, o princípio da tradição apenas se mostra concebível se as ações (ou outro direito não real) - que patentemente não são coisas corpóreas - forem equiparadas a estas, em virtude da sua incorporação num documento em papel, como historicamente sucedeu na Alemanha, onde se formou a teoria dos títulos de crédito. Mas, além do caráter artificial desta construção, tal apenas ocorreu porque neste país a tradição é o modo de transmissão das coisas corpóreas; e, apesar disso, como se observou, está hoje assente, depois de larga discussão, doutrinal e jurisprudencial, acolhendo a orientação dominante, que as ações tituladas nominativas tanto se transmitem por mero efeito do contrato de cessão como por endosso[xciii].

2.5 A quinta observação tem a ver com o argumento de autoridade. Um dos autores frequentemente citados a favor das teses neo-realistas ou neo-formalistas (teoria do título e do modo) é Francesco Galgano.

Com efeito, como se escreveu em texto anterior[xciv], «este eminente professor transalpino tem vindo a defender, a partir de um importante trabalho de 1987[xcv],  que um título de crédito apenas pode transmitir-se - enquanto tal, com as características que lhe são próprias, incluindo a autonomia do direito ou posição jurídica inscrita no documento, objecto de sucessivas aquisições originárias - mediante a observância da lei de circulação que lhe é própria; ou seja, através da traditio, nos títulos ao portador, e a posse qualificada por uma cadeia ininterrupta de endossos, no caso dos títulos à ordem e nominativos endossáveis[xcvi]».

Todavia, «aquilo que este autor realça – tomando partido sobre uma controvérsia com significativa expressão em Itália - é a inexistência de uma circulação meramente consensual com as características próprias dos títulos de crédito, ou seja, dotando o adquirente não apenas da legitimação, mas também com uma posição jurídica autónoma (obtida a título originário)[xcvii]. Ora, isso não se mostra, verdadeiramente, incompatível com o princípio da consensualidade, como ele mesmo reconhece».

«Na verdade, em paralelo com a afirmação do carácter meramente obrigacional dos contratos translativos de títulos de crédito, em razão deste objecto mediato dos mesmos, lê-se noutras passagens da sua obra: “L’applicazione del generale principio consensualistico al trasferimento dei titoli di credito apare, a mio giudizio, difficilmente contestabilie: corrisponde, del resto, al sentimento comune che chi compera, per contratto, titoli di credito (ad esemplio buoni del tesoro o azioni di società) ne diventi proprietario al momento del contratto, e che il venditore sia obbligato a consegnare titoli che son già del compratore. Ma può dirsi – e qui sta il nocciolo del problema – che egli abbia acquistato, com la proprietà del documento, la titolarità di un diritto cartolare autonomo, che egli fruisca cioè della inopponibilità delle eccezioni di cui all’art. 1993 ? La risposta negativa si raccomanda come quella più coerente com l’idea di titolo di credito generalmente accolta»”[xcviii]».

«Aliás, só com esta ressalva se mostra compreensível a sua afirmação de que a Cassação acolhe, pacificamente, posição idêntica[xcix]». Lê-se, por ex., num Aresto deste tribunal de 5.09.1995: “In tema di azioni di società, le formalità previste dalla prima parte dell’art. 2022.º c. c. (c. d. transfert), per cui il trasferimento del titolo nominativo si opera mediante l’anotazione del nome dell’acquirente sul titolo e sul registo dell’emitente, sono necessarie soltanto per l’acquisto della legitimazione all’esercizio dei diritti sociali, mentre per l’acquisto della proprietà del titolo è sufficiente il semplice consenso delle parti legitimamente manifestato, secondo la regola generale di cui all’art. 1376.º c. c. In particolare, l’iscrizione nel libro dei soci è necessaria a dimostrare la qualità di socio anche nel rapporto con la società e ha, perchiò, una funzione meramente certificativa ed executiva.“ »[c].

 

3. Feito este breve enquadramento, vejamos sumariamente os principais argumentos a favor da subsistência da forma geral de transmissão de ações valores mobiliários, de direito privado comum (por aplicação direta dos preceitos do CC e, em parte, por força do art. 483 do CCom), a par das formas especiais de direito mobiliário[ci]. São eles:

1.     Em primeiro lugar, como pano de fundo, importa ter presentes dois dados normativos. Por um lado, o princípio da consensualidade  é um princípio geral do ordenamento jurídico português, respeitante a todo o tráfico jurídico, de bens, móveis e imóveis, corpóreos e incorpóreos, e de direitos, reais e não reais; em contraposição aos sistema do modo (alemão) e do título e do modo (suíço, austríaco, espanhol, etc.); tal como o é o princípio da causalidade, em contraposição ao princípio da abstração (sistema alemão). E, quando corretamente entendido, tem, no atual estado do Direito, exceções muito limitadas[cii]. As ações, valores mobiliários ou não, são uma forma de riqueza ou uma modalidade de «bens» como os demais, carecendo de demonstração que, quando têm representação cartular ou escritural, adquirem uma condição sócio-económica e jurídica tão especial, que se justifica um afastamento da coordenada fundamental do sistema. Na verdade, o princípio da tradição (ou do registo funcionalmente equivalente) compreende-se sem mais naqueles outros sistemas jurídicos (do modo e do título e do modo), mas não em sistemas consensualistas como o nosso.

2.     Por outro lado, quanto aos títulos de crédito mercantis não ao portador nem à ordem, em que se incluem as ações tituladas nominativas, independentemente de haver ou não regras especiais aplicáveis, o art. 483 do CCom manda aplicar o regime da cessão de créditos. E o mesmo é aceite nos sistemas do modo e do título e do modo.

3.     Em segundo lugar, as ações, antes de serem valores mobiliários, transmitem-se nos termos gerais, por mero efeito do contrato, embora o simples acordo não produza uma transmissão com eficácia plena, visto que, para obter este resultado, ainda que a transmissão seja livre, é necessária pelo menos uma adicional notificação da mesma à sociedade ou o seu reconhecimento por esta[ciii].

4.     Uma vez adquirida a condição de valores mobiliários, mediante cartularização ou registo em conta, adquirem, enquanto tais, um modo especial de circulação.

5.     Mas não deixam de ser ações - o título ou o registo em conta apenas lhes dão uma qualidade adicional, que tem associado este modo especial de circulação.

6.     Desde que e na medida em que a subsistência da originária possibilidade de transmissão de direito comum seja compatível com este modo especial de transmissão, jusmobiliário, não há razão para considerar este como o seu modo de transmissão exclusivo. Ora, essa compatibilidade existe, seja fazendo intervir a regra do art. 58 do CVM, seja, como parece preferível, afirmando a prevalência de uma transmissão jusmobiliária sobre uma transmissão meramente consensual[civ].

7.     Noutros termos, quando as ações adquirem a adicional qualidade de valores mobiliários, também adquirem um adicional e especial modo de transmissão.

8.     Mais especificamente, os arts. 80.1 e 102.1 (também o anterior art. 101) do CVM regulam o modo de transmissão das ações enquanto valores mobiliários.

9.     Mas a sua inserção no sistema jurídico como um todo revela que esse é apenas um modo especial de transmissão, que acresce às formas gerais de transmissão por efeito do contrato e se sobrepõe a elas em caso de conflito[cv].

10.  A situação mostra-se, naturalmente, distinta da daqueles ordenamentos jurídicos em que vigora o princípio da tradição (ou do registo constitutivo) (casos da Alemanha, Suíça, Espanha, etc.), quando, em virtude da incorporação, se equiparem as ações tituladas a coisas móveis corpóreas (e as escriturais a bens registados, se o registo translativo for constitutivo). Mas até nesses ordenamentos, pelo menos quanto às ações tituladas nominativas, é hoje claro que a forma de transmissão especial acresce à geral[cvi].

11.  Em terceiro lugar, recorda-se, com Galgano, que corresponde ao sentimento comum de quem compra ações - pelo menos mediante contrato escrito - que o mesmo se torna, via de regra, titular das mesmas quando o contrato se conclui; sentimento esse confirmado pela própria história do princípio da consensualidade (lembrem-se as palavras de Coelho da Rocha).

12.  Isto, apesar de tal comprador saber ou dever saber que a transmissão meramente consensual cede perante uma eventual posterior transmissão jusmobiliária e que não tem eficácia plena, só esta última sendo oponível à sociedade.

13.  Em quarto lugar, a ideia de que o direito adquirido consensualmente seria um direito vazio de conteúdo não é verdadeira (contra o que se lê nos arestos analisados, o titular pode dispor dele e, em virtude do mesmo, o alienante, formalmente legitimado, exerce os direitos sociais no interesse e por conta do adquirente, estando internamente vinculado a eventuais instruções deste), nem a alegada situação de vazio é específica das ações valores mobiliários (ela existe, designadamente, em qualquer situação de transmissão de participações sociais ineficaz em relação à sociedade, ações incluídas)[cvii], e esbarra com a seguinte objeção: se perguntarem ao comprador de um lote de ações o que prefere - se um tal direito sobre as ações, com as inerentes fraquezas, ou um simples direito de crédito, o direito a que o vendedor lhe proporcione a aquisição das ações - qual será a resposta provável?

14.  É certo, no caso das ações, que a transmissão meramente consensual não é perfeita (na medida em que não é plenamente eficaz), tem caráter precário (na medida em que pode ceder perante eventual transmissão especial) e via de regra provisório, e é, ainda, menos segura que uma transmissão jusmobiliária, porque o adquirente de boa fé não beneficia de nenhuma tutela especial. Mas, para um comprador comum, valerá mais ter uma transmissão nestes termos - sobretudo com caráter provisório, até se cumprirem as formalidades de que depende uma transmissão com eficácia plena - do que não ter nenhuma. E não há nenhuma expectativa do vendedor, em sentido contrário, merecedora de proteção. Pelo contrário, quem no contexto presente merece proteção é o adquirente, mormente comparador.

15.  Em quinto lugar, perante a referida possibilidade de conciliação das duas formas de transmissão, com prevalência da transmissão jusmobiliária em caso de conflito, a circulação das ações sai reforçada, uma vez que é suscetível de se processar por ambas as vias e não apenas pelo procedimento exigente dos artigos 80.1 e 102 do CVM; e, visando a inscrição em conta e a cartularização favorecer a circulação fácil e segura das mesmas, uma vez respeitado este objetivo, seria contrária à sua razão de ser a eliminação de uma outra maneira de a concretizar.

16.  Em sexto lugar, o elemento literal do art. 102.1 do CVM, numa leitura mais atenta, também não tem real significado, porque a formalidade aí exigida (inscrição de declaração de transmissão nos títulos), quanto a algumas transmissões (máxime mortis causa), representa, sem dúvida, uma simples formalização de transmissão já ocorrida. E o mesmo vale, mutatis mutandis, para as ações escriturais (cfr. os citados arts. 80.1 e 67.1). Sendo assim, porque não fazer idêntica leitura a respeito das transmissões voluntárias por ato entre vivos a título singular?

17.  Em sétimo lugar, como é compreensível e resulta sobretudo do art. 102, aquilo que o CVM regula é o modo de conseguir uma transmissão com eficácia plena, mormente, uma eficácia em relação à sociedade emitente. Se, adicionalmente, são de excluir ou não as transmissões sem tal eficácia, máxime as transmissões meramente consensuais, é um problema distinto, para o qual nele não se encontra resposta.

18.  Sendo a coordenada de fundo do ordenamento português a da consensualidade, torna-se, portanto, necessário encontrar, para além do texto da lei jusmobiliária, uma justificação para a exceção à regra e identificar uma norma que a consagre; não bastando citar os arts. 80.1, 101.1 e 102.1, que comportam uma interpretação compatível com a aplicação do princípio da consensualidade (tal como comportam uma interpretação compatível com o princípio da causalidade). 

19.  Em oitavo lugar, nas transmissões de ações escriturais em mercado regulamentado, entende-se geralmente, em face do art. 80.2 do CVM, que a transmissão se dá pelo simples encontro entre uma ordem de compra e uma ordem de venda, independentemente do registo em conta[cviii]. O que contraria a ideia de que o registo em conta é constitutivo não apenas para fazer nascer o valor mobiliário, mas também para a sua transmissão.

20.  Em nono lugar, não raro as contas de registo de ações de sociedades cotadas são detidas por intermediários financeiros, por conta dos respetivos clientes; falando-se a esse respeito numa titularidade formal e fiduciária do intermediário e numa titularidade indireta do cliente, beneficiário efetivo. Por vezes, trata-se de «participações» qualificadas, devidamente comunicadas à sociedade; e já se tem colocado a questão de saber se o «titular material» das ações pode exercer certos direitos sociais. Admitir-se o princípio da consensualidade e a correspondente possibilidade de se ser titular das ações sem o respetivo registo pode servir de apoio a uma tese afirmativa quanto a tal questão, que já tem sido aceite na prática, emitindo a entidade registadora, a pedido do IF titular formal as ações, uma declaração, nos termos do art. 78 do CVM, a favor do titular material.

21.  A grande objeção que a admissão da consensualidade suscita tem a ver com os credores do alienante: com a celebração do contrato, as ações deixam de integrar a respetiva garantia geral, apesar de o vendedor manter os títulos ou o registo em conta[cix]. Isto não é, no entanto, específico dos valores mobiliários e significa apenas que o alcance que atualmente se reconhece ao princípio da consensualidade – no que toca aos efeitos produzidos pelo mero acordo - é porventura excessivo.

22.  Além disso, por exemplo, na compra e venda, o preço já pode estar total ou parcialmente pago no momento da celebração do contrato e aos credores do alienante contrapõem-se os do adquirente. Acresce que a posse dos títulos ou o registo em conta (meramente particular e de acesso reservado) conferem, no âmbito de uma forma de riqueza eminentemente circulante como a presente, uma fraca base de confiança na detenção e conservação da correspondente titularidade plena. E, por fim, não pode perder-se de vista que os credores do alienante têm a seu favor os meios gerais de conservação da respetiva garantia patrimonial, mormente a impugnação pauliana (arts. 610 ss do CC).

23.  Em contrapartida, contra o princípio da consensualidade não vale argumentar que a propriedade é um direito absoluto, nos termos do art. 1305 do CC. Com efeito, por um lado, as ações não são uma forma de propriedade ou são uma forma de propriedade especial, de índole corporativa, substancialmente diferente desta[cx]. Por outro lado, um problema de regime não pode resolver-se com uma definição geral do conteúdo de um direito. Acresce que, tendo o direito conteúdo complexo, não é de excluir uma aquisição faseada do mesmo. No caso das ações, uma transmissão meramente consensual é limitada nos seus efeitos, não é plena ou perfeita; mas é-o quer se trate de ações valores mobiliários quer de ações simples. 

24.  No caso das ações escriturais, também não procede argumentar que o registo é um registo constitutivo e de titularidade, uma vez que, por um lado, o registo se limita a dar uma forma especial de representação a um quid preexistente, por outro lado, mesmo que fosse constitutivo, não tinha de o ser quanto à transmissão, como outros dados do sistema revelam (pense-se nas quotas ou nos direitos da propriedade industrial e na própria transmissão das ações valores mobiliários em mercado regulamentado); além de que, ser o registo em conta um registo de titularidade, é, naturalmente, um quod erat demonstrandum.

25.  No que respeita ao estado da jurisprudência, no domínio da lei vigente (o CVM), o acórdão de referência em que se acolhe a teoria do título e do modo é o do STJ de 15.05.2008. Porém, como se observou, no caso aí apreciado, para se decidir como se decidiu, não era necessário afirmar tal teoria. Ela é, portanto, um mais de que pode prescindir-se.

26.  Num dos acórdãos de 21.03.2017, a teoria está, efetivamente, na base da decisão, que negou a eficácia específica ao contrato-promessa de compra e venda de ações tituladas, mas entendemos que a decisão não está certa; podendo, mesmo, afirmar-se que a aplicação da teoria levou, in casu, a uma decisão menos feliz. [cxi]

   

 


 

 

§ 3.º

Legitimidade para requerer o registo de ações tituladas nominativas

 

1. Tanto no caso das ações tituladas nominativas, como no das ações escriturais, existe um registo individualizado das mesmas, detido pela sociedade (ou intermediário financeiro que a represente) ou, no caso das ações escriturais, por intermediário financeiro. O registo das ATN é legitimador do exercício dos direitos sociais (quer por parte do acionista, quer por parte da sociedade, em especial se as ações tiverem obrigações inerentes)[cxii]. O das AE também o é, mas, por um lado, quando detido por IF, tal exercício requer a emissão de documentos comprovativos da legitimação (art. 78 do CVM), por outro lado, pelo menos para as teses neo-realistas, trata-se, ainda, de um registo de titularidade[cxiii].

Sendo as ações livremente transmissíveis, é mediante o requerimento do registo que se torna uma transmissão das ações eficaz perante a sociedade, de que resulta a correspondente aquisição da qualidade de sócio pelo transmissário e a correspondente perda desta pelo transmitente. A socialidade comporta em geral - ou pode comportar em concreto - não apenas um conteúdo passivo, mas também obrigações, como sucede quando as ações não se encontram totalmente liberadas, existem obrigações acessórias ou estão em causa ações de sócio profissional numa SA profissional.

O legislador do CVM, partindo porventura da ideia de que os valores mobiliários representam tipicamente apenas situações jurídicas ativas, em caso de transmissão de AE por ato voluntário entre vivos a título singular, reconhece legitimidade para requerer o registo, antes de mais, ao alienante, bastando uma simples ordem escrita deste para o efeito [arts. 66.2a) e 67.1/1ª parte], embora da lei também possa retirar-se a legitimidade do adquirente, devendo neste caso ele exibir documento bastante para prova da transmissão [arts. 66.2a) e 67.1/2ª parte]. No caso das ATN, o texto legal alude apenas à legitimidade do alienante [art. 102.4/2c)[cxiv]].

Este regime suscita diversos problemas. O primeiro ocorre quando a entidade registadoras das AE é um IF e tem a ver com a realização de uma transmissão eficaz em relação à sociedade. Com efeito, mesmo entendendo-se que a sociedade tem o direito de a todo tempo conhecer o conteúdo do registo (já que se trata, hoje em dia, necessariamente de ações nominativas), o simples requerimento e até a realização deste não lhe proporcionam, sem mais, tal conhecimento. É, portanto, duvidoso - para não dizer uma anomalia, contrária à natureza das coisas - que se possa considerar uma transmissão dotada de  tal eficácia, com substituição do alienante pelo adquirente na pertinente qualidade de sócio, com um simples pedido regular do registo ao IF ou, inclusive, com o registo. No mínimo, para minorar o problema, poderia considerar-se implícito no sistema um dever a cargo do IF de imediata informação da sociedade de que o registo foi efetuado, mas, numa sociedade com ações cotadas, isso seria inviável. O art. 78 do CVM resolve parte dos problemas, mas não todos: pense-se, por ex., na convocação de reunião da AG que, segundo os estatutos [art. 377.3 do CSC], deve efetuar-se mediante carta registada.

O segundo problema tem a ver com as ações com obrigações inerentes, mormente deveres de prestar, principais (obrigação de entrada, obrigação profissional de sócio profissional) ou acessórios. Na verdade, como se compreende que haja uma transmissão eficaz em relação à sociedade, com passagem das obrigações para o adquirente e a exigibilidade das mesmas pela sociedade, mediante uma simples ordem escrita do alienante de AE ou um simples requerimento do transmitente de ATN? No mínimo, nestes casos, o alienante deverá exibir documento comprovativo do negócio translativo donde decorra a vontade do adquirente de o substituir na competente posição de sócio.

O terceiro problema consiste em saber se, no caso das ATN, o alienante terá de exibir os títulos quando requer o registo. Estando aqui em causa o exercício do direito ao registo, a resposta afirmativa justifica-se, por força do princípio da incorporação, já que se trata de valores mobiliários titulados, qualificáveis como títulos de crédito (de massa), e tem apoio no regime adjetivo da matéria (cfr. os arts. 1061.1 e 1063.1 do CPC). Note-se, porém, que a solução pode mostrar-se pouco confortável para o transmissário, que deixa dos títulos nas mãos do transmitente, com o inerente risco de dupla alienação.

Tomando sempre como referência as transmissões voluntárias por ato entre vivos a título singular, o quarto problema tem que ver com a possível legitimidade do adquirente. De facto, como se observou, existe base legal para a admitir no caso das AE, mas, no caso das ATN, o CVM apenas se refere à legitimidade do alienante e em termos que sugerem ser ele a única pessoa legitimada. Ocupamo-nos dele em seguida.

 

2. Não pretendemos tratar exaustivamente do problema. A legitimidade exclusiva do alienante poderá ter a sua razão de ser, embora, a existir, o legislador a não tenha revelado. Contra o que sugere o texto da lei, esquematizam-se, no entanto, em seguida, alguns argumentos. São eles:

1.      Em primeiro lugar, o normal será resultar do contrato de alienação, mormente compra e venda, um direito ao registo, quer por parte do alienante, quer por parte do adquirente, ambos tipicamente interessados nisso. Como O STJ reconheceu, no Acórdão de 5.02.2019.

2.      Pode, inclusive, dizer-se que o adquirente é, via de regra, o principal interessado.

3.      Em segundo lugar, as ações têm inerente a socialidade. Quem as adquire tem o direito de se fazer reconhecer como sócio, tornando a aquisição eficaz perante a sociedade. Logo, tem o direito de requerer o registo, produzindo este efeito.

4.      Na verdade, sendo o novo titular das ações, compreende-se mal que estivesse dependente do alienante para tal se dar. Isso é evidente nas situações em que o contrato de alienação se conclui, contra a vontade deste, em execução de um contrato-promessa, nas quais é totalmente improvável que o alienante tenha essa iniciativa (embora aqui possa admitir-se o requerimento por funcionário judicial, ordenado pelo juiz que supre a falta de vontade do alienante). Mas, mesmo em geral, se alguém adquire um direito e carece de uma formalidade para tornar a sua titularidade plenamente eficaz, se o cumprimento de tal formalidade por si for viável, como é o caso, deve poder fazê-lo[cxv].

5.      Em terceiro lugar, o contrato de alienação pode ser inválido ou ineficaz e, apesar disso, o beneficiário ser o efetivo adquirente das ações, nos termos do art. 58 do CVM. Estando o alienante interessado na invalidação ou no reconhecimento da invalidade ou ineficácia do negócio, não é plausível que venha a requerer o registo.

6.      Em quarto lugar, neste sentido depõe o elemento sistemático da interpretação (coerência do sistema). Com efeito, se essa é a regra relativa às ações escriturais [arts. 66.2 a) e 67.1/2ª parte], não se compreenderia que a solução fosse diferente para as ATN[cxvi].

7.      Pode, aliás, acrescentar-se um argumento sistemático de índole mais geral: essa é também pacificamente a regra relativa à transmissão de direitos não reais, de quotas, de ações simples (não VM), apesar de não expressa na lei.

8.      Em quinto lugar, estão em causa títulos de crédito circulantes e a transmissão cartular efetiva-se com a entrega, em princípio ao adquirente, dos títulos com a declaração de transmissão neles aposta. Sendo a apresentação destes necessária para exigir o registo à sociedade, é natural que o requerimento seja feito por quem os tem na mão.

9.      Em sexto lugar, a sociedade apenas beneficiará de um especial regime de tutela contra a eventual inexistência de um direito ao registo (legitimidade material), designadamente por falta ou anomalia no negócio translativo, se o requerimento for efetuado pelo adquirente, mediante a exibição de títulos que documentem uma transmissão a seu favor e que contenham uma cadeia ininterrupta de transmissões cartulares a contar do último inscrito no registo, se for o caso (cfr. o art. 56 do CVM).

10.  Em sexto lugar, o adquirente, empossado dos títulos, é o único que se encontra cartularmente legitimado para exercer o direito em causa (art. 55.1 do CVM). E, após a extinção das ações ao portador, a alusão ao caráter legitimador do título apenas se pode referir a tal direito. Seria estranho que, num sistema em grande medida assente na legitimação formal, cartular e escritural, o legitimado cartular não tivesse legalmente legitimidade material.

11.  Em sétimo lugar, sempre foi assim e é também a lição que se colhe nos ordenamentos jurídicos estrangeiros, designadamente, Alemanha, Espanha e Itália, em que se reconhece legitimidade ao endossado dos títulos.

12.  Em oitavo lugar, como já se observou, a legitimidade do alienante até se revela problemática, mormente quando as ações tenham inerente uma obrigação de entrada ou acessória.

13.  Em nono lugar, a alusão da lei apenas à legitimidade do transmitente (alienante) pode ter uma justificação deste género: sobretudo tendo em conta a existência de um título circulante, legitimador quanto ao direito em apreço, poderia discutir-se se, além do adquirente cartular, também é de reconhecer legitimidade ao alienante; a lei resolveu a questão em sentido afirmativo, sem, naturalmente, querer com isso, do mesmo passo, retirá-la ao adquirente.

14.  Por fim, note-se que, nas transmissões universais entre vivos, tem de se reconhecer legitimidade ao adquirente.

 

A legitimidade e a correspondente legitimação cartular do adquirente (art. 55 do CVM, a que corresponde a chamada legitimação passiva da sociedade emitente - art. 56) têm uma consequência: é possível um tráfico cartular das ações, à margem da sociedade, por quem as encare como um mero objeto de investimento, não estando interessado na correspondente socialidade. Como também acontece em ordenamentos jurídicos próximos do nosso (máxime, alemão, espanhol e italiano). [cxvii]

Na verdade, havendo um título circulante e sendo o registo meramente legitimador, não faz sentido aplicar a este a regra do trato sucessivo. Na verificação da legitimação cartular, basta à sociedade controlar se existe uma cadeia ininterrupta de transmissões («endossos») a começar no último inscrito no registo e aquele que se apresenta a requerer este. A situação mostra-se, portanto, distinta da relativa às ações escriturais.

 

 

Lisboa, janeiro de 2020

 

 



[i] Fonte: www.dgsi.pt, proc. 445/13.6TBPCV.C1.S1.

[ii] Provavelmente, sócios gerentes ou os sócios gerentes.

[iii] B era casado com C, devendo a generalidade das referências a ele entender-se como relativa a ambos.

[iv] A matéria de facto não é clara no sentido de que a qualidade de presidente do CA existia à data do contrato-promessa.

[v] A ser correta esta expressão, apenas as transmissões entre um acionista e os seus descendentes eram livres; não as transmissões entre acionistas, como é mais usual.

[vi]  Não se percebendo bem o sentido deste último segmento da cláusula.

[vii] No seio da SA, desencadeou-se também um conflito entre esta e B.

[viii] Não se sabe quem foi a contraparte nos negócios com os outros 4 acionistas, nem se havia mais acionistas. A circunstância de B não ter oferecido as ações a todos os restantes acionistas, para o exercício da preferência, por eles, a que se alude no Aresto, e o facto de não haver notícia de que a A tenha sido feita oferta semelhante pelos demais acionistas podem ser indício de que todos estariam de acordo quanto ao não exercício da preferência e, porventura, de que A seria a adquirente em todos os casos.

[ix] A que estava obrigado pelo contrato-promessa.

[x] Na verdade, o art. 328.4 do CSC está concebido para proteger os potenciais adquirentes das ações que sejam terceiros em relação à sociedade. Se o adquirente é um acionista, é suposto ter conhecimento do pacto social, sobretudo tratando-se de uma sociedade cujo gerente é simultaneamente presidente do CA da AG da SA em causa, como sucedia na presente situação. No caso, esse acionista demonstra, aliás, ter conhecimento de que a transmissão estava sujeita ao consentimento e à preferência da sociedade, sendo pouco plausível que desconhecesse o segmento da cláusula relativo à preferência dos acionistas. Cfr., no entanto, a nota 8 e a pertinente decisão do STJ a este respeito.

[xi] Em rigor, importa, ainda, distinguir as transmissões por ato voluntário entre vivos a título singular, que se efetivam sem intervenção do tribunal, e aquelas em que este intervém, como era o caso. Na verdade, o facto de se afirmar a insuficiência do contrato causal (máxime, compra e venda), na primeira hipótese, não significa necessariamente a mesma insuficiência quando na conclusão do negócio intervém o tribunal, como sucede em situações de execução específica de contratos-promessas. Cfr. infra.

[xii] Recorda-se que o tribunal de primeira instância determinou a comunicação da aquisição à SA, para registo, nos termos do art. 102.4 do CVM [cfr. o n.º 2, al. b)]. Com efeito, as ações tituladas nominativas são valores mobiliários mistos, compostos por um título circulante, destinado a facilitar a sua circulação, e por um registo legitimador, detido pela sociedade. Quem adquire os títulos, tendo inscrita uma declaração de transmissão a seu favor, fica titular do direito ao registo. Nas transmissões por ato entre vivos, aquele preceito legal apenas refere, no entanto, a legitimidade do alienante; o que, em casos como o presente, não é de grade utilidade, já que não é expectável uma atitude colaboradora deste. Este é, no entanto, um ponto que carece de ulterior reflexão (cfr. infra, § 3.º).

[xiii] Cfr., a seguir, o Ac.STJ desta mesma data, 21.03.2017, relatado por Fonseca Ramos.

[xiv] E também não se trata de exigências de forma, necessárias para a validade do contrato, como se esclareceu, designadamente, no Ac.STJ de 15.05.2008. Cfr. infra.

[xv] Acerca da distinção entre transmissão por efeito do contrato e transmissão por efeito imediato do contrato, cfr. Evaristo Mendes, «A compra e venda como contrato translativo. Alguns aspectos», O Direito 148 (2016)/IV, p. 786 ss  (texto de 1986), bem como Pedro de  Albuquerque e Mónica Jardim, citados adiante (§ 2.º).

[xvi] Note-se, ainda, que, numa perspetiva juscomparatista, a compra e venda é um contrato obrigacional ou pode sê-lo em determinados casos; mesmo dentro dos sistemas da consensualidade (caso do direito italiano, embora o assunto se preste a discussão). Cfr., por ex., Evaristo Mendes, «A compra e venda como contrato translativo. Alguns aspectos», O Direito, 148 (2016)/IV, p. 785 s, 803 ss (texto de 1986).

[xvii] Cfr., a respeito das preferências estatutárias nas SQ, com mais indicações, Evaristo Mendes, «Cessão de quotas. Preferências estatutárias – Desenvolvimentos recentes», DSR 19 (2018), p. 71-97, 81 s, 86 ss.

[xviii] Cfr., a respeito das preferências estatutárias nas SQ, realçando que o art. 229.5 do CSC impede (ainda que sem razão convincente) este terceiro tipo de efeitos, Evaristo Mendes, «Preferências», cit., DSR 19 (2018), p. 82 s, com mais indicações. Tratando-se de uma cláusula mista, de consentimento e preferência, como sucedia no caso vertente, a inobservância da preferência pode também ser motivo para recusar o consentimento, sem ter a sociedade que fazer adquirir as ações. No caso das quotas, tal é permitido por aquele preceito societário. No caso das ações, pode discutir-se quer a admissibilidade das cláusulas mistas (cfr. o art. 328.1/2 e infra), quer a sujeição do consentimento a um requisito desta índole.

Quanto ao efeito social ou corporativo das preferências estatutárias, note-se, contudo, que o pacto social pode, nos termos da al. c) do art. 328.2, subordinar (a eficácia d)a transmissão ao respeito por uma tal preferência (tratar-se-á de um requisito de eficácia tipicamente conforme ao interesse social). Sendo assim, não é discutível, nas SA, que uma cláusula de preferência possa ter associado o efeito do não reconhecimento do adquirente como sócio (ou o não reconhecimento da transmissão por parte da sociedade). Discutível é apenas se esse efeito está, sem mais, associado à cláusula, representando um seu efeito natural, ou se é preciso convencioná-lo. Com interesse para o tema, cfr. o Ac.TRP de 29.04.2013 (Caimoto Jácome), proc. 776/09.0TBMDL.P1, disponível em www.dgsi.pt.

[xix] Acerca deste preceito, cfr. também o Ac.TRC de 19.01.2016 (António Magalhães), proc. 417/2010.2TBOHP.C1, disponível em www.dgsi.pt.

[xx] A respeito das preferências estatutárias nas SQ, cfr. Evaristo Mendes, «Preferências», cit., DSR 19 (2018), p. 85 s, com mais indicações. Note-se que, no caso das quotas, o próprio tráfico das mesmas está sujeito a registo, pelo que até os simples pactos de preferência são suscetíveis de ter eficácia real (embora esta não seja um efeito natural dos mesmos) [cfr. o art. 3.1 d) do CRCom]. No que toca às preferências estatutárias, o problema da eficácia real coloca-se em termos semelhantes, a respeito das quotas e das ações. Admitindo também a eficácia real, além dos efeitos obrigacional e corporativo, cfr. Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, II – Das Sociedades, 6.ª ed., Coimbra (Almedina) 2019, p. 367 e indicações na nota 898. Contra, designadamente, Soveral Martins, in CSC em Comentário V, 2.ª ed., Coimbra (Almedina) 2018, p. 585 ss, quanto à eficácia real, mas admitindo o efeito social (p. 586 s).

[xxi] A respeito das preferências estatutárias nas SQ, cfr. Evaristo Mendes, «Preferências», cit., DSR 19 (2018), p. 86 s, com mais indicações.

[xxii] A respeito das preferências estatutárias nas SQ, cfr. Almeida Costa / Evaristo Mendes, «Preferências estatutárias na cessão de quotas. Algumas questões», RLJ 140 (2010), p. 3-38, 16 ss.

[xxiii] Cfr. Evaristo Mendes, A transmissibilidade das acções, II, Lisboa (dissertação UCP) 1989, p. 262 s, Almeida Costa / Evaristo Mendes, «Preferências», cit., RLJ 140 (2010), p. 36 ss e indicações na nota 159.

[xxiv] Cfr., designadamente, Soveral Martins, Cláusulas do contrato de sociedade que limitam a transmissibilidade das acções, Coimbra (Almedina) 2006, p. 497 ss, 515 ss, e in CSC em Comentário V (2018), cit., p. 581 ss, e Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, II – Das Sociedades, 6.ª ed., Coimbra (Almedina) 2019, p. 365.

[xxv] A respeito das quotas, a preferência resulta, nestes casos, da própria lei (art. 239.5), que não admite restrições estatutárias na matéria (art. 239.2). Embora se possa argumentar que a preferência legal pode, por força dos estatutos, ser exercitável por um valor determinado segundo critério fixado nestes, isso parece dificilmente conciliável com este afastamento das restrições estatutárias e também com o que se retira do (embora discutível) art. 235.2, relativo à amortização de quotas apreendidas judicialmente.

[xxvi] Cfr. Evaristo Mendes, A transmissibilidade das acções (1989) II, cit., p. 258, 262 ss, Almeida Costa / Evaristo Mendes, «Preferências», cit., RLJ 140 (2010), p. 37 s.

[xxvii] Cfr. Almeida Costa / Evaristo Mendes, «Preferências», cit., RLJ 140 (2010), p. 37 e nota 160 (citando Agostinho Guedes).

[xxviii] Problema paralelo: na cláusula de consentimento é possível prever, em caso de recusa do consentimento, uma obrigação de a sociedade adquirir ou amortizar as ações, em alternativa a fazê-las adquirir [cfr. o art. 329.3c)]?

[xxix] A obrigação deve considerar-se vencida na data do ato de recusa do consentimento.

[xxx] Ou seja, estando em causa um pedido de consentimento para projeto de transmissão, as partes podem efetivar uma transmissão eficaz face à sociedade, assumindo o adquirente a qualidade de sócio inerente às ações. Se a transmissão já tiver ocorrido, podem torná-la eficaz em relação à sociedade.

[xxxi] No sentido da aplicação analógica, sem mais, do regime das quotas (art. 231.2), de que resulta um modus operandi um pouco diferente do proposto, mais exigente para a sociedade, cfr. Soveral Martins, in CSC em Comentário V (2018), cit., p. 629.

[xxxii] Fonte: www.dgsi.pt, proc. 427/13.8TVLSB.L1.S1.

[xxxiii] Acerca do tema, em geral, salientando a existência de um efetivo problema jurídico, cfr. Fátima Gomes, O direito ao lucro e o dever de participar nas perdas nas sociedades anónimas, Coimbra (Almedina) 2011, p. 187 ss, 217 s, e, ainda, 170 s, 178 ss, 187 s, 204 ss, com mais indicações.

[xxxiv] Em Portugal, o primeiro diploma dedicado à matéria foi o DL 17/86, de 5 de fevereiro.

[xxxv] Cfr. o DL 319/2002, de 28 de dezembro. O sistema foi mantido no posterior DL 375/2007, de 8 de novembro, e na atual Lei 18/2015, de 4 de março.

[xxxvi] No Acórdão, alude-se incidentalmente aos acordos de voto, observando que a doutrina maioritária os considera insuscetíveis de execução específica. Há, no entanto, acordos de voto cuja execução específica – nos termos do art. 830 do CC ou mediante a designação de mandatário pelo tribunal – se mostra viável e em relação aos quais não existem razões para afastar tal execução (pense-se, por ex., num acordo pelo qual os sócios de certa sociedade ou alguns deles se obrigam a votar numa futura deliberação de dissolução da sociedade ou, a entender-se que, numa cessão de quotas sujeita ao consentimento da sociedade, o alienante pode votar na deliberação acerca deste, o acordo entre cedente e cessionário, expresso ou tácito, pelo qual o primeiro se obriga a votar favoravelmente). O art. 17 do CSC não se opõe a isso. Sobre o tema, cfr., com mais indicações, cfr. Graça Trigo, Os acordos parassociais sobre o exercício de voto, 2.ª ed., Lisboa (UCE) 2011, p. 197 ss, em especial, 211 ss, e, de forma sumária, «Acordos parassociais – Síntese das questões jurídicas mais relevantes», in IDET, Problemas de Direito das Sociedades, Coimbra (Almedina) 2002, p. 169-184, 181 s.

[xxxvii] Fonte: www.dgsi.pt, proc. 95/14.0T8BGC.G1.S1.

[xxxviii] Cfr., a propósito, o art. 528.1 do CSC.

[xxxix] Segundo se depreende do teor dos arestos, trata-se do Ac.TRG de 13.09.2018 (Margarida Almeida Fernandes), proc. 95/14.0T8BGC.G1, disponível em www.dgsi.pt.

[xl] O trecho em que se transcreve uma passagem do acórdão recorrido, relativa às ações exibidas, está defeituosa, não se percebendo o seu sentido.

[xli] Cita-se, a este respeito, em abono da afirmação, o Acórdão do TRL de 13.07.2016. Trata-se, porém, de um acórdão relativo a uma SQ. Sendo as quotas insuscetíveis de titulação (art. 219.7 do CSC), o problema não se coloca nos mesmos termos quando existem ações tituladas, como era o caso.

[xlii] Em ambos os casos, na base da argumentação, encontra-se sobretudo um escrito de Vera Eiró, «A transmissão de valores mobiliários - As acções em especial», Themis 11 (2005) p. 145-185, mormente, p. 160 ss. Todavia, por trás do escrito desta autora, está um artigo do Prof. Ferreira de Almeida relativo as valores mobiliários escriturais, em que o mesmo defende o caráter constitutivo do registo destes, incluindo dos atos que sobre eles incidem, sendo nesta ótica que afirma não poder o simples beneficiário de negócio translativo exercer quaisquer faculdades inerentes ao valor mobiliário (próprias de um direito absoluto sobre este), incluindo a faculdade de o transmitir, cabendo-lhe apenas a titularidade de uma posição obrigacional e do direito potestativo de requerer o registo: cfr. «Desmaterialização dos títulos de crédito: valores mobiliários escriturais», Revista da Banca, 26 (1993), p. 23-39, 34 s.

[xliii] Transmissão esta também, em certo sentido, precária, dada a regra da prevalência de uma transmissão cartular ou escritural sobre uma transmissão meramente consensual (cfr. adiante), à semelhança do que acontece no tráfico de bens registados em geral.

[xliv] Cfr. também Pedro de Albuquerque, citado adiante (p. 102).

[xlv] Note-se que, quanto às ações tituladas nominativas, o art. 483 do CCom manda aplicar as regras da cessão de créditos. Da presença de um título de crédito nominativo pode extrair-se um modo e um regime especial de circulação, como fez a nossa doutrina, mas está por demonstrar que estes sejam incompatíveis com a possibilidade de transmissão mediante cessão. Por exemplo, na Alemanha, as duas formas de transmissão são admitidas, acolhendo o legislador em 2001, de forma expressa [§ 68 (1)], a orientação que prevalentemente se formara na doutrina e na jurisprudência. Mais: parte-se da ideia de que as ações são transmissíveis por cessão, podendo também ser transmitidas por endosso dos títulos.

[xlvi] Note-se, ainda, o seguinte. Uma vez celebrado o contrato, por ex., um contrato de compra e venda, nas teses consensualistas, havendo uma aquisição das ações, o adquirente tem, designadamente, dois direitos: o direito ao registo (averbamento da transmissão no registo das ações) e o direito à cartularização da transmissão (entrega dos títulos com declaração de transmissão a seu favor), sendo, aliás, esta cartularização necessária para se poder exigir à sociedade o registo. Nas teses do título e do modo, como o contrato causal não opera a transmissão das ações, sendo necessário ainda o modo (entrega dos títulos com declaração de transmissão), também não se concebe um direito ao registo – porque este respeita à transmissão e ela ainda não existe.  

[xlvii] Tal como sucede no contexto do tráfico de bens registados em geral, uma explicação possível para o fenómeno será a de que, mantendo o alienante os títulos (ou conservando o registo em seu nome), ele não apenas se mantém cartularmente (ou escrituralmente) legitimado para dispor novamente das ações, mas também conserva, legalmente, legitimidade (material) para o fazer [mantém o poder jurídico (rechtliches Können), embora não deva fazer uso dele]; pelo que o adquirente cartular ou escritural adquire as ações por um válido negócio translativo, de quem tem legitimidade para alienar das ações apesar de já as ter transmitido contratualmente.

[xlviii] Está aqui em causa a característica da incorporação: cfr. o revogado art. 104.1 do CVM e, por ex., Evaristo Mendes, Títulos de crédito, Apontamentos das aulas dadas na FDL no ano letivo de 1990-91, disponível em evaristomendes.eu, III.1, p. 4 e 65, Fernando Olavo, Direito Comercial, II – Títulos de crédito em geral, Coimbra Editora 1977, p. 17 s.

[xlix] Cfr., por ex., Evaristo Mendes, A transmissibilidade das acções, I, Lisboa 1989 (diss. UCP), disponível em evaristomendes.eu, I.18, n.º 134, Títulos de crédito (1991), cit., p. 66 e 67, e Almeida Costa / Evaristo Mendes, «Transporte marítimo. Conhecimento de carga», DJ IX (1995)/1, p. 192, «Transmissão de acções tituladas nominativas», in Estudos dedicados ao Professor Doutor Luís Alberto Carvalho Fernandes, vol. III, Lisboa (UCE) 2011, p. 13-66, 22 e 63.

[l] Cfr., por ex., Evaristo Mendes, «A compra e venda como contrato translativo. Alguns aspectos», O Direito, 148 (2016)/IV, p. 783  (texto de 1986), bem como Fátima Gomes, citada na noa a seguir, ibidem..

[li] Cfr., por ex., Evaristo Mendes, Títulos de crédito (1991), cit., p. 66 e 67, e Fernando Olavo, Títulos de crédito (1977), cit., p. 21 ss (distinguindo titularidade de legitimação). Cfr., ainda, acerca da suficiência do título para o exercício do direito nele inscrito, Engrácia Antunes, Os Títulos de Crédito, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2012, p. 18, e Fátima Gomes, Direito Comercial, 2.ª ed., Lisboa (UCE) 2017, p. 222.

[lii] Formulação alternativa: aquele que invoca um direito relativo a valores mobiliários, se o justifica através do competente registo ou do título, considera-se legitimado para o seu exercício. No que se refere aos títulos cambiários, cfr. os art. 16 I e 40 III da LULL. Na LUCh, veja-se o art. 19.

[liii] O TRG, no acórdão recorrido, também entendeu que, sendo necessário um modo para a transmissão das ações, o contrato de compra e venda não operara a transmissão desta. Contudo, aludindo à aquisição das mesmas decorrente do contrato de sociedade (aquisição originária), de que resultava a titularidade de ações por parte da vendedora pelo menos em parte necessárias para perfazer o número de ações apresentadas pelo pretendente a participar nas reuniões da AG, observou:

«Ora, se é incontestável que, nas referidas assembleias gerais, a autora foi impedida de permanecer e votar as deliberações aí tomadas, não obstante se ter apresentado como detentora de acções ao portador que exibiu, importa apurar se a mesma provou ter a qualidade de accionista.

Entendemos que não.

O facto da autora se ter apresentado como portadora das acções que exibiu e assim estar aparentemente legitimada para exercer os direitos inerentes às mesmas não conduz necessariamente que a mesma seja titular do direito de propriedade sobre as mesmas. A mesma apenas beneficia da presunção que o direito existe e que ela é a sua titular. Uma vez que a ré pôs em causa que a autora fosse titular do direito de propriedade sobre as acções incumbia a esta, quer no momento em que se apresentou nas assembleias, quer no momento em que instaurou a presente acção, ter alegado e provado, o negócio causal subjacente através do qual, juntamente com a entrega das acções pelo seu anterior titular, adquiriu o direito de propriedade sobre as mesmas.

Compreende-se que assim seja, pois em tese aquele que se apresenta como simples portador de acções ao portador pode tê-las simplesmente “achado” ou mesmo furtado.»

 

Como se nota, o Supremo seguiu aqui de perto o discurso do TRG. Mas cabe observar: se alguém beneficia da presunção de titularidade de um direito ou da presunção de legitimidade (material) quanto ao seu exercício, não basta a quem pretenda contestar essa titularidade ou legitimidade alegar que ela não existe; tem de fazer prova disso. Cfr., aliás, o art. 350.1 do CC.

[liv] Acerca do tema, cfr. M. Nogueira Serens, «A exigência estatutária em sociedades anónimas (que não sejam “sociedades abertas”) do prévio depósito das acções para o exercício do direito de voto», in Estudos em memória do Prof. Doutor Paulo M. Sendin, Lisboa (UCE) 2012, p. 341-353.

[lv] Fonte: www.dgsi.pt, proc. 14649/17.9T8SNT-A.L1-1.

[lvi] Acrescentou-se o realce.

[lvii] Não se sabe porquê. Segundo os mesmos, tê-los-ão conservado em garantia ou, noutra explicação, a sua manutenção haverá sido acordada de forma a acautelar litígios futuros, dada a existência de clima de desconfiança generalizada, mas tal não foi dado como provado.

[lviii] Nos factos indiciariamente assentes, consta que houve transmissão, por parte dos requerentes, para a SGPS (nºs 32 e 34), mas isso não é um facto: é uma conclusão de direito...

[lix] Fonte: www.dgsi.pt, proc. 08B153.

[lx] Na vigência do CVM, no sentido de que a falta das formalidades em causa não afeta a validade do contrato translativo, cfr. também, por ex., o Ac.TRL de 12.07.2007 (Rui Vouga), proc. 2794/2007-1.

Considerando as formalidades como o modo da transmissão, necessário para que esta tenha lugar, vejam-se, também, por ex., o Ac.TRL de 29.11.2011 (Manuel Marques), proc. 5734/09.1TVLSB.L1-1, os Acórdãos do TRP de 18.01.2011 (Maria Cecília Agante), proc. 2703/08.2TBMTS.P1, e de 18.09.2008 (Carlos Portela), proc. 0831973, bem como os Acórdãos do TRC de 15.11.2016 (António Carvalho Martins), proc. 2355/11.2TBPBL.C1, e de 3.07.2012 (Artur Dias), proc. 688/11.7TBCNT.C1, disponíveis em www.dgsi.pt. Aludindo ao problema, com observações interessantes, mas sem tomar posição sobre ele, porque não necessário para a decisão da causa, cfr. o Ac.STJ de 13.03.2007 (Sebastião Póvoas), proc. 07A379, disponível em www.dgsi.pt.

No sentido da consensualidade, cfr. o Ac.TRL de 7.03.1995 (Pais do Amaral), proc. 0083011 (ações tituladas nominativas), o Ac.TRC de 3.06.2014 (Barateiro Martins), proc. 1156/05.1TBVIS-A.C (ações tituladas ao portador), disponíveis em www.dgsi.pt.

Lê-se neste último aresto:

«E o que é que se transmite quando se transmitem acções tituladas?

Transmite-se – no plano subjacente, onde se situa o facto substantivo capaz de fazer operar a transmissão – a titularidade das acções; e entrega-se – no plano representativo onde se insere o facto formal/cartular capaz de transferir para outra pessoa o título de legitimação – o título em papel.

Na base e origem do circuito/transmissão, há um acordo de transmissão, geralmente designado pela expressão de contrato de negociação que constitui a justa causa tradicionais e tem precisamente por objecto a transmissão da propriedade do título segundo normas análogas às da transferência das coisas móveis e, com ela, da titularidade do direito nele incorporado.

Diz-se no art. 101.º/1 CVM – como é regra geral dos títulos ao portador – que as acções ao portador tituladas circulam através da traditio.

Porém, a traditio não produz qualquer efeito substantivo na sucessão do direito incorporado, apenas legitimando o transmissário para exercer os direitos inerentes e para dispor do título pela lei da circulação.

A transmissão da titularidade das acções ocorre com o negócio subjacente, de acordo com as regras de direito civil (art. 408.º do CC), produzindo efeitos entre as partes, mas a sua oponibilidade à sociedade e a legitimação para efeitos de exercício dos direitos inerentes fica dependente da lei da circulação, in casu, da entrega das acções.

Podem pois surgir aqui – nas acções tituladas ao portador – conflitos entre a titularidade e a legitimação.

Se tiver sido celebrado negócio jurídico com efeitos translativos da titularidade das acções, o adquirente de tais acções não poderá exercer os direitos inerentes enquanto não tiver as acções em seu poder (ou registadas no depositário em seu nome), mas o transmitente, apesar de já não ser titular, continuará legitimado para exercer esses direitos.

Por outro lado, sem ter sido celebrado qualquer negócio jurídico com efeitos translativos da titularidade das acções, podem as acções/títulos ter circulado através da traditio (v. g., podem até ter sido furtadas ou “achadas”) e o transmissário/portador, apesar de não ser o titular da participação social, está legitimado a exercer os direitos inerentes e para dispor do título pela lei da circulação (poderá, designadamente, dar ou vender as mesmas acções/títulos e entregá-las a um terceiro, que ficará assim legitimado para exercer os direitos inerentes).»

«Não contendo nem o CVM nem o CSC quaisquer preceitos sobre o regime substantivo da transmissão de valores mobiliários, o regime substantivo de tal transmissão (de valores mobiliários) terá de ser encontrado no C. Civil e no C. Comercial, não podendo deixar de aplicar-se o princípio consensualista, consignado no art. 408.º/1 CC (salvo as excepções previstas na lei), da transferência da titularidade por força do contrato.»

Veja-se também o Ac.STJ de 21.03.2017 (Fonseca Ramos).

[lxi] Embora não se indique que se trata de transcrição.

[lxii] Cfr. também Pedro de Albuquerque, Direito das Obrigações.  Contratos em especial I, 2.ª ed., Coimbra (Almedina) 2019, p. 98.

[lxiii] E, eventualmente, o outro aspeto da autonomia dos TC, presente, designadamente, no art. 17 da LULL. Sobre este aspeto, cfr. Evaristo Mendes, A transmissibilidade das ações (1989), cit., máxime, n.ºs 151, 166 e 167. 

[lxiv] No mesmo sentido, cfr., designadamente, o citado Ac.TRL de 12.07.2007 (Rui Vouga), proc. 2794/2007-1, com mais indicações.

[lxv] Cfr., nesta direção, designadamente, os Acórdãos do TRC de 25.03.2010 (Teles Pereira), proc. 35/10.TBPMS-A.C1, e de 3.10.2005 (Garcia Calejo), proc. 2368/05, disponíveis em www.dgsi.pt. Lê-se no sumário do primeiro:

«II – A apreciação liminar da legitimidade referida a esse elemento (ter a qualidade de sócio) deve tutelar a aparência invocada, para o efeito de possibilitar a ulterior determinação, no desenvolvimento desse procedimento, das circunstâncias por referência às quais se invoca e justifica a qualidade de sócio. III – No caso de acções ao portador de uma sociedade anónima, a legitimação para o exercício dos direitos correspondentes a estas (entre os quais o de requerer a suspensão de deliberações sociais), resulta, em princípio, da detenção material ou posse dessas acções».

O segundo reveste especial interesse porque se refere à, mais problemática, transmissão das ações (ao portador). Lê-se na respetiva fundamentação:

«Sendo a embargante detentora das acções (ao portador), deve ter-se como proprietária delas, já que a transmissão desses títulos se faz (precisamente) através da entrega dos títulos, como decorre do disposto nos arts. 327º nº 1 do C.S.Comerciais e 101º nº 1 do C.V.M.»

«Na douta sentença entendeu-se que a entrega material dos títulos não opera a transferência, no caso [de o] negócio de transmissão ser nulo e não ter chegado a existir. Não nos parece que este entendimento seja correcto, já que, como se viu, a entrega material das acções opera a transmissão dos títulos. O que pode suceder é que o negócio que levou à transmissão e entrega dos títulos (negócio subjacente), possa vir a ser declarado nulo ou ser anulável. Evidentemente que em resultado dessa nulidade ou anulabilidade, as acções terão que retornar ao transmitente, nos termos do art. 289º nº 1 do C.Civil. Porém, a prova dessa nulidade ou anulabilidade caberá, obviamente, àquele que invoca o respectivo vício, no caso à embargada, o que ela não fez nos autos (nem sequer isso está em causa, como se vê pela posição dela assumida nos articulados).

Mas há mais. A embargante logrou provar o negócio, mediante o qual, lhe foram entregues as ditas acções. Ou seja, demonstrou o negócio subjacente que levou à transmissão das acções. E não lhe era necessário efectuar tal prova, já que gozava da situação jurídica derivada de ser a detentora dos títulos. Evidenciou, na verdade, que estes lhe foram entregues em dação em pagamento, pelo requerido Manuel Duarte, em virtude sucessivos empréstimos que lhe fez. Nesta conformidade, é incorrecta a asserção da sentença onde se diz que da matéria provada não resulta que a embargante tenha adquirido as acções em causa, por qualquer meio., operação juridicamente válida, como resulta dos arts. 1142º e 837º do C.Civil.»

[lxvi] No caso das ações escriturais, tem direta ligação à legitimação ativa prevista neste preceito, da qual pode considerar-se uma manifestação fundamental, o art. 74.1 do CVM, que, na linha do art. 7 do CRPred, estabelece: «O registo em conta individualizada de valores mobiliários escriturais faz presumir que o direito existe e pertence ao titular da conta, nos precisos termos dos respetivos registos». Do mesmo modo, num valor mobiliário titulado ao portador, o portador do título beneficia de presunção idêntica; e, tratando-se de valor titulado nominativo, também beneficia de uma tal presunção o portador do título que se mostre beneficiário de uma declaração de transmissão ou de uma cadeia cartularmente regular de transmissões nele inscrita. Neste último caso, perante a sociedade, a cadeia regular de transmissões tem que recuar a quem se encontra inscrito como acionista no competente registo (cfr., a este respeito, o § 3.º, infra).

[lxvii] Instituições de direito civil portuguez, Lisboa 1907 (7ª ed.), II, p. 754.

[lxviii] Cfr. Galvão Telles, «Contratos Civis», in BMJ 83 (1959), p. 114 (117 ss), «Venda obrigatória e venda real», cit. na nota 10, p. 85 s; Vaz Serra, «Efeitos dos contratos», BMJ 74 (1958), p. 333 (349 ss); Raúl Ventura, «O contrato de compra e venda no Código civil», ROA 43 (1983),  p. 588 ss (593 ss). Cfr., ainda, Pires de Lima/Antunes Varela, Código civil anotado (CCA), II, anotações 2 e 4 ao art. 874 (p. 166 s), anotação 1 ao art. 879 (p. 173) e, ainda, CCA I, 1982, anotações ao art. 408 (p. 356); bem como Almeida Costa, «Contrato», in Polis, cit. na nota 4, col. 1238 s, «Contrato civil», ibidem, col. 1256, 1258 s, e Direito das Obrigações, Coimbra 1984, p. 192 ss.

[lxix] Evaristo Mendes, «A compra e venda como contrato translativo. Alguns aspectos», O Direito 148 (2016)/IV, cit., p. 786 s  (texto de 1986).

[lxx] Segundo Sacco – cit na nota 49 – na evolução do sistema do jus commune para o sistema do código napoleónico, ter-se-á verificado, em primeiro lugar, uma substituição da tradição pelo constituto possessório (nalguns casos), sendo este, mais tarde, concebido como convenção de alienação.

[lxxi] Cf. Benedetto, «Vendita (Diritto intermedio)», in Nov. Dig. It. XX, p. 600 (603 s); e Galvão Telles, «Venda obrigatória e venda real» (1950), cit. na nota 10, p. 80 ss.

[lxxii] Evaristo Mendes, «A compra e venda como contrato translativo. Alguns aspectos», O Direito 148 (2016)/IV, cit., p. 815 (texto de 1986); cfr., ainda, p. 819.

[lxxiii] O texto, sendo de 1986, refere-se apenas aos valores mobiliários titulados.

[lxxiv] Evaristo Mendes, «A compra e venda como contrato translativo. Alguns aspectos», O Direito 148 (2016)/IV, cit., p. 794 s, 803 (texto de 1986). Veja-se também, acerca das ações, Evaristo Mendes, A transmissibilidade das acções, cit., 1989, I, disponível em evaristo.mendes.eu, I.18, nºs 172 ss (p. 108 ss), e, quanto ao direito alemão, nºs 31 ss (p. 28 ss), 44 ss (p. 36 ss). No campo do tráfico imobiliário, acerca da questão de saber se os terceiros registados apenas beneficiam da tutela do art. 5 do CRPred se de boa fé (desconhecedores, designadamente, de anterior transmissão não registada no momento da aquisição), cfr., por ex., com mais indicações, Rui Pinto Duarte, O Registo Predial, Coimbra (Almedina) 2020, p. 121 e notas 144 a 146, e Mónica Jardim, Efeitos substantivos do Registo Predial. Terceiros para Efeitos de Registo, Coimbra (Almedina) 2013 (reimp. 2015), p. 551 ss /554, ambos favoráveis, na linha da Escola de Coimbra, à ideia de que as transmissões registadas prevalecem independentemente da boa ou má fé do adquirente, mas citando diversos autores e jurisprudência no sentido oposto. Note-se, em todo o caso, que seja qual for a posição a tomar neste contexto, no caso dos valores mobiliários, justamente por serem valores circulantes, cujo tráfico deve ser desembaraçado, incluindo de possíveis entraves processuais (incluindo cautelares), a boa fé não é de exigir. 

[lxxv] Cfr. Evaristo Mendes, «A compra e venda como contrato translativo. Alguns aspectos», O Direito 148 (2016)/IV, cit., p. 787 s, 803 ss, 814 s, 819, 820 s (texto de 1986), aludindo, ainda, ao exato significado do art. 408 do CC (observando que nele o princípio da consensualidade se encontra mais pressuposto do que consagrado – p. 787). Como é bom de ver, não estamos aqui perante quaisquer exceções ao princípio, mas limites operativos naturais e legais; a que pode acrescer, designadamente, uma cláusula de reserva de propriedade (cfr. o art. 409 do CC). Mas já haverá uma verdadeira exceção se se admitir, no campo dos títulos de crédito e dos valores mobiliários, a teoria do título e do modo.

Cfr. também, designadamente, Pedro de Albuquerque, Direito das Obrigações.  Contratos em especial, vol I, 2.ª ed., Coimbra (Almedina) 2019, p. 82 ss, 88 ss e, acerca dos valores mobiliários, p. 93 ss, bem como a nota 270, p. 83, e Mónica Jardim, Efeitos substantivos do Registo Predial (2013), cit., p. 412 ss (embora admitindo uma exceção à consensualidade quanto aos títulos ao portador - p. 414 e 420). Veja-se, ainda, Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, 3.ª ed., Cascais (Principia) 2013, p. 60 e s, observando que, do ponto de vista das relações contratuais (partes nos negócios translativos), o princípio da consensualidade representa um passo positivo na evolução do Direito, mas apresenta uma debilidade do ponto de vista dos terceiros e da comunidade em geral, a quem o efeito translativo também interessa, já que desta outra ótica, relevante designadamente  para a garantia dos direitos de crédito, a principal preocupação a ter em conta é com a publicidade da titularidade dos bens e o princípio gera uma menor certeza quanto a esta titularidade. Daí a importância da posse e do registo. Embora não se ocupe especificamente do tema, o autor entende que, no campo dos valores mobiliários, o princípio não se aplica (p. 60). No que toca aos bens imóveis, cfr. também O Registo Predial (2019, cit., p. 51 s, 104, 113 s, bem como 47 e 112 (legitimação registal para alienar), 105 ss /117 ss (conceito de terceiros).

[lxxvi] Cfr. Almeida Costa / Evaristo Mendes, «Transmissão de acções tituladas nominativas», in Estudos dedicados ao Professor Doutor Luís Alberto Carvalho Fernandes, vol. III, Lisboa (UCE) 2011, p. 13-66, p. 41 ss, 63 s.

[lxxvii] Cfr. Evaristo Mendes, A transmissibilidade das acções (1989), cit., n.º 173, nota 288, e Almeida Costa / Evaristo Mendes, «Transmissão de acções tituladas nominativas» (2011), cit., p. 58 ss.

[lxxviii] Cfr. Almeida Costa / Evaristo Mendes, «Transmissão de acções tituladas nominativas» (2011), cit., p. 61 s.

[lxxix] Cfr., por ex., os Acórdãos do STJ de 6.02.1997, BMJ 464 (1997), p. 551 ss, e de 6.10.1998, BMJ 480 (1998), p. 490 ss, e o Ac.TRE de 14.02.2008 (João Marques), proc. 2806/07-3, disponível em www.dgsi.pt. Cfr., ainda, os Acórdãos do TRP de 27.11.2000 (Couto Pereira), proc. 0050931, e de 20.03.2001 (Afonso Correia), proc. 0120083, e o Ac.TRL de 14.01.1993 (Lopes Pinto), proc. 0066462, disponíveis em www.dgsi.pt (sumário) (este considerando o contrato de alienação não concluído). Contra, admitindo a consensualidade, cfr., designadamente, o Ac.TRL de 7.03.1995 (Pais do Amaral), proc. 0083011, disponível nem www.dgsi.pt (sumário).

[lxxx] Rectius, mediante entrega do título a este com essa declaração (cfr. os VM ao portador).

[lxxxi] Ou IF que o represente.

[lxxxii] No que toca aos valores mobiliários titulados nominativos, como resulta do texto, a situação é diferente, porque, dado o legue de transmissões explicitamente abrangidas, nem o elemento literal é verdadeiramente procedente.

[lxxxiii] Quanto a este ponto, cfr. supra, o comentário relativo ao Acórdão do STJ …, o n.º 1 deste § 2.º, Evaristo Mendes, A transmissibilidade das acções (1989), cit., n.º 174, e Almeida Costa / Evaristo Mendes, «Transmissão de acções tituladas nominativas» (2011), cit., p. 47. Note-se que o CVM é direito especial, relativamente ao CC e ao CCom, não excecional.

[lxxxiv] Em contraposição à concreta posição de sócio conferida pela titularidade (ou contitularidade) de uma ou mais delas (participação social em sentido subjetivo). Cfr. Evaristo Mendes, A transmissibilidade das acções (1989), cit., n.ºs 4, 6, 17 ss, 111, 131 ss, 137, e n.ºs 60 s, 83, 139 e 170.

[lxxxv] Cfr. Evaristo Mendes, A transmissibilidade das acções (1989), cit., n.ºs 8, 24, 73, 78.2, 85 e 136.

[lxxxvi] Cfr. Evaristo Mendes, A transmissibilidade das acções (1989), cit., n.º 176, e Almeida Costa / Evaristo Mendes, «Transmissão de acções tituladas nominativas» (2011), cit., p. 43.

[lxxxvii] Sobre o tema, cfr. Evaristo Mendes, «A compra e venda como contrato translativo» (1986/2016), cit., p. 813 ss, em especial, 815 ss.

[lxxxviii] Acerca deste ponto, com mais informações, cfr. Almeida Costa / Evaristo Mendes, «Transmissão de acções tituladas nominativas» (2011), cit., p. 48 ss.

[lxxxix] Cfr. Evaristo Mendes, A transmissibilidade das acções (1989), cit., n.ºs 27 ss, 36 ss.

[xc] Contestando também a ideia dos valores mobiliários – concebidos para dar a direitos não reais um regime de circulação e de exercício especiais - como forma de propriedade, na discussão acerca da consensualidade, cfr. Pedro de Albuquerque, Direito das Obrigações.  Contratos em especial I (2019), cit., p. 102.

[xci] Cfr. Almeida Costa / Evaristo Mendes, «Transmissão de acções tituladas nominativas» (2011), cit., p. 66.

[xcii] «Rectius», mediante a entrega dos títulos com tal declaração de transmissão.

[xciii] Como também sucede em Espanha, em que vigora o sistema do título e do modo (cfr. supra).

[xciv] Cfr. Almeida Costa / Evaristo Mendes, «Transmissão de acções tituladas nominativas» (2011), cit., p. 56 s e nota 87.

[xcv] Cfr. Francesco Galgano, «Sulla circolazione dei titoli di credito», in Contratto e Impresa, 1987, p. 382 ss. Anteriormente, partindo do princípio da consensualidade, cfr. «Mancata esecuzione del “transfert” ed esercizio dei diritti sociali nel trasferimento per girata delle azioni nominative», in Rivista di diritto civile, 1962, II,  p. 400 ss, e Società per azioni, Padova, 1984, p. 139 ss.

[xcvi] Cfr., por último, quanto às acções, Il nuovo diritto societario, Padova, 2006, págs. 189 e seg. Para uma discussão deste problema, cfr., desenvolvidamente, Giovanni Panzarini, Autonomia e circolazione nei titoli di credito nominativi e al portatore, Milano, 1969, págs. 5 e segs..

[xcvii] Sobre este problema específico, cfr. Panzarini, citado na nota anterior, ibidem.

[xcviii] Cfr., com explicações adicionais, Somario di diritto commerciale, Milano, 2000, págs. 353 e seg.

[xcix] Sobre este ponto, cfr., também, Paolo Spada, «L'efficacia del consenso traslativo nella circolazione dei titoli azionari: proposte per ripensare un problema», in Silloge in onore di Giorgio Oppo, cit., 1992, págs. 466 e segs., bem como, de entre os partidários da tese «realista», Asquini, Titoli di credito, Padova, 1966, págs. 63 e seg. (a respeito das chamadas transmissões impróprias, de direito comum).

[c] Cfr., ainda, Almeida Costa / Evaristo Mendes, «Transmissão de acções tituladas nominativas» (2011), cit., p. 54.

[ci] A ideia não é analisar exaustivamente os argumentos que têm sido esgrimidos a favor e contra a consensualidade, no domínio dos valores mobiliários; mas apresentar, de modo sintético, aqueles vão no sentido da consensualidade. Para uma exposição mais ampla e uma indicação e análise crítica dos argumentos da tese contrária, cfr., designadamente, Pedro de Albuquerque, Direito das Obrigações.  Contratos em especial I (2019), cit., p. 100 ss., Almeida Costa / Evaristo Mendes, «Transmissão de acções tituladas nominativas» (2011), cit., p. 41 ss, e, mais recuadamente, com base em textos legais semelhantes, Evaristo Mendes, A transmissibilidade das acções (1989), n.ºs 31 ss, 44 ss, 172 ss, bem como as referências aí contidas.

[cii] A ideia que se colhe nalguma doutrina nacional segundo a qual o princípio da consensualidade é um mero produto conceptual do jusnaturalismo e sofre inúmeras exceções, de tal forma que ele próprio seria a exceção, tendo mesmo caráter residual [cfr., designadamente, Ferreira de Almeida, «Transmissão contratual da propriedade - Entre o mito da consensualidade e a realidade de múltiplos regimes», Themis,11 (2005), p. 5-17, 7 ss, 15 s, entendendo que a distinção entre efeito direto e imediato é «ambígua e imprecisa», e, na mesma linha, Maria João Mimoso / Ricardo Rodrigues, «Reconfiguação do consensualismo contratual (As ações tituladas nominativas e os limites à transmissão)», Julgar Online, Julho de 2014, p. 35-79, 50 ss], tem na base um desconhecimento de importantes dados históricos da prática negocial [mesmo quanto à prática atual, note-se a observação de Vera Eiró, «A transmissão de valores mobiliários - As acções em especial», Themis 11 (2005) p. 145-185, abstract e nota 63, segundo a qual a corrente prática de celebrar contratos-promessas de compra e venda seria inútil, devendo ser substituída pela simples celebração de contratos de compra e venda (obrigacional)] e parte de uma conceção do mesmo, se não errada, pelo menos diferente da que consideramos consagrada no CC. Acerca do tema, recorda-se o que se escreveu supra (n.º 1), mormente no texto correspondente às notas 64 a 68 e 71. Quando dizemos que as exceções são limitadas, abstraimos, naturalmente, da questão de saber se os valores mobiliários estão abrangidos por ele ou não, que agora se discute. Se se concluir que o CVM contém uma tal exceção (o que não nos parece correto), o princípio sofrerá, de facto, uma grande exceção. Além disso, também é certo que, no campo dos bens imóveis, o campo operacional do princípio sofre fortes limitações, como bem observa Rui Pinto Duarte [cfr. O Registo Predial (2020), cit., p. 24 s, 45 ss, 49 ss, 56, 102 ss].

[ciii] Aplicando ao caso o raciocínio presente nos acórdãos do STJ de 2008 e 2019, a respeito das ações valores mobiliários, também aqui o adquirente meramente consensual seria titular de um direito vazio; e, no entanto, este é um dado comummente aceite.

[civ] Mais especificamente, a conciliação acolhida, a que já se aludiu, assenta no seguinte: tal como uma transmissão de créditos ou de outros direitos não reais notificada prevalece sobre uma anterior transmissão não notificada, também uma transmissão jusmobiliária (de direito especial) das ações valores mobiliários prevalece sobre uma anterior transmissão meramente consensual (de direito comum).

[cv] A respeito desta inserção no sistema jurídico, recorda-se também que o CVM não contém a exigência de um contrato translativo, causal, mas ela é, em geral, admitida (contra, Ferreira de Almeida, «Transmissão contratual da propriedade - Entre o mito da consensualidade e a realidade de múltiplos regimes», Themis,11 (2005), p. 5-17, 14 s).

[cvi] A este respeito, importa assinalar o que se segue. Nos sistemas em que vigora o princípio da tradição,  afirmar a transmissibilidade das ações tituladas (pelo menos nominativas) mediante cessão tem na base uma perspetiva analítica das mesmas, donde decorrem dois modos possíveis de circulação: aquele que é próprio do «direito acionário» incorporado (cessão, não sujeita ao princípio da tradição), seguindo o título o direito como seu acessório; e aquele que é próprio do título (transmissão real, sujeita ao princípio da tradição), seguindo o direito o documento representativo do mesmo. Como se compreende, uma tal perspetiva implica não dar demasiado relevo à equiparação das ações tituladas a coisas corpóreas, subjacente ao princípio da incorporação, vendo o valor mobiliário, contra a visão mais tradicional dos títulos de crédito, como ele realmente é, ou seja, reconhecendo que o centro de gravidade reside no quid representado e não no documento representativo.

Nos sistemas consensualistas, como o nosso, o italiano e o francês, em que quer a cessão de créditos e outros direitos não reais quer a transmissão de coisas e direitos reais são consensuais, a transmissão das ações valores mobiliários tanto se dá solo consensu quando elas se encarem nesta perspetiva analítica, como quando se vejam as mesmas como uma unidade incindível do direito incorporado e do documento e se realce este último, equiparando o todo assim formado a uma coisa móvel.

[cvii] Pense-se numa cessão de quotas livre não notificada à sociedade ou numa correspondente transmissão de ações não tituladas nem escriturais, na aquisição de quotas ou ações próprias, etc. Cfr. supra, o comentário ao Ac.STJ de 5.02.2019, bem como Pedro de Albuquerque, Direito das Obrigações.  Contratos em especial I (2019), cit., p. 102 ss.

[cviii] Cfr., por ex., o Ac.STJ de 24.05.2001 (Miranda Gusmão), CJ-STJ 2001/II, p. 105 s, Ac.STJ de 13.03.2007 (Sebastião Póvoas), CJ-STJ 2007/I, p. 101 ss (103, embora o tema da decisão não fosse este), Pedro de Albuquerque, Direito das Obrigações.  Contratos em especial I (2019), cit., p. 103 ss, Paulo Câmara, Manual de Direito dos Valores Mobiliários, 4.ª ed., Coimbra (Almedina) 2018, p. 364 s, e Vera Eiró, «A transmissão de valores mobiliários - As acções em especial», Themis 11 (2005) p. 145-185, 162 s.

[cix] Cfr., supra, as observações gerais de Rui Pinto Duarte acerca do princípio da consensualidade.

[cx] Cfr. também Pedro de Albuquerque, Direito das Obrigações.  Contratos em especial I (2019), cit., p. 102.

[cxi] Apesar do exposto, admitimos que o assunto merece ser discutido num plano mais substancial, atendendo aos valores e interesses em jogo, incluindo a transparência (valor reforçado com a extinção das ações ao portador), a clareza e simplicidade do sistema e a segurança jurídica; tendo sempre presente que o Direito deve estar ao serviço da vida e, nessa medida, as decisões que o aplicam devem ter uma preocupação com estes valores, a realização da justiça e a segurança das legítimas expectativas dos participantes no tráfico das ações. Cfr. Almeida Costa / Evaristo Mendes, «Transmissão de acções tituladas nominativas» (2011), cit., p. 66.

[cxii] Além de legitimador, é também necessário: cfr. os arts. 55 e 104.2 do CVM. Ressalva-se a eventual existência de cupões (art. 104.3).

[cxiii] Recorda-se que para estas teses isso significa a necessidade do registo para a transmissão. Porém, é possível dizer que o registo em causa é de titularidade, não de mera legitimação, e afirmar o seu caráter declarativo quanto à transmissão (ou tráfico em geral), no sentido de que uma transmissão solo consensu não está excluída (cfr. o § 2.º, n. 22).

[cxiv] No sentido de que apenas o alienante tem legitimidade, cfr. Vera Eiró, «A transmissão de valores mobiliários - As acções em especial», Themis 11 (2005) p. 145-185, 181.

[cxv] É este o sistema vigente: cfr. adiante. A situação mostra-se, naturalmente, diferente quanto à entrega  dos títulos com a declaração de transmissão, quer ela seja necessária para a transmissão (teses neo-realistas) quer não (teses da consensualidade).

[cxvi] A não ser assim, teria provavelmente de se interpretar restritivamente o regime das AE, excluindo a legitimidade do adquirente nas transmissões em apreço.

[cxvii] Também neste aspeto admitimos que o sistema merece ser repensado ou afinado, designadamente à luz de considerações de índole fiscal e de transparência quanto à titularidade da riqueza. Note-se, contudo, que, numa boa parte dos casos, se não mesmo na grande maioria deles, o que existe é uma situação provisória, em que já foi celebrado o contrato de alienação das ações, mas os títulos ficaram de ser entregues ou o registo ficou se ser realizado mais tarde. O problema circunscreve-se, por isso, às partes no negócio ou a uma delas e aos sucessores da outra. Ora, em tais situações, admitir a eficácia real do contrato afigura-se a solução justa e adequada.

Ainda que assim não se entenda, nem sempre os casos submetidos aos nossos tribunais foram bem decididos, mormente quando o alienante não cumpriu as formalidades que, nas teses neo-realistas, são necessárias para a transmissão ocorrer e, entretanto, faleceu. Com efeito, nesses casos, os sucessores adquiriram as ações, mas também a obrigação de as fazer adquirir pelo beneficiário do contrato, cumprindo as formalidades necessárias.