Evaristo Mendes


Evaristo Mendes

 

Compra e venda de ações.

Nota prática sobre o princípio da consensualidade e seus limites

 

1. A vende a B um lote de ações, mediante contrato válido[i]. Sendo a compra e venda, no direito português, um contrato com eficácia real perfeito (princípio da consensualidade, em contraposição ao princípio da tradição ou do registo constitutivo) - isto é, suficiente para, por si só, operar a transmissão de bens e direitos, de qualquer natureza, no presente ou no futuro, desde que se verifiquem os pressupostos gerais de qualquer transmissão voluntária -, as ações passam para a titularidade de B, imediatamente ou quando esses pressupostos se verificarem (e se eles se vierem a verificar) [ii].

Questão diferente consiste em saber se, ocorrendo a transmissão, por efeito do contrato, a eficácia desta é plena ou limitada; e, portanto, se o contrato tem a virtualidade de transmitir, por si só, a posição jurídica acionária com todas as respetivas características, legais e estatutárias. Mais especificamente, sendo as ações participações sociais em sentido objetivo - ou unidades de valor e de participação social (UVPS), correspondentes a outras tantas frações em que o capital social se divide -, está agora em causa saber se o contrato, sem mais, faz adquirir as ações com a inerente qualidade de sócio ou não. Quanto a ela, a resposta é a que se segue.

Se as ações forem meras UVPS, não valores mobiliários, a transmissão apenas adquire eficácia plena, assumindo o adquirente a qualidade de sócio inerente às ações e podendo opor a sua titularidade erga omnes, quando a transmissão for notificada à sociedade, em devidos termos, ou por esta reconhecida[iii]. Até lá, o alienante mantém a qualidade de sócio e, se houver uma posterior transmissão das ações a C, notificada à sociedade, ou seja, uma transmissão conforme à lei de circulação geral das ações com eficácia plena, consideram-se as ações adquiridas por C. A primeira transmissão, a favor do B, fica prejudicada[iv]; tal como ficam prejudicadas eventuais transmissões «consensuais» realizadas por B, na qualidade de titular das ações, a favor de D, por D a favor de E, etc.

Se as ações forem valores mobiliários titulados nominativos (VMTN), que são VM mistos - cartulares quanto à transmissão e registados quanto ao exercício dos direitos sociais, incorporando o título as ações com o inerente direito ao registo -, a transmissão apenas se torna oponível à sociedade, adquirindo o comprador a inerente qualidade de sócio, quando essa transmissão for notificada a esta em devidos termos, ou seja, dado que se trata de valores mobiliários registados, mediante requerimento do respetivo registo[v] e, porque se trata de ações tituladas, fazendo acompanhar o requerimento da apresentação dos títulos com declaração de transmissão a favor do adquirente; e apenas adquire plena eficácia em relação a ela - ficando o adquirente legitimado para exercer os direitos sociais e ficando a sociedade legitimada para o tratar como sócio, designadamente exigindo-lhe o cumprimento dos deveres próprios da condição de sócio - com a efetivação do registo[vi]. Existindo títulos circulantes e portanto uma forma especial de circulação (cartular), a transmissão realizada a favor de B apenas se torna eficaz em relação a potenciais adquirentes posteriores das ações (ou adquirentes de direito sobre elas incompatível com o de B) com a entrega - física ou espiritualizada - dos títulos tendo inscrita uma declaração de transmissão a favor do mesmo B. Por conseguinte, se, após o contrato com este, A conserva a posse dos títulos e volta a vender as ações a C, cumprindo agora a formalidade da traditio, o direito de C prevalece sobre o de B (podendo discutir-se se o direito de C apenas prevalece quando se verifiquem as condições do art. 58 do CVM ou prevalece sem mais, salvo fraude, como parece preferível, dada a presença de um valor mobiliário, dotado de um regime especial de circulação). Como na hipótese das ações não VM, a primeira transmissão, a favor do B, fica prejudicada; tal como ficam prejudicadas eventuais transmissões «consensuais» realizadas por B, na qualidade de titular das ações, a favor de D, por D a favor de E, etc.

Se as ações forem valores mobiliários escriturais (VME), isto é, VM fungíveis registados em conta, a sua transmissão por mero efeito do contrato pressupõe, nos termos gerais, a individualização do objeto a transmitir; o que sucederá se, por ex., A alienar as 5 000 ações de que for titular na SA x ou que tem registas na conta y. Admitindo que a sociedade é a entidade registadora [cfr. os arts. 61c) e 64 do CVM][vii], a transmissão apenas se torna oponível à sociedade com o requerimento do registo, em devidos termos (cfr. os arts. 66.2 e 67 do CVM), e apenas se torna plenamente eficaz com este registo, seja em relação à corporação, seja em relação a terceiros, potenciais adquirentes (ou adquirentes de direitos incompatíveis como de B). Assim, uma eventual transmissão registada a favor de C, posterior à compra e venda realizada com B, prevalece sobre a anterior transmissão consensual realizada a favor deste. Como nas situações anteriores, a transmissão a favor de B fica prejudicada.

 

2. Como se observa, o princípio da consensualidade tem limitações «naturais»; e comporta também exceções. Porém, as limitações tanto respeitam às ações que têm a condição de valores mobiliários como às ações simples (UVPS), em relação às quais o princípio não sofre contestação; e as verdadeiras exceções são muito circunscritas, não respeitando à transmissão[viii].

Dadas as limitações apontadas, uma transmissão meramente consensual será, normalmente, entendida pelas partes como uma situação apenas provisória: haverá uma transmissão com eficácia limitada provisória, destinada a tornar-se uma transmissão com eficácia plena mediante o cumprimento das formalidades exigíveis para o efeito. Podem as partes, é certo, querer manter a situação por um período de tempo prolongado, ficando o alienante como sócio fiduciário; mas isso já dependerá de uma regulação especial dos respetivos interesses. Não é a situação típica ou normal.

 

 



[i] Estando em causa ações simples (não valores mobiliários) e uma participação qualificada, pode ser necessária a forma escrita (por analogia com o regime das quotas - art. 228.1 do CSC). Tratando-se de ações valores mobiliários, titulados (VMTN) ou escriturais (VME), pode defender-se ser exigível a forma escrita ou a entrega dos títulos com declaração de transmissão neles aposta (VMTN) ou o registo em conta (VME) (trata-se de regra semelhante à que se estabelece para a doação de coisas móveis, no art. 947.2 do CC).

[ii] Está em causa uma qualidade do contrato: este é dotado de eficácia real ou translativa. Para o mesmo, com tal qualidade, operar efetivamente a transmissão, é necessário que se verifiquem os pressupostos gerais de qualquer transmissão voluntária, ou seja, a existência individualizada do bem ou direito e o poder de dispor dele por parte do vendedor (cfr. os arts. 408, 880, 892 ss do CC e 467 do CCom). Cfr. Evaristo Mendes, 1986/2016.

[iii] Cfr., a respeito das quotas, o art. 228.3 do CSC, quanto aos direitos não reais em geral, o art. 583 do CC (aplicável mutatis mutandis por força do art. 588), e, quanto à posição contratual pré-consentida, o art. 424.2 do CC.

[iv] Cfr., quanto aos direitos não reais em geral, o art. 584 do CC (aplicável mutatis mutandis por força do art. 588). Podem dar-se diversas explicações para o fenómeno, mas as dificuldades construtivas não são de modo a negar que este é o regime legal, obtido mediante aplicação analógica parcial do regime das quotas e/ou mediante aplicação, com as devidas adaptações, do regime geral da cessão de direitos não reais (o regime da cessão de créditos, por força do art. 588 do CC) ou de posição contratual pré-consentida ou livremente transmissível (art. 424.2 do CC).

[v] Cfr., a propósito, o regime das quotas (art. 242-A do CSC) e o art. 102.1, 5 e 7 do CVM.

[vi] Trata-se, portanto, de um registo socialmente legitimador.

[vii] Se a entidade registadora for um intermediário financeiro, a conjugação das regras societárias com as do CVM levanta ulteriores dificuldades, que o legislador mobiliário não teve em devida conta.

[viii] Em geral, tais exceções são relativas, designadamente, à hipoteca (art. 687 do CC) e ao penhor (art. 669.1 do CC). No caso, poderemos ter uma exceção em relação a este. Abstrai-se de negócios como o mútuo civil, que na respetiva configuração legal é um negócio real quoad constitutionem, operando a transmissão da coisa, mas devido ao caráter fungível desta, não porque se trate de um negócio destinado à troca de bens ou direitos.

Nalguns autores, as situações do n.º 2 do art. 408 do CC são vistas como exceções ao princípio, consagrado no n.º 1. Em rigor, porém, o n.º 2 ainda serve para determinar o sentido e alcance do princípio. Na verdade, a regra da consensualidade contrapõe-se ao princípio da tradição, próprio dos sistemas do modo e do título e do modo, e, por extensão, a regimes de registo constitutivo, como o que vigora na Alemanha. Não tem, portanto, a ver com as situações deste n.º 2. Cfr. Evaristo Mendes, 1986/2016, Mónica Jardim, 2015, e Pedro Albuquerque, 2019.