Evaristo Mendes

Resumo: As preferências estatutárias relativas à cessão de quotas continuam a ocupar os nossos tribunais. Revisita-se, por isso, o tema, distinguindo-as das preferências resultantes de pactos de preferência, aludindo às preferências stricto sensu e às preferências impróprias, bem como à sua validade, e focando sobretudo a atenção na sua eficácia real, vista à luz das finalidades típicas que as justificam. Refere-se também a respetiva articulação com o regime legal do consentimento.

Palavras-chaves: cessão de quotas - preferências estatutárias - finalidades - eficácia real - articulação com requisito do consentimento

 

Abstract: The article focuses on some issues related to the pre-emptive rights clauses in the transfer of shares of private companies (or LLC), mainly their erga omnes effect in the light of their typical purpose.

Keywords: transfer of shares - pre-emptive rights - erga omnes effect - pre-emptive rights and company's consent

 

Evaristo Mendes

 

Cessão de quotas.

Preferências estatutárias - Desenvolvimentos recentes

 

[A versão definitiva do presente texto encontra-se publicada na DSR 19 (2018), p. 71-97]

 

Em 2010, analisaram-se algumas das principais questões relativas às preferências estatutárias na cessão de quotas[i]. Entretanto, o Supremo Tribunal de Justiça voltou a ocupar-se do tema, em dois arestos de 2013 e 2017, cuja matéria de facto é em boa medida coincidente, justificando uma análise articulada dos mesmos. Em ambos os casos, estava em causa, sobretudo, a procedência ou não de uma ação de preferência; e em ambos os casos, por motivos distintos, o Supremo, contra o decidido pelo TRL, considerou os respetivos pedidos improcedentes.

As principais questões envolvidas, sobre as quais nos debruçaremos, eram as seguintes: validade das cláusulas estatutárias de preferência; eficácia real das mesmas; respetiva aplicação ao caso concreto, envolvendo um problema de interpretação do pacto social e um problema de interpretação da lei; articulação do regime legal do consentimento (art. 228.º, n.º 2, do CSC[ii]) com uma preferência estatutária; e funcionamento das cláusulas mistas, de consentimento e preferência. Expõe-se em seguida o decidido nos acórdãos (n.º 1). Segue-se um enunciado das questões a apreciar (n.º 2) e o respetivo tratamento (n.ºs 3 a 11). Termina-se com algumas observações conclusivas (n.º 12)[iii].

 

1. Acórdãos do STJ. - A era sócio da SQ X (constituída em 1956), na qual detinha uma quota representativa de 25% do capital, e da SQ Y (constituída em 1978), onde possuía uma quota de 20%. Por morte do respetivo cônjuge (em março de 2001), as quotas, que integravam a comunhão conjugal, passaram a ser detidas por A em comum com os demais herdeiros (B a E). Ambas as sociedades eram sociedades familiares.

Mediante escritura de 19.12.2002, as quotas foram dadas como entrada para a realização parcial do aumento do capital da SA Z, uma SGPS tendo como sócios A e os herdeiros, tendo-lhes sido atribuídos os valores de 411 006 € e 63 862 €, respetivamente, supomos que com base em relatório de avaliação de um ROC, nos termos do artigo 28.º do CSC. As quotas passaram, assim, para a titularidade e administração desta SGPS familiar, administrada por acionistas anteriormente titulares em comum das participações.

Consumou-se, deste modo, uma cessão das quotas a favor de uma entidade juridicamente estranha às SQ X e Y (a Z não sócia das mesmas); embora se trate de uma entidade coletiva, ao tempo dos factos, com substrato pessoal constituído pelos cedentes. A cessão da quota relativa à SQ X foi-lhe comunicada, mediante carta a ela dirigida (com data de 20.12.2002) e entregue à mulher de um dos sócios (F), em 6.01.2003, detentor de uma quota de 15%. A cessão da quota respeitante à SQ Y também terá sido objeto de comunicação a esta, em 6.01.2003. Em ambos os casos, houve uma simples comunicação da cessão, no aparente pressuposto de que esta não carecia do consentimento das sociedades[iv], que, de facto, não foi pedido. Na comunicação, indicou-se o novo titular das quotas e o valor atribuído a estas, que se afigura corresponder ao valor nominal das ações recebidas pelos cedentes.

O pacto social da SQ X atribuía, em caso de cessão, um direito de preferência aos sócios não cedentes, assim configurado: «É livre a cessão de quotas à sociedade ou a outros sócios; Para estranhos a cessão no todo ou em parte fica dependente do direito de preferência dos restantes sócios, ou de qualquer deles, nos termos seguintes: a) Quando qualquer sócio desejar ceder a sua quota - no todo ou em parte - avisará os restantes por carta registada com aviso de receção, na qual indique o nome do pretendente e o preço da cessão; b) Se no prazo de vinte dias, a contar da data da receção da carta, nenhum dos sócios desejar usar da preferência, bastando para tal não responder, fica o cedente livre para efetuar o contrato com o pretendente, nos termos da proposta; c) se qualquer sócio desejar a opção fá-lo-á pelo preço da proposta (...); f) Se mais de um sócio desejar a opção haverá licitação partindo da base da proposta, e a quota será atribuída (...) ao que mais der (...)».

O contrato de sociedade da SQ Y continha uma cláusula mista, de consentimento e preferência, assim redigida: «É livre a cessão de quotas à sociedade ou a outros sócios, mas a cessão a estanhos dependerá sempre do consentimento da sociedade, à qual caberá direito de preferência em primeiro lugar, passando tal direito, em segundo lugar, para os sócios não cedentes».

Tendo ocorrido uma cessão da quota que não observava o disposto nesta cláusula - designadamente no que respeita à preferência, plausivelmente porque cedentes e cessionária entenderam que a cessão realizada não estava por ela abrangida -, a SQ Y deliberou, em 26.02.2003, exercer o direito de preferência nela consignado; e em 4.07.2003 intentou ação de preferência contra os cedentes e a cessionária[v]. Ação semelhante foi proposta pelo sócio F da SQ X, para fazer sua a quota respetiva. Embora tal não se encontre especificado na matéria de facto provada, esta ação de preferência também terá dado entrada em 4.07.2003[vi].

Em março de 2003, reuniu a AG desta sociedade X, na qual a SA Z não foi reconhecida como sócia, o que motivou uma ação de anulação das deliberações tomadas e de condenação da X a reconhecer a eficácia da cessão, cujo desfecho se desconhece.

Ambas as ações de preferência foram consideradas improcedentes pelo Tribunal de Comércio de Lisboa (primeira instância), mas as decisões foram revogadas pelo TRL, que, reconhecendo a existência dos direitos de preferência invocados, ordenou a substituição da cessionária pelos proponentes titulares desses direitos. No entanto, o STJ viria - mediante Acórdãos de 12.09.2013 (Sérgio Poças)[vii], quanto à quota da X, e de 7.02.2017 (Alexandre Reis)[viii], quanto à quota da Y - a revogar os Acórdãos da Relação, julgando as ações improcedentes e absolvendo os réus dos pedidos.

 

1.1. Na ação relativa à quota da SQ X, destinada primacialmente à substituição, no contrato de cessão, da cessionária da quota (Z) pelo titular do direito de preferência (F), fazendo este sua a quota, foi, ainda, deduzido um pedido subsidiário de indemnização, por violação deste direito, no valor dos aludidos 411 006 €. Os réus contestaram, designadamente, a validade da cláusula de preferência, a eficácia real da mesma e a respetiva aplicação ao caso vertente. As questões apreciadas pelo Supremo foram, pois, as seguintes: validade da cláusula de preferência; eficácia real desta; e existência do direito de preferência, no caso concreto, cuja violação foi invocada.

a) No que respeita à validade, o STJ afirma a compatibilidade da cláusula, quer com a LSQ (art. 6.º, § 3.º), quer com os artigos 228.º e 229.º, n.º 5, do CSC; neste caso, porque «o direito de preferência estabelecido no pacto de nenhum modo subordina os efeitos da cessão a requisito diferente do consentimento da sociedade nem de algum modo condiciona aquele consentimento», como consta da sentença da primeira instância e se defende nos pareceres juntos aos autos (de Calvão da Silva e Coutinho de Abreu) (ponto II.II.1, p. 111 s.). Apesar de haver anterior jurisprudência do Supremo em sentido divergente[ix], não se alude a ela[x].

b) No que toca à eficácia real, afirma-se, por um lado, que, no domínio da LSQ, a cláusula de preferência apenas tinha eficácia obrigacional[xi]; por outro lado, que a situação se alterou com o Código Civil de 1966, mas que nos artigos 413.º e 421.º «surge cristalino que não basta convencionar o direito de preferência, é ainda necessário convencionar que tal direito tem eficácia real», ou seja, «tem de haver declaração expressa de atribuir eficácia real», além do registo. Ora, no caso, é pacífico que tal declaração expressa não existe. E nem se retira da pertinente disposição do pacto uma declaração implícita nesse sentido; sendo incorreto afirmar, como afirma o TRL, que não faz sentido uma tal disposição sem a intenção de lhe atribuir eficácia real (ela seria vazia de conteúdo), porque, até ao Código Civil vigente, a preferência tinha mera eficácia obrigacional e uma preferência com eficácia obrigacional tem conteúdo útil[xii]. Por conseguinte, faltando tal eficácia real, não era possível lançar mão da ação de preferência, prevista no artigo 1410.º do CC, para que remete o artigo 421.º do CC (ponto II.II.2, p. 112 ss.).

c) Quanto à própria existência do direito de preferência cuja violação se invocou como fundamento de pedido indemnizatório, assinala-se no Acórdão que a lei o restringe à venda (art. 414.º do CC) (ou à venda e à dação em cumprimento - arts. 1410.º e 1555.º do CC); e isso «porque só nestes casos será possível operar a substituição no negócio sem que a sua substância seja afetada: o dinheiro do preferente vale tanto como o do preterido». Ora, no caso «sub judice», estava em causa uma troca da quota por algo infungível, as ações da SGPS familiar dos cedentes; faltando portanto o direito cuja violação se invocou (ponto II.II.3, p. 114).

Importa realçar este ponto: o Supremo negou a existência do direito em causa, não por entender que o pacto social o circunscrevia à cessão mediante compra e venda (ou dação em pagamento) - problema de interpretação ausente do Aresto[xiii] -, mas por considerar que a lei circunscreve o campo de aplicação dos pactos de preferência, com os quais identifica as cláusulas estatutárias de preferência, à venda (ou à venda e à dação em cumprimento, porventura também à troca quando estejam em causa bens fungíveis)[xiv]. Suscitam-se aqui duas questões. Primeira: a lei tem esse sentido[xv]? Segunda: as cláusulas de preferência reconduzem-se aos pactos de preferência e portanto o seu campo de aplicação é o mesmo (e os aludidos requisitos da eficácia real também são os mesmos)?[xvi]

 

1.2 O problema da eficácia real das preferências estatutárias - no sentido assinalado - carece de ser contextualizado. Designadamente, no caso concreto, colocava-se, ainda, a questão de saber se a cessão realizada a favor da SGPS Z era eficaz em relação à SQ X ou não, embora ela estivesse fora do recurso apreciado pelo Supremo. Com efeito, resulta do indicado pelo TRL que esta sociedade não reconheceu a cessionária (Z) como sócia; o que motivou uma outra ação, de anulação das deliberações tomadas e de condenação da SQ X a reconhecer a eficácia da cessão, cujo desfecho se desconhece.

Aqui, entram em jogo dois preceitos do CSC. Por um lado, o artigo 228.º, n.º 2, do CSC, importando saber se o requisito do consentimento aí previsto devia conjugar-se com a preferência estatutária ou se, em face do pacto social, tal requisito legal devia considerar-se dispensado - problema de interpretação do mesmo pacto[xvii].

Por outro. lado, o artigo 229.º, n.º 5, do CSC, que amputa a cláusula de preferência do possível efeito corporativo consistente em tornar ineficaz perante a sociedade uma cessão realizada sem dar preferência (ou seja, com desrespeito pela cláusula de preferência)[xviii]. Na verdade, sem tal efeito, restam as assinaladas eficácia obrigacional e eficácia real da preferência, não impeditivas da consumação de uma cessão com eficácia em relação à sociedade. Tendo a cessão sido comunicada a esta, a menos que se faça intervir aquele requisito legal do consentimento, a SGPS haverá adquirido, portanto, a qualidade de sócia antes detida pelos cedentes (cfr. o art. 228.º, n.º 3, do CSC[xix]). Daí a importância da aludida eficácia real, que o Supremo considerou não existir, in casu.

 

1.3 Na ação relativa à quota da SQ Y, em face da cláusula mista, de consentimento e preferência existente, deu-se como adquirido que a cessão realizada era ineficaz em relação à sociedade, por falta desse consentimento[xx]; discutindo-se se, neste caso, ainda podia a sociedade - a proponente da ação de preferência - exercer o direito de preferência consignado no pacto social e, sendo esse o caso, se o mesmo tinha eficácia real. Como se assinalou, à semelhança do que sucedera na ação anterior, o TCom de Lisboa considerou a ação improcedente por, no seu entender, a preferência ter mera eficácia obrigacional, não real, e por não existir sequer, in casu, o direito de preferência estatutário invocado, dado tratar-se de uma «troca» da quota por ações infungíveis; enquanto o TRL reconheceu a existência desse direito e considerou ter o mesmo eficácia real, pelo que ordenou a substituição da cessionária Z pela SQ Y, proponente da ação de preferência.

Também aqui o Supremo revogou a decisão do TRL, julgando a ação improcedente e absolvendo os réus dos pedidos. A ideia chave, retirada de Raul Ventura[xxi], é esta: «Coexistindo o regime legal [e estatutário] do consentimento e a cláusula contratual de preferência, o primeiro tem de prevalecer sobre a segunda, dadas as respetivas naturezas; e tem de prevalecer em toda a sua extensão - a regra do consentimento e todo o processo a ela ligado (...). A cláusula de preferência só terá o espaço de aplicação que por aquele sistema [legal] lhe for deixado».

Com efeito, «[s]e a sociedade recusar o consentimento e a recusa se mantiver nos termos do art. 231.º, não fica espaço algum para a cláusula de preferência ser aplicada; a quota ou é amortizada ou é adquirida. Nem haveria qualquer interesse na aplicação da cláusula, pois foi atingido, por outra via, o resultado que os sócios pretendiam obter: a quota não foi adquirida por um estranho à sociedade». «Na hipótese de o consentimento ser concedido ou a cessão se ter tornado livre, a sociedade não pode usar o direito de preferência contratualmente estipulado, porque tinha a possibilidade de, pelo processo legal de consentimento, amortizar ou adquirir a quota e não o fez; ela manifestou claramente o seu desinteresse quanto ao destino da quota»[xxii].

No caso vertente, apenas foi comunicada à SQ Y uma cessão já consumada; carecida do consentimento (que nem foi pedido), pelo que ineficaz em relação à sociedade. Ora, «prevalecendo, em toda a sua extensão, o regime legal fundado na falta de consentimento em relação ao regime eventualmente advindo da cláusula contratual de preferência, (...) a sociedade recorrida também não pode usar ou exercer o direito de preferência contratualmente estipulado, em cuja aplicação, aliás, não tem qualquer interesse, pois foi atingido, por outra via, o resultado que os sócios pretenderam obter com a dita cláusula contratual: erguer uma barreira à entrada na sociedade de sujeitos indesejados pelos sócios»[xxiii].

Como se observa, o Supremo segue aqui uma via distinta da seguida no Acórdão de 2013. Não entra na discussão relativa à existência ou não do direito de preferência - sendo de notar que, diferentemente desse outro caso, a cláusula está redigida em termos amplos (na cessão a estranhos, caberia direito de preferência, à sociedade, em primeiro lugar, e aos sócios não cedentes, em segundo lugar) e não regula o exercício do direito - nem acerca da sua eficácia real ou não. Afirma, em vez disso, que, faltando o requisito do consentimento, a cessão é ineficaz em relação à sociedade, pelo que o objetivo pretendido com a preferência - a vedação da entrada nesta a estanhos (no caso, a Z) - já estaria assegurado. O resto da argumentação não tem verdadeira aplicação ao caso, porque, nem houve uma recusa do consentimento, com aplicação do disposto no artigo 231.º do CSC, nem a cessão foi consentida, nem tão pouco se tornou livre.

Abstraindo disto, a decisão suscita dúvidas porque, pelo raciocínio expendido, a preferência não teria real campo de aplicação, sendo inútil. Importa, por isso, ver melhor que sentido e utilidade pode ter uma cláusula mista de preferência, bem como, fazendo a ponte com o caso anterior, uma cláusula de preferência conjugada com o regime legal do consentimento constante dos artigos 228.º, n.º 2, 230.º e 231.º

 

2. Questões. - Em face do exposto, as questões a tratar, ainda que de forma sucinta, são as seguintes:

1.ª) Qual a importância prática e a função sócio-económica típica das cláusulas estatutárias de preferência, nas SQ?

2.ª) São válidas as cláusulas estatutárias de preferência?

3.ª) Qual a natureza jurídica das cláusulas estatutárias de preferência? Reconduzem-se elas aos pactos de preferência dos artigos 413.º a 421.º do CC?

4.ª) Qual é o respetivo âmbito de aplicação? Ou seja, a que espécies de cessões são aplicáveis? Pode haver legalmente preferências estatutárias relativas a cessões que não sejam compras e vendas, dações em pagamento ou troca de quotas por «coisa» genérica ou fungível?

5.ª) Existem regras de interpretação para apurar o sentido e âmbito de aplicação das cláusulas?

6.ª) As cláusulas de preferência podem ter eficácia real, no sentido de permitirem, em caso de violação, uma ação de preferência, nos termos do artigo 1410.º do CC, como se prevê para os pactos de preferência no artigo 421.º, n.º 2, deste Código? Todas elas?

7.ª) Podendo ter eficácia real, na medida em que a possam ter, torna-se necessário convencionar essa eficácia, ou ela é um efeito natural das cláusulas, existindo se não for afastada pelos interessados?

8.ª) A subordinação legal - e porventura estatutária - da cessão de quotas ao consentimento da sociedade ainda deixa um campo de aplicação útil para as cláusulas de preferência?

9.ª) Se o pacto social apenas tiver uma cláusula de preferência, considera-se afastado o regime legal do consentimento ou este deve ser articulado com ela?

 

3. Importância e função das preferências. – As sociedades por quotas - apesar de serem organizações coletivas de membros variáveis -, enquanto estruturas de cooperação ativa na realização do fim comum, apresentam, tipicamente, um número limitado de sócios (uma base social restrita), assentam na confiança e na escolha recíprocas destes e, muitas vezes, também num equilíbrio de poder entre eles. A ideia de uma sociedade com quotas livremente transmissíveis, presente no artigo 6.º da LSQ de 1901, por inspiração do seu modelo alemão, nunca traduziu a configuração concreta da esmagadora maioria das sociedades deste tipo.

3.1 A análise a que procedemos de vários milhares de pactos sociais até à entrada em vigor do CSC em 1986 confirma-o; e o próprio legislador deste Código o atesta ao estabelecer como regra a vinculação da cessão, nos termos do artigo 228.º, n.º 2. Assinala-se, em particular, que, nos primeiros 100 pactos sociais, correspondentes aos primeiros anos de vigência da Lei e via de regra bastante bem elaborados e completos, em cerca de 90% dos casos a cessão de quotas era objeto de três modalidades de restrições: em cerca de um terço, esta ficava dependente do consentimento da sociedade (cláusulas de consentimento ou agrément), noutro terço, estava sujeita a preferência (cláusulas de preferência) e, no terço restante, encontrava-se subordinada ao consentimento e a preferência (cláusulas mistas de consentimento e preferência). As preferências apareciam, portanto, em mais de 60% dos contratos de sociedade.

Sobretudo a partir da implantação da República, o conteúdo e a qualidade dos estatutos foi diminuindo. Mas houve sempre um número elevado de cláusulas restritivas da transmissibilidade das quotas, incluindo cláusulas de preferência. A própria jurisprudência de algum modo aponta nesse sentido.

Em boa medida, tal prática manteve-se, inclusive, já na vigência do CSC, até à instituição dos processos simplificados de constituição de sociedades por quotas, em 2005/2006. Realçando-se que, num grande número de pactos que regulavam o assunto, a liberdade de cessão ficava limitada às cessões entre sócios.

Com estes processos simplificados, importa realçar a existência de dois modelos «oficiais» de pacto social, postos à disposição dos interessados[xxiv]. Num deles, consta a seguinte cláusula: «1. A cessão de quotas a estanhos depende do prévio consentimento da sociedade. 2. Na cessão onerosa de quotas a estanhos terão direito de preferência a sociedade e os sócios, sucessivamente». Confirma-se, assim, a importância prática das cláusulas de preferência.

3.2 Tais preferências cumprem, em geral, diversas finalidades, que, em parte, variam consoante se trate de preferência da sociedade ou dos sócios. Considerando o atual regime do artigo 228.º, n.º 2, que sujeita a eficácia da cessão em relação à sociedade ao consentimento desta, seja com o âmbito de cessões livres aí consignado seja com um âmbito mais restrito das cessões entre sócios definido pelo pacto social (cfr. o art. 229.º, n.º 3), a preferência da sociedade pode, ainda, funcionar como (i) filtro das entradas de estranhos para o respetivo grémio social, em complemento ou em substituição do mecanismo do consentimento, mas visa sobretudo (ii) reforçar o caráter fechado e personalista desta, eliminando possíveis influências externas indesejadas, e (iii) manter estáveis as relações de participação e poder dentro da mesma[xxv].

Na verdade, transmitir uma quota com eficácia face à sociedade significa passá-la para o adquirente com a inerente qualidade de sócio; e, correspondentemente, transmiti-la sem essa eficácia significa, no caso da cessão – ou seja, a transmissão da quota por ato voluntário entre vivos a título singular -, a passagem da titularidade da quota para o cessionário, sem tal qualidade de sócio, que se mantém no cedente. Ora, isso envolve o risco de o cedente que se mantém sócio representar na sociedade o interesse do cessionário e, inclusive, a sua conversão numa espécie de sócio fiduciário; problema ainda agravado pela jurisprudência existente que não permite ao cessionário a quem tenha sido recusado o consentimento desvincular-se do contrato de cessão, salvo se tal se encontrar clausulado[xxvi].

Para minorar tal problema, a sociedade pode lançar mão, sobretudo, de dois mecanismos: a amortização da quota cedida sem o seu consentimento (cfr. o art. 229.º, n.º 6); e a preferência, se a esta for reconhecida eficácia real. A opção por um ou outro destes mecanismos – ou pela combinação dos mesmos - deve entender-se compreendida na autonomia corporativa[xxvii], sobretudo num tipo social flexível ou maleável como o presente; como o deve ser, de resto, a possibilidade de escolher a cláusula de preferência como o principal ou exclusivo mecanismo de filtragem das entradas na sociedade.

A preferência atribuída aos sócios (não cedentes) cumpre também esta função primordial e pode cumprir, ainda, aquela função de igualação dos mesmos quando se estender à cessão entre eles. Todavia, cumpre, igualmente, a função de assegurar a cada sócio que tenha meios e esteja disposto a isso o poder de obstar a que entrem para a sociedade terceiros com os quais não queira associar-se – em sintonia, aliás, com o direito legal de preferência constante dos artigos 231.º, n.º 4, e 239.º, n.º 5 – resultado que o requisito do consentimento não lhe assegura, porque este pode ser prestado por deliberação maioritária simples da coletividade social.

 

4. Validade das cláusulas. – Como se observou noutro local, a tese da invalidade das cláusulas de preferência, afirmada nalguns arestos dos tribunais superiores com base no artigo 229.º, n.º 5, do CSC, é surpreendente e desprovida de fundamento[xxviii]. Na verdade, no domínio da LSQ, as cláusulas de preferência eram permitidas pelo artigo 6.º, § 3.º, e largamente utilizadas, podendo apresentar três ordens de efeitos: i) um efeito obrigacional; ii) um efeito real - ou «real-potestativo» - traduzido na faculdade de o titular da preferência poder, judicialmente, fazer sua a quota cedida sem observância da preferência (este menos seguro antes do CC vigente – cfr. adiante); e iii) um efeito corporativo - ou «real-corporativo» - que permitia à sociedade não reconhecer como sócio o cessionário da quota alienada sem dar preferência.

Tendo sido opção do legislador do CSC sujeitar a eficácia social ou corporativa das cessões em geral ao consentimento da sociedade (art. 228.º, n.º 2/1ª parte), dada a existência dessa prática societária anterior, seria de esperar que - num regime desenvolvido como o dos artigos 228.º, n.º 2, 229.º, 230.º e 231.º, de inspiração gaulesa – houvesse alguma norma sobre a articulação desse requisito com as preferências estatutárias, resolvendo também desse modo alguns problemas de funcionamento das cláusulas mistas de consentimento e preferência. Isso não sucede e ainda se incluiu no artigo 229.º aquele n.º 5, amputando tais preferências do seu efeito real porventura mais natural – o assinalado efeito corporativo – numa clara menor consideração pela autonomia estatutária das sociedades por quotas, em nome de uma discutível maior simplicidade e clareza do regime.

Todavia, as cláusulas continuam a poder ter os dois outros efeitos. Pelo que apenas se pode falar de uma restrição legal à validade das mesmas; não numa invalidade pura e simples ou total[xxix].

Como se observará, existem duas espécies fundamentais de cláusulas («infra», n.º 6) e uma delas tem coenvolvido um possível problema de conformidade com a coordenada ou diretriz fundamental do regime legal do consentimento. Trata-se, no entanto, de problema distinto (cfr. «infra», n.º 6).

 

5. Natureza jurídica das cláusulas. – As cláusulas estatutárias de preferência – seja qual for o âmbito da sua eficácia (apenas obrigacional ou também real) - não se confundem com os pactos de preferência, regulados nos artigos 413.º a 421.º do CC[xxx]. Na verdade, uma preferência estatutária faz parte da condição jurídica ou modo de ser da própria quota, enquanto um pacto de preferência, mesmo que inserido num pacto parassocial, cria em relação a ela uma vinculação pessoal, que lhe é exterior, mesmo quando a esta vinculação seja atribuída eficácia real, como o CRCom expressamente reconhece ser possível [art. 3.1d)].

Noutros termos, havendo uma preferência estatutária, a quota é uma participação social de transmissibilidade restrita, como o é em virtude da preferência legal do artigo 239.º, n.º 5, ou por força do artigo 228.º, n.º 2; tem essa configuração ou conformação ontológica ou genética, resultante do ordenamento societário, legal e estatutário. Diferentemente, quer essa transmissibilidade seja livre ou restrita, o respetivo titular pode assumir, quanto a ela, vinculações pessoais, com ou sem adicional eficácia real, através de um contrato a latere celebrado com outrem, incluindo-se aqui os pactos de preferência.

Sendo a SQ uma organização de membros variáveis, fundando-se a qualidade de sócio na quota, quem quer que seja sócio está, em geral, vinculado pelas cláusulas estatutárias de preferência e é beneficiário das mesmas, já que elas integram aquele ordenamento societário aplicável a cada sociedade em concreto. O eventual caráter real da preferência tem adicionalmente a ver com a função da mesma e o tráfico das quotas, sendo visto mais à frente (nºs 8 e 9).

 

6. Âmbito de aplicação. Espécies de preferências estatutárias. – Quanto aos pactos de preferência, é defensável dizer-se que o seu campo de aplicação se circunscreve aos negócios compatíveis com o princípio da paridade de condições ou regra do tanteio (designadamente, compra e venda, dação em cumprimento e troca por direito ou coisa fungível - cfr. os arts. 414.º, 1410.º, n.º 1, e 1555.º do CC)[xxxi]. Diferentemente se passam as coisas com as preferências societárias (estatutárias). Estas podem funcionar sem aplicação dessa regra, mesmo quando o negócio seja uma compra e venda.

Na verdade, existem na prática societária – com um assinalável reconhecimento doutrinal e jurisprudencial, aquém e além-fronteiras – dois tipos de preferências estatutárias: as preferências stricto sensu, ou preferências propriamente ditas, e as preferências impróprias, também designadas preempções para se distinguirem das anteriores. Estas últimas são exercitáveis por um valor prefixado nos estatutos ou por valor fixado em conformidade com um critério legal ou estatutário[xxxii].

Dado o regime a que se encontra sujeita a eventual recusa do consentimento da sociedade às cessões de quotas (art. 231.º) – justificado pela circunstância de, numa SQ, a cessão de quotas ser a via normal de um sócio sair da sociedade, liquidando o investimento que nela tem -, estas cláusulas de preempção suscitam um problema de desconformidade com o espírito do sistema, quando o valor de exercício da preferência seja significativamente inferior ao valor «real» da quota. Remete-se para o que já se escreveu acerca do assunto[xxxiii]

 

7. Interpretação das cláusulas. – Sendo o leque das preferências estatutárias abrangente e sendo muitas vezes omitida qualquer regulamentação do exercício das mesmas, colocam-se frequentemente na prática diversas questões interpretativas: como se conjugam elas com o requisito legal do consentimento, mormente tratando-se de pactos anteriores ao CSC, qual o seu âmbito de aplicação, etc. Tomemos o exemplo da cláusula modelo assinalada, segundo a qual, «Na cessão onerosa de quotas a estanhos terão direito de preferência a sociedade e os sócios, sucessivamente» (n.º 2). Suscitam-se, em especial, as seguintes questões: o termo «estranhos» significa estanhos à sociedade, isto é não sócios? A expressão «cessão onerosa» compreende qualquer negócio de alienação a título oneroso? A preferência tem caráter real ou apenas obrigacional? Como se exerce a preferência e como se articula a mesma com o requisito do consentimento estabelecido no n.º 1 da mesma cláusula?

Encontra-se com frequência, na doutrina e na jurisprudência, a afirmação de que questões como estas se resolvem tendo em conta os termos do pacto social e a intenção dos sócios que pactuaram a cláusula em apreço[xxxiv]. Porém, sendo a SQ uma organização de membros variáveis e respeitando as cláusulas em apreço ao controlo da composição da coletividade social e ao tráfico das quotas, a intenção dos sócios fundadores ou existentes no momento em que a cláusula foi introduzida no pacto constitui um dado contingente e acessório, com pouco ou quase nenhum significado para a interpretação.

Na verdade, para esta o que conta, além do elemento literal, são sobretudo o contexto e as finalidades da mesma; e a perspetiva de análise deve ser a de um sócio e adquirente «normal» de quotas, atual ou potencialmente vinculado e beneficiário da preferência (sócio) ou suscetível de ser afetado por ela (adquirente) [xxxv]. Além disso, dada a típica falta de rigor com que os pactos sociais das sociedades por quotas portuguesas são redigidos, alguns dos seus termos literais apresentam um significado limitado[xxxvi].

 

8. Possível eficácia real das cláusulas. - As cláusulas de preferência podem, legalmente, ter eficácia real, no sentido de permitirem, em caso de violação, uma ação de preferência, nos termos do artigo 1410.º do CC, como se prevê para os pactos de preferência no artigo 421.º, n.º 2, deste Código. Com efeito, se a lei admite que tenham tal eficácia os meros pactos de preferência, criadores de simples vínculos exteriores à quota, mediante contrato do titular desta com terceiro (art. 421.º do CC e art. 3.º, n.º 1, al. d), do CRCom), por maioria de razão haverão de ter essa eficácia as preferências estatutárias, que constituem vinculações «ontológicas», inerentes à própria quota e legalmente publicitadas enquanto parte integrante do contrato de sociedade; já que elas são instituídas por quem tem o poder conformador das participações e existe um legítimo interesse da sociedade e dos sócios na eficácia em apreço (cfr. «supra», n.º 3).

Outros argumentos se poderiam aduzir neste sentido. Como, porém, o assunto se afigura pelo menos relativamente pacífico, na jurisprudência e na doutrina (ainda que a fundamentação varie), não vale a pena desenvolver este tópico[xxxvii].

O que acaba de dizer-se vale, no entanto, apenas para as preferências stricto sensu, não para as preferências impróprias. Na verdade, quanto a estas, mostra-se discutível a eficácia em apreço; carecendo o assunto de maior reflexão.

 

9. Natural eficácia real das preferências estatutárias. – Aceitando-se que as preferências estatutárias podem ter eficácia real, coloca-se a ulterior questão de saber se esta eficácia pode considerar-se um efeito natural das mesmas ou se tem que ser autonomamente convencionada, como entendeu o STJ no Acórdão de 12.09.2013. Os sócios (ou os fundadores da sociedade) são livres de optar por preferências com mera eficácia obrigacional – sem mais ou procurando assegurar a sua eficácia prática através de cláusulas de amortização – ou por preferências com adicional eficácia real. A questão consiste em saber se, na falta de indicação sobre o assunto (que ocorre na generalidade dos pactos consultados e justifica o significativo contencioso existente na matéria), é, ainda assim, de reconhecer à preferência esta eficácia alargada.

9.1 O tema mostra-se muito controvertido, tanto na doutrina, como na jurisprudência[xxxviii]. Naquele Acórdão de 2013, invocando o artigo 521.º do CC, relativo ao pacto de preferência (cfr. também o art. 413.º, para que este remete), o Supremo entendeu, inclusive, que seria necessário convencionar expressamente a eficácia em causa para a preferência ter caráter real, exigência que, no entanto, não se encontra na lei. Como se assinalou, para o STJ – que reconduz as cláusulas estatutárias a pactos de preferência[xxxix] -, isso seria assim porque, até ao Código Civil vigente, a preferência tinha mera eficácia obrigacional e uma preferência com eficácia obrigacional tem conteúdo útil; embora a razão última desta posição se afigure esta: as preferências estatutárias são identificadas com os pactos de preferência, logo aplica-se o artigo 421.º do CC, que exige tal requisito (o mesmo resultado do art. 413.º, para que este remete).

É possível, no entanto, separar as águas, distinguindo as preferências estatutárias das meras preferências convencionais, resultantes de pactos de preferência, e, ainda assim, defender a mesma solução[xl], argumentando, por um lado, que, num tipo social flexível como a SQ, as partes devem ser livres de optar pela atribuição ou não à cláusula de eficácia real[xli]; e que, embora com mera eficácia obrigacional a cláusula tenha menor capacidade para influenciar comportamentos, a sua violação pode gerar responsabilidade por perdas e danos, permitindo até a sua oponibilidade a terceiros, em certos casos, responsabilizar mais facilmente o terceiro que colabora com o obrigado a dar preferência na violação da obrigação[xlii]. Por outro lado, observando que, no domínio do CC de 1867, a situação era controvertida e que, portanto, o legislador, se quisesse optar pela eficácia real sem convenção nesse sentido, tê-lo-ia dito de forma clara[xliii].

9.2 No nosso entender, não existem razões bastantes para negar às preferências estatutárias eficácia real, na ausência de estipulação desta. Com efeito: i) o argumento do artigo 421.º do CC não procede, porque não estamos perante meros pactos de preferência; ii) a mera eficácia obrigacional, com a responsabilidade civil associada em caso de violação, é insuficiente para a preferência cumprir as assinaladas finalidades ou funções de eliminação de influências indesejáveis na sociedade, mormente havendo uma cessão de quotas não consentida que perdura apesar da falta do consentimento da sociedade (seja porque este foi eficazmente recusado, seja porque nem sequer foi pedido), e de assegurar aos sócios a escolha recíproca dos seus consócios; iii) a eficácia real acresce à eficácia obrigacional, permitindo ao titular do direito optar, em caso de violação, por uma ou até, em parte, por ambas as vias; e iv) o legislador societário não disse nada sobre o assunto porque, simplesmente, ignorou as cláusulas de preferência. Além disso, no artigo 239.º, n.º 5, também não se afirma que a preferência tem eficácia real e ninguém duvidará de que a tem[xliv]. Em qualquer dos casos (preferência legal ou estatutária), atendendo sobretudo à finalidade da preferência, à função típica que é chamada a cumprir, com toda a probabilidade o legislador, se regulasse o assunto, teria consagrado a eficácia real em apreço.

O problema assume grande importância prática, como de resto o revela o contencioso existente, porque na grande maioria dos casos os pactos sociais não regulam o assunto. Se a prática estatutária fosse de qualidade, revelando soluções bem pensadas e uma regulação bastante completa de diversas situações problemáticas, como esta, a solução poderia ser outra. Mas não é o caso, pelo que se afigura mais curial admitir que as partes não regularam o assunto porque admitiram que a preferência teria a eficácia necessária para cumprir a sua função típica – sendo esta plausivelmente a opinião de um sócio e de um adquirente normais de quotas - ou porque não tiveram consciência do problema, havendo portanto uma lacuna regulatória. Pelo menos na falta de norma supletiva na matéria (embora, como se observou, se o legislador regulasse o assunto, provavelmente consagrasse a eficácia real), esta deverá ser integrada aplicando mutatis mutandis o artigo 239.º do CC.

Em qualquer caso, seja por via interpretativa, considerando sobretudo o fim típico da preferência, seja por via integrativa ou interpretação complementadora, tendo em conta a vontade hipotética «normal» de quem lança mão de uma cláusula deste tipo e de quem se confronta com ela e a boa fé, a solução parece-nos ser a de que a eficácia real pertence ao âmbito natural das cláusulas em apreço; sendo também aquela que o legislador plausivelmente consagraria se regulasse o assunto.

Em reforço desta conclusão, importa recordar que o artigo 229.º, n.º 5, amputa as cláusulas de preferência do seu efeito «real» porventura mais natural, consistente em considerar ineficazes em relação à sociedade (e aos sócios titulares de direito de preferência) as cessões realizadas com desrespeito pelo direito de preferência. Sendo assim, resta apenas o efeito real assinalado, que se traduz na possibilidade de fazer valer o direito de preferência mediante a ação de preferência.

Vejamos um exemplo. A, titular de uma quota na SQ X, celebra com B (outro sócio ou terceiro) um contrato pelo qual se obriga – gratuitamente ou mediante contrapartida - a dar-lhe preferência, no caso de vir a vender essa quota. As partes são livres de atribuir ou não eficácia real a este pacto de preferência. Com ela, a posição de B sairá reforçada, mas A pode não estar disposto a limitar tão fortemente a sua liberdade de dispor da quota, preferindo, por isso, apenas assumir a obrigação, sem a adicional eficácia real (potestativa), mesmo recebendo por hipótese uma menor contrapartida por isso.

A situação mostra-se distinta no caso de uma preferência societária. Admita-se que A, B e C constituem uma SQ, estritamente baseada na confiança recíproca dos sócios e no correspondente pressuposto de que cada um poderá «opor-se» à entrada de terceiros não desejados na sociedade (princípio da escolha recíproca dos consócios), assegurando no interesse de todos e do próprio enquanto sócio a homogeneidade da coletividade social, considerada essencial para o funcionamento harmonioso da sociedade. O direito de oposição pretendido não é, porém, um puro direito de veto [que, aliás, seria problemático em face do art. 229.º, n.º 5, al. a)], mas um simples e mais flexível direito de preferência: para além do requisito legal do consentimento do artigo 228,º, n.º 2, porventura estendido a quaisquer estranhos à sociedade (cfr. o art. 229.º, n.º 3), a cessão de quotas mediante negócio compatível com a regra do tanteio ou paridade de condições (mormente, compra e venda e dação em cumprimento) fica, ainda, sujeita à preferência dos sócios; ou, quanto a este tipo de cessões, dispensa-se o consentimento e dispõe-se que elas ficarão sujeita a tal preferência.

Como no caso anterior, do pacto de preferência, A, B e C são livres de inserir no pacto social uma preferência meramente obrigacional ou uma preferência real. Podendo redigir a cláusula de modo a que a solução pretendida fique clara. Mas podem também limitar-se a consagrar a preferência sem esclarecerem o assunto, como sucede na grande maioria dos casos (veja-se também a cláusula modelo da empresa na hora) e no caso vertente. Daí a questão: faltando este esclarecimento, deve entender-se que a preferência tem mera eficácia obrigacional ou possui, ainda, eficácia real? A resposta afigura-se clara: para cumprir os objetivos típicos pretendidos de filtro das entradas de terceiros, de eliminação de influências externas indesejáveis e de escolha recíproca dos consócios, ela terá que possuir eficácia real; caso contrário não poderá fazer-se valer, pelo menos num número considerável de casos, contra um potencial adquirente «irregular» da quota.

Sendo assim, também é de crer: i) que a intenção de atribuir eficácia real resulta implícita da simples estipulação da preferência; ii) que esse é o sentido que lhe dará um sócio normal ou um normal (prudente e razoável) adquirente da quota; iii) ou que essa seria, em princípio, a solução que A, B e C – ou um grupo de sócios normais na sua posição, agindo de boa fé - consagrariam se tivessem visto o problema. Podendo acrescentar-se que essa também seria provavelmente a solução legal se o legislador tivesse regulado o assunto.

9.3 Admitindo preferência impróprias com eficácia real, também se justifica esta solução? Ou seja: se elas forem de considerar compatíveis com a lei (cfr. «supra», n.º 8), é de lhes reconhecer, adicionalmente, tal eficácia como propriedade natural, pertencente ao âmbito natural da respetiva cláusula? Tal como se referiu a respeito da compatibilidade legal, também quanto a esta questão o assunto requer maior reflexão.

 

10. Regime legal do consentimento e preferência estatutária. – Recorda-se, agora, a 8.ª questão acima formulada: a subordinação legal - e porventura estatutária - da cessão de quotas ao consentimento da sociedade (art. 228.º, n.º 2) ainda deixa um campo de aplicação útil para as cláusulas de preferência? A resposta é afirmativa, como de resto o revelam as frequentes cláusulas mistas, de consentimento e preferência, anteriores e posteriores ao CSC. Vejamos algumas situações[xlv].

10.1 Antes de tudo, importa ter presente como funciona o requisito do consentimento. Resulta do artigo 228.º, n.º 2, que a sua verificação é, em geral, condição de eficácia da cessão em relação à sociedade. Quer dizer, realizando-se uma cessão sem ele, a sociedade não reconhece (ou pode não reconhecer) o cessionário como sócio, mantendo o cedente a qualidade de sócio correspondente à quota cedida. Verifica-se, portanto, uma dissociação entre a titularidade da quota e a qualidade de sócio.

Significa isto que o legislador societário, consciente da importância da cessão de quotas para os sócios, não impede o tráfico destas; apenas estabelece regras de aquisição e perda da qualidade de sócio ou membro da coletividade social – conferindo à sociedade uma proteção razoável ou fundamental, não uma proteção máxima. Noutros termos, embora regule a forma da cessão (art. 228.º, n.º 1) e, desde a Reforma de 2006, contenha também normas relativas ao registo (arts. 242-A e ss), considera a cessão de quotas em si como um problema de direito patrimonial comum (como, de resto, sucede com a transmissão por morte e as transmissões universais entre vivos), e ocupa-se da definição dos termos em que a quota circula com a «inerente» qualidade de sócio.

10.2 A dissociação acabada de assinalar - sobretudo quando perde o caráter provisório que em geral possui, mantendo-se o cedente vinculado pelo contrato de cessão a agir como «representante» do interesse do cessionário ou, inclusive, como mero sócio fiduciário – não é, via de regra, para a sociedade, um fenómeno salutar ou desejável. Pode ser para ela relativamente indiferente e, portanto, não fazer nada para o evitar; mas pode a mesma pretender evitá-lo ou minorá-lo.

A preferência estatutária serve este objetivo. Assim, se o titular de uma quota a aliena a terceiro sem o consentimento da sociedade - não solicitando este ou solicitando-o mas mantendo a cessão apesar de uma eventual recusa eficaz do mesmo (porque o cedente era sócio há menos de três anos ou recusou a alternativa proposta pela sociedade nos termos do art. 231.º, n.º 1) -, vindo a cessão ao seu conhecimento, a sociedade ou os sócios não cedentes, sendo titulares da preferência, poderão fazer sua a quota[xlvi], se a preferência tiver eficácia real, e/ou pedir indemnização pelos danos sofridos, se os houver.

10.3 Embora com menos importância prática, admita-se, agora, que o titular da quota realiza uma cessão, solicitando o consentimento da sociedade, sem dar preferência, e que a sociedade presta o consentimento. Neste caso, pode entender-se que a sociedade abdica do exercício da preferência que lhe esteja atribuída. Porém, se a deliberação de prestação do consentimento não tiver sido aprovada por todos os sócios não cedentes, poderão os que não votaram a favor exercer a preferência que lhes caiba (e, neste caso, não é de excluir que, perante este exercício, os demais os secundem).

10.4 Consideremos, ainda, a situação, mais comum, de um projeto de cessão para o qual o titular da quota, há mais de três anos na sociedade, solicita a esta o consentimento, havendo no pacto social uma cláusula de preferência que não regula o exercício do direito. Abstraindo da preferência, para recusar eficazmente o consentimento – evitando que a cessão se torne livre -, a sociedade terá que fazer acompanhar a recusa de uma proposta de amortização da quota ou de aquisição da mesma, por ela própria, outro sócio ou terceiro (art. 231.º, nº 1).

Se a proposta for de aquisição da quota por sócio ou terceiro, os demais sócios têm um direito legal de preferência (art. 231.º, n.º 4), não precisando de exercer o respetivo direito estatutário, se este for considerado aplicável. Se a sociedade optar por amortizar a quota, expandindo-se os valores nominais das restantes (art. 237.º, n.ºs 1 e 2), o direito de preferência estatutário fica prejudicado. Se a amortização for com a faculdade de vir a criar uma ou mais quotas substitutivas, nos termos do artigo 237.º, n.º 3, quando da atribuição destas colocar-se-á a questão de saber se o direito de preferência do artigo 231.º, n.º 4, é de aplicar analogicamente. Sendo a resposta negativa, não é de excluir, sem mais, a aplicação da preferência estatutária dos sócios; caso contrário, haveria aqui um expediente para a contornar. O mesmo vale para a hipótese de a sociedade optar pela aquisição da quota ela própria (caso em que pode discutir-se quer a aplicação da preferência legal quer a estatutária) e subsequente realienação da mesma.

10.5 Por fim[xlvii], pode o pacto social regular o exercício do direito de preferência, conjugando-o ou não com o requisito do consentimento. Admitamos, por exemplo, que nele se dispõe que, pretendendo um sócio ceder a sua quota, deverá solicitar previamente, por escrito, o consentimento da sociedade e fazer acompanhar o pedido de comunicação para preferência – ou, mais precisamente, de proposta de alienação preferencial da quota aos demais sócios –, incumbindo à sociedade reencaminhar a comunicação/proposta para estes, no prazo de 5 dias a contar da receção da comunicação, tendo os titulares da preferência 20 dias para a exercerem.

Suponham-se, então, três hipóteses. Primeira. O titular da quota x apresenta à sociedade um projeto de cessão a um terceiro, solicitando o consentimento e fazendo acompanhar o pedido de comunicação para o exercício da preferência. A SQ reencaminha esta comunicação para os sócios não cedentes. Estes exercem a preferência pelo preço da cessão projetada. Neste caso, o procedimento relativo ao consentimento extingue-se. Segunda hipótese: os sócios não exercem a preferência. Neste caso, o procedimento relativo ao consentimento segue os seus termos normais.

Terceira hipótese: o titular da quota limita-se a solicitar o consentimento, ignorando a preferência. Coloca-se então o problema de saber se a sociedade pode deliberar uma recusa do consentimento invocando o desrespeito da preferência, sem ter que apresentar a proposta de amortização ou aquisição a que se refere o artigo 231.º, n.º 1. [Isto, interpretando, por um lado, o pacto social no sentido de que o consentimento está condicionado ao respeito pela preferência[xlviii], devendo ser recusado se tal não acontecer, e de que a sociedade só tem que proporcionar ao cedente a alternativa prevista naquele preceito quando a preferência tenha sido respeitada (e não exercida); e interpretando, por outro lado, a lei no sentido de que tal é possível[xlix]]. Sendo a resposta afirmativa, restará ao sócio reiniciar o processo, respeitando a preferência.

 

11. Pacto apenas com cláusula de preferência. - A última questão enunciada é a seguinte: se o pacto social, a respeito da cessão de quotas, apenas tiver uma cláusula de preferência, considera-se afastado o regime legal do consentimento ou este deve ser articulado com ela? Trata-se de um problema de interpretação do pacto social.

Vejamos duas situações típicas. A primeira respeita a um pacto social anterior ao CSC. Como se assinalou, no domínio da LSQ, a cláusula de preferência, quando aparecia isolada nos pactos sociais era o único filtro à entrada de terceiros na sociedade no contexto da cessão; e, pelo menos após o CC de 1966, podia ter três tipos de efeitos – obrigacional, real-potestativo (atribuindo aos titulares o direito de fazerem sua a quota, em caso de desrespeito do pacto, mediante ação de preferência) e real-corporativo (reconhecendo à sociedade o poder de considerar a cessão desrespeitadora da preferência ineficaz em relação a si). Este último apenas surgia explícito numa minoria de pactos sociais que regulavam a matéria; mas podia considerar-se como um efeito implícito ou natural da mesma.

O CSC, através do artigo 229.º, n.º 5, amputou-lhe este terceiro efeito, porque o regime regra, agora, é o da necessidade de consentimento (art. 228.º, n.º 2) e se quis, alegadamente, simplificar o instituto da cessão. Daí a redobrada importância de reconhecer às preferências eficácia não apenas obrigacional mas também real (real-potestativa). Mas também, via de regra, a necessidade de a conjugar com o regime legal do consentimento, porque a sobrante eficácia real não impede que o adquirente - enquanto não lhe é retirada a quota, na ação de preferência (que pode durar anos) – se torne sócio, dando cumprimento ao disposto nos artigos 228.º, n.º 3, e 242.º-A[l]. Só assim se mantém uma situação materialmente equiparável à que existia anteriormente.

Se o pacto social (ou a cláusula) é posterior ao CSC, a conclusão é a mesma, por razões em boa medida análogas. Ou seja, legalmente, a cessão está sujeita ao consentimento; devendo a preferência articular-se com o respetivo regime. Só não será assim se se demonstrar que, no caso concreto, o sentido do pacto é o de afastar o regime legal do consentimento, substituindo-o por uma simples preferência.

11.1 Uma breve nota, ainda, sobre o caso decidido pelo STJ em 9.12.1999 (Pinto Monteiro)[li]. A cláusula, relativa a um pacto social de 1976, anterior portanto ao CSC, dispunha: «São livres entre sócios as cessões de quotas no todo ou em parte. A estranhos só depois de ser dada preferência primeiro aos sócios não cedentes e depois à sociedade». Um sócio cedeu a quota a uma filha. O Supremo entendeu que a cláusula era nula – em face do artigo 229.º, n.º 5 – e, portanto, devia ser substituída pelo regime legal do consentimento (art. 228.º, n.º 2) (art. 530.º). Sendo assim, a cessão caía no âmbito das cessões livres do artigo 228.º, n.º 2, 2ª parte, sendo plenamente eficaz.

Como se observa, o sentido inequívoco do pacto é o de só considerar livres as cessões entre sócios. Em relação às cessões a estanhos à sociedade, estabeleceu-se um direito de preferência, originariamente com o aludido triplo efeito – obrigacional, real-potestativo e real-corporativo; ou podendo ter tal eficácia alargada. Além disso, pelo menos literalmente, todas as cessões estão englobadas, pelo que a cláusula contém uma preferência stricto sensu, para os negócios tanteáveis (máxime, compra e venda e dação em cumprimento), e de preempção ou preferência imprópria, para os demais, considerando-se neste caso a preferência exercitável pelo respetivo valor real[lii].

Com o CSC, a preferência em causa ficou reduzida ao efeito obrigacional e ao efeito real-potestativo, mas este último é problemático em relação à preferência imprópria (cfr. «supra», n.º 6). Para respeitar o espírito do pacto social, poderia, então, considerar-se que a cláusula, ao ser amputada do efeito real-corporativo, passou a ser – por interpretação ou conversão parcial (art. 293.º do CC) - uma cláusula mista, de consentimento e preferência; o que, em termos práticos, significa alargar a necessidade do consentimento prevista no artigo 228.º, n.º 2/1ª parte, a todas as cessões a não sócios, incluindo a presente, como o permite o artigo 229.º, nº 3[liii].

 

12. Observações finais. - Resulta do exposto que, sobretudo depois da amputação do efeito real-corporativo, o sentido natural das cláusulas estatutárias de preferência é o de que têm eficácia obrigacional e real-potestativa, embora esta última seja problemática em relação às preempções ou preferências impróprias. Designadamente nas compras e vendas de quotas, a eficácia real subsistente permite à preferência funcionar como um mecanismo de controlo das entradas na sociedade - e correspondente asseguramento da sua homogeneidade e funcionalidade - complementar do consentimento, atuando diretamente sobre a quota, enquanto este se reporta à qualidade de sócio.

Todavia, sobretudo nos casos em que se realiza uma cessão sem consentimento da sociedade e sem dar preferência, enquanto a eventual ação de preferência não se encontrar decidida, a sociedade está sujeita à possível influência de um estranho. Para pôr cobro a essa situação, importa inserir no pacto social uma adicional cláusula de amortização compulsiva.

Como se assinalou, os pactos sociais das sociedades por quotas portuguesas são, em geral, muito elementares e tecnicamente pouco evoluídos. Daí deriva, em parte, o significativo contencioso existente. Cabe, naturalmente, à jurisprudência de algum modo minorar essas insuficiências, através de decisões justas e adequadas.

Em complemento do exposto, dá-se em seguida um exemplo de disposição estatutária compreensiva dos vários aspetos da questão. É ele:

«1. É livre a cessão entre sócios. Na cessão a estranhos à sociedade, observar-se-á o disposto nos números seguintes.

2. O sócio que pretenda ceder a sua quota deve apresentar à sociedade um pedido de consentimento, por escrito, acompanhado de uma proposta, na mesma forma, de cessão preferente da quota a favor dos demais sócios. Se a cessão for a título gratuito ou for a título oneroso mas a contrapartida consistir num direito ou coisa infungível, o cedente indicará o valor estimado da quota.

3. Recebidos o pedido e a proposta indicados no número precedente, a sociedade remete, nos 5 dias a seguir a essa receção, a proposta aos sócios não cedentes, concedendo-lhes um prazo até 20 dias para indicarem se desejam exercer o respetivo direito de preferência e em que medida, emitindo, se for o caso, as competentes declarações de aceitação.

Havendo apenas um interessado, a gerência notificá-lo-á para depositar ou colocar a contrapartida devida à disposição do cedente, podendo se preferir prestar em vez disso garantia bancária idónea. Recebido o comprovativo desta, comunicará ao cedente e demais sócios a aceitação da proposta daquele, considerando-se a quota transmitida logo que essa comunicação seja ou deva considerar-se recebida pelo cedente.

Havendo mais que um interessado, a gerência determinará a parte que cabe a cada um e comunicará o facto ao cedente e demais sócios, solicitando aos preferentes que depositem ou coloquem à disposição do cedente a contrapartida que lhes cabe ou prestem garantia bancária idónea. Recebidos os comprovativos relativos à contrapartida,  comunicará ao cedente e demais sócios a aceitação da proposta daquele, considerando-se a quota transmitida, em parcelas, logo que essa comunicação seja ou deva considerar-se recebida pelo cedente. Se algum dos preferentes não satisfizer algum destes requisitos, são os demais notificados para, querendo, suprir a sua falta.

4. Se, no prazo de 40 dias a contar do pedido de consentimento, o direito de preferência não houver sido exercido ou não o houver sido de forma completa, devem os gerentes convocar uma assembleia geral para deliberar sobre ele.

5. Não concordando a sociedade com o valor da projetada cessão, poderá mandar avaliar a quota por revisor oficial de contas escolhido de comum acordo ou nomeado pela OROC, com possível recurso ao tribunal, nos termos do artigo 1 068.º do CPC.

6. Quanto ao mais, aplica-se, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 230.º e 231.º do CSC.

7. Se o cedente efetivar uma cessão com desrespeito pelo disposto nos números anteriores, a sociedade poderá amortizá-la pelo valor que resulte do último balanço de exercício aprovado.

8. Este regime é aplicável, mutatis mutandis, às transmissões de quota entre vivos a título universal.»

 

 

 



[i] Cfr. M. J. Almeida Costa / Evaristo Mendes, «Preferências estatutárias na cessão de quotas. Algumas questões», RLJ  140 (2010), p. 3-38.

[ii] Os artigos sem referência ao diploma a que pertencem são do CSC (Código das Sociedades Comerciais de 1986).

[iii] Em boa medida, os problemas tratados já foram desenvolvidamente analisados, com indicação da doutrina e da jurisprudência pertinentes, no estudo citado na nota anterior, para o qual se remete. Na literatura nacional posterior, salientam-se: Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial II - Das Sociedades, 5ª ed., Coimbra (Almedina) 2015, p. 335 e ss, reproduzindo o texto do artigo «Direito de preferência em cessão de quotas», publicado em AAVV, II Congresso DSR (2012), p. 147-155; A. Soveral Martins, Cessão de Quotas, 2.ª ed., Coimbra (Almedina) 2016, e «Cláusulas de preferência», anot. 7 ao artigo 229.º, in CSC em Comentário (coord. de Coutinho de Abreu), III, Coimbra (Almedina) 2011, p. 468 e ss, substancialmente reproduzido no texto anterior; e Calvão da Silva, «Âmbito de aplicação e eficácia real de cláusula estatutária de preferência», RLJ 143 (2013), p. 114-129, em anotação ao Acórdão do STJ de 12.09.2013 (cfr, adiante, no texto).

[iv]  Segundo se alegou no processo relativo à SQ X, referido adiante, tratar-se-ia, não de uma cessão propriamente dita, mas da transferência da quota de uma parte do património dos «contitulares» para outra parte desse seu património. Importa, no entanto, ter presente que as sociedades anónimas são organizações de membros e de titulares da administração variáveis, mesmo havendo restrições à transmissibilidade das ações. Acerca das implicações que daqui decorrem, cfr. também Coutinho de Abreu, Curso II - Das Sociedades (2015), cit., p. 339.

[v] A ação foi proposta no tribunal cível, considerado incompetente, pelo que viria a ser intentada novamente no Tribunal de Comércio em 6.02.2004.

[vi] Sendo assim, mostra-se respeitado o prazo do artigo 1410.º, n.º 1, do CC, pelo que a apreciação da exceção de caducidade do direito de ação, que foi invocada na contestação, não se encontra presente no recurso de revista.

[vii] Publicado na RLJ 143 (2013), p. 106ss, com a mencionada anotação crítica de Calvão da Silva - «Âmbito de aplicação e eficácia real de cláusula estatutária de preferência» (p. 114-129) -, e disponível em www.dgsi.pt.

[viii] Publicado na CJSTJ 2017/I, p. 62-65, e disponível em www.dgsi.pt.

[ix] Cfr., designadamente, a análise constante do citado estudo de Almeida Costa /Evaristo Mendes, «Preferências estatutárias...» (2010), p. 32 e ss.

[x] Mas indica-se, em nota, que a questão foi proficientemente tratada no Acórdão de 8.02.2011 (Hélder Roque). Este Aresto encontra-se disponível em www.dgsi.pt. Pelo respetivo relato dos factos, não há notícia de que o pacto social contivesse qualquer direito de preferência. Seja como for, afirma-se na sua fundamentação que o contrato de sociedade pode conter um tal direito, nas cessões onerosas, sendo as respetivas cláusulas «válidas, na medida em que não subordinem a eficácia da cessão para com a sociedade à observância» do mesmo; sendo devida esta ressalva porque tal subordinação está proibida pelo artigo 229.º. n.º 5, 1.ª parte (ponto V, citando Raul Ventura). Afirma-se, ainda, que, se a cessão se tornar livre por incumprimento do disposto no artigo 231.º, n.º 1, a sociedade já não gozará do direito convencional de preferência (se o houver), o mesmo sucedendo com os sócios, porque ele não é alternativa à apresentação da proposta de amortização ou aquisição da quota a que se refere esse preceito; e que a hipotética inobservância de um tal direito «apenas permitiria ao preferente preterido substituir-se na posição do cessionário ou obter uma indemnização, consoante [a] obrigação [de preferência] tivesse ou não eficácia real, atento o disposto no artigo 421.º do Código Civil, mas não tornar ineficaz a cessão da quota perante a sociedade» (ibidem).

Quanto a este ponto, a posição de Calvão da Silva, expressa na respetiva anotação, é concordante com a do Supremo: cfr. p. 115 e ss.

[xi] Cfr., no entanto, as indicações constantes do citado estudo de Almeida Costa /Evaristo Mendes, «Preferências estatutárias...» (2010), p. 19 e ss.

[xii] Note-se que, a respeito dos pactos de preferência, o artigo 421.º do CC - diretamente e ao remeter para o artigo 413.º - exige que a eficácia real lhes seja atribuída pelas partes, mas não se exige uma convenção expressa. Assinala-se, ainda, que, neste aspeto da eficácia real das cláusulas estatutárias, Calvão da Silva defende na sua anotação opinião diferente da perfilhada no Aresto: p. 124 ss.

[xiii] Mas, sobre ele, cfr. a mencionada anotação de Calvão da Silva, p. 118 ss.

[xiv] Cfr. também - no sentido de que na troca só poderá haver preferência quando o titular do direito o possa exercer em igualdade de condições (tanto por tanto), o que não acontecia num caso como o vertente, em que o objeto da «troca» eram ações infungíveis, de uma sociedade familiar - a anotação de Calvão da Silva, p. 120 s, citando Pires de Lima, Antunes Varela e Henrique Mesquita, estes na esteira de Vaz Serra.

[xv] Cfr., noutro sentido, Raul Ventura, Cessão de quotas, Separata do vol. XXI da RFDUL, Lisboa 1967,  p. 65 e s (a respeito das cláusulas de preferência, invocando o art. 423.º do CC).

[xvi] Como se observará, seja qual for a posição que se tome a respeito das preferências legais e dos pactos de preferência, são frequentes na prática societária, nacional e estrangeira, as chamadas cláusulas de preempção ou de preferência impróprias, que a literatura jus-societária largamente admite, pelo menos nas SQ. Cfr., em geral, as indicações fornecidas em Almeida Costa /Evaristo Mendes, «Preferências estatutárias...» (2010), cit., p. 36 e ss.

[xvii] Sobre o assunto, cfr. a referida anotação de Calvão da Silva, p. 116 s (admitindo como possível tal interpretação, mas não a afirmando de forma categórica), bem como o Acórdão de 7.02.2017, CJSTJ 2017, p. 64 (citando Raul Ventura no sentido de que a dispensa do consentimento deverá ser expressa, tornando-se impossível, em relação a pactos anteriores ao CSC, deduzir tal dispensa da mera presença no pacto social de uma cláusula de preferência, uma vez que, no domínio da LSQ, não existia um regime legal de consentimento).

[xviii] Acerca deste efeito, cfr. do citado estudo de Almeida Costa /Evaristo Mendes, «Preferências estatutárias...» (2010), cit., p. 19 e 21.

[xix] À data da cessão, ainda não estava em vigor o artigo 242.º-A do CSC, que, em situações como a presente, tem agora que se conjugar com o artigo 228.º, n.º 3 (embora o assunto seja controvertido, cfr. adiante, em nota).

[xx] Cfr. CJSTJ 2017/I, p. 63 e s.

[xxi] Comentário ao CSC - Sociedades por Quotas, I, 2.ª ed., p. 615 e ss.

[xxii] CJSTJ 2017/I, p. 64.

[xxiii] CJSTJ 2017/I, p. 65.

[xxiv] Disponíveis em http://www.empresanahora.mj.pt/ENH/sections/PT_pactos.html.

[xxv] Esta ideia de igualação também se encontra presente no direito de preferência (legal) do artigo 231.º, n.º 4. Sobre o tema, cfr., por exemplo, com mais indicações, Almeida Costa / Evaristo Mendes, «Preferências estatutárias» (2010), cit., p. 13 e ss, e Coutinho de Abreu, Curso II - Das Sociedades (2015), cit., p. 337 e 338 e s..

[xxvi] Cfr. o Acórdão do STJ de 30.03.1989, BMJ 385 (1989), p. 569 e ss.

[xxvii] Ela própria uma manifestação da liberdade jusfundamental de organização empresarial (cfr.os arts. 61.º, n.º 1, e 80.º, al. c), da CRP).

[xxviii] Cfr. Almeida Costa / Evaristo Mendes, «Preferências estatutárias» (2010), cit., p. 5, 32 ss, onde se faz uma análise desenvolvida do tema. Veja-se também, «supra», o Acórdão de 12.09.2013, bem como a respetiva anotação de Calvão da Silva. Na doutrina, cfr., ainda, por exemplo, Coutinho de Abreu, Curso II - Das Sociedades (2015), cit., p. 336.

[xxix] Para além das indicações constantes dos textos referidos na nota precedente, cfr., por ex., A. Soveral Martins, Cessão de Quotas (2016), cit., p. 105 e ss.

[xxx] Cfr. também Almeida Costa / Evaristo Mendes, «Preferências estatutárias» (2010), cit., p. 12 e ss, 26 e ss, bem como, por exemplo, Coutinho de Abreu, Curso II - Das Sociedades (2015), cit., p. 337, e Soveral Martins, Cessão de Quotas (2016), cit, p. 111 e s, todos com mais indicações.

[xxxi] Cfr., neste sentido, a referida anotação de Calvão da Silva e as indicações doutrinais aí fornecidas (Pires de Lima/Antunes Varela / Henrique Mesquita e Vaz Serra), p. 120 e s. Contra, Raul Ventura, Cessão de quotas (1967), cit., p. 65 e s.

[xxxii] Cfr. as indicações fornecidas por Almeida Costa / Evaristo Mendes, «Preferências estatutárias» (2010), cit., p. 8, 10 e s, 36 e ss, e Coutinho de Abreu, Curso II - Das Sociedades (2015), cit., p. 337 e ss.

[xxxiii] Cfr. Almeida Costa / Evaristo Mendes, «Preferências estatutárias» (2010), cit., p. 36 e ss, com mais indicações.

[xxxiv] Cfr., por ex., a anotação de Calvão da Silva ao Acórdão de12.09.2013, cit., p. 118 e ss.

[xxxv] Cfr. também Almeida Costa / Evaristo Mendes, «Preferências estatutárias» (2010), cit., nota 30, e Evaristo Mendes / Fernando Sá, in Comentário ao Código Civil, Parte Geral (coord. de Carvalho Fernandes e Brandão Proença), Lisboa (UCE) 2014, p. 525 e s (Nota prévia, 4, I e VIII), 538 e ss ( notas I, II e, sobretudo, VI ao art. 236.º), com mais indicações. Com uma perspetiva deste tipo, centrada na finalidade das preferências estatutárias, cfr., ainda, por ex., Coutinho de Abreu, Curso II - Das Sociedades (2015), cit., p. 338 e ss. Para um apanhado das várias posições existentes em Portugal acerca da interpretação dos pactos sociais, cfr. Rui Pinto Duarte, A interpretação dos contratos, Coimbra (Almedina) 2016, p. 88 e ss.

[xxxvi] Cfr. também Coutinho de Abreu, Curso II - Das Sociedades (2015), cit., p. 338.

[xxxvii] Cfr., por exemplo, Almeida Costa / Evaristo Mendes, «Preferências estatutárias» (2010), cit., p. 19 e ss, Calvão da Silva, anotação ao Acórdão de12.09.2013, cit., p. 124 e ss, Coutinho de Abreu, Curso II - Das Sociedades (2015), cit., p. 341 e s, e Soveral Martins, Cessão de Quotas (2016), cit, p. 112 e ss., todos com mais indicações.

[xxxviii] Cfr., com mais indicações, Almeida Costa / Evaristo Mendes, «Preferências estatutárias» (2010), cit., p. 26 e ss, Coutinho de Abreu, Curso II - Das Sociedades (2015), cit., p. 342 e s., e Calvão da Silva, anotação ao Acórdão de12.09.2013, p. 124 e ss, por um lado; por outro lado, este Acórdão, p. 112 e ss, e Soveral Martins, Cessão de Quotas (2016), cit, p. 115 e ss.

[xxxix] Sobre o assunto, cfr., no entanto o n.º 5, «supra», bem como Almeida Costa / Evaristo Mendes, «Preferências estatutárias» (2010), cit., p. 12 e ss., 23, 26 e ss., Coutinho de Abreu, Curso II - Das Sociedades (2015), cit., p. 336 e s, e Soveral Martins, Cessão de Quotas (2016), cit, p. 111 e ss.

[xl] Cfr. Soveral Martins, Cessão de Quotas (2016), cit, p. 113 e ss, 116 e ss (negando a exigência de estipulação expressa, mas considerando necessária uma estipulação específica, ainda que tácita).

[xli] Assim, Soveral Martins, Cessão de Quotas (2016), cit, p. 116, citando em sentido diferente Almeida Costa / Evaristo Mendes, «Preferências estatutárias» (2010), cit., p. 27. Note-se, no entanto, que estes autores também defendem que os sócios são livres de estipular cláusulas com eficácia real e cláusulas sem essa eficácia. Simplesmente, entendem que o sentido natural das cláusulas é o de reconhecer à preferência tal eficácia, pelo que ela não terá que ser convencionada.

[xlii] Assim, Soveral Martins, Cessão de Quotas (2016), cit, p. 117.

[xliii] Assim, Soveral Martins, Cessão de Quotas (2016), cit, p. 117.

[xliv] Para uma aproximação das preferências estatutárias a esta preferência legal, cfr. Almeida Costa / Evaristo Mendes, «Preferências estatutárias» (2010), cit., p. 27.

[xlv] Para um quadro sintético das várias hipóteses de articulação do consentimento e da preferência, cfr. Coutinho de Abreu, Curso II - Das Sociedades (2015), cit., p. 342 e s. Cfr. também as observações de Paulo Olavo Cunha, Direito das Sociedades Comerciais, 6ª ed., Coimbra (Almedina) 2016, p. 489 e ss., com apresentação de uma cláusula modelo.

[xlvi] Sobre o sentido de expressão semelhante a esta no artigo 1410.º n.º 1, do CC, com visão crítica da jurisprudência e da doutrina dominantes, cfr. Agostinho Guedes, «Pacto de Preferência e Direitos Legais de Preferência (Em Busca do Artigo Esquecido)», in Elsa Sequeira /Fernando Sá (coord.), Edição Comemorativa do Cinquentenário do Código Civil, Lisboa (UCE) 2017, p. 215-238.

[xlvii] Não pretendemos cobrir todas as hipóteses possíveis. Designadamente, deixamos de fora, quando o pacto social não regula o exercício do direito de preferência, a hipótese de aplicação analógica do regime dos pactos de preferência, designadamente o artigo 416.º do CC.

[xlviii] Sobre esta possibilidade, cfr. Almeida Costa / Evaristo Mendes, «Preferências estatutárias» (2010), cit., p. 33, 35 e s, e Soveral Martins, Cessão de Quotas (2016), cit, p. 120 e s, com mais indicações.

[xlix] Note-se que o regime do artigo 231º deve considerar-se imperativo quanto à sua norma básica: se o sócio alienante cumprir o requisito temporal do n.º 3, para a sociedade poder recusar eficazmente o consentimento a uma cessão ou projeto de cessão (impedindo que ela se torne livre), terá que lhe proporcionar uma alternativa financeiramente equivalente. Porém, no caso vertente, o titular dessa quota já poderia ter obtido esse resultado dando preferência.

[l] É seguro que uma cessão livre, para se tornar eficaz em relação à sociedade, não precisa de ser registada (art. 170.º). Mas já se mostra discutível que, com a introdução do artigo 242.º-A, na Reforma de 2006, a notificação ou aceitação prevista no artigo 228.º, n.º 3, seja bastante para o efeito. Com efeito, da interpretação conjugadas duas disposições, resulta a adicional necessidade de, no caso da notificação (em que a sociedade não intervém - cfr. a propósito o art. 242.º-B), haver ainda um pedido de promoção do registo; embora a notificação possa porventura interpretar-se como contendo este (e um pedido de promoção valha como comunicação). Sobre o assunto, cfr., por exemplo, Coutinho de Abreu, Curso II - Das Sociedades (2015), cit., p. 332, com mais indicações.

[li] Publicado no BMJ 492 (2000), p. 458-462.

[lii] Acerca deste último aspeto, cfr. Almeida Costa / Evaristo Mendes, «Preferências estatutárias» (2010), cit., p. 38.

[liii] Cfr. Almeida Costa / Evaristo Mendes, «Preferências estatutárias» (2010), cit., p. 36.