Evaristo Mendes


Evaristo Mendes

Docente da Faculdade de Direito da UCP

 

Modelo económico constitucional e Direito Comercial

in

Direito Comercial e Societário.

Estudos em memória do Prof. Doutor Paulo M. Sendin,

Lisboa (UCE) 2012, p. 167-251

 

Sumário

IModelo económico constitucional. Empresa e liberdade de empresa [p. 167-179]. 1. Economia de mercado concorrencial regulada, assente na liberdade de empresa, e tecido produtivo formado por entidades e organizações empresariais. 1.1 Liberdade de empresa privada e empresa capitalista. 1.2 Empresa e unidade de produção. 1.3 Terminologia adoptada – empresa em sentido estrito.  II - Modelo económico constitucional e legislação ordinária. Ideias gerais sobre a concretização do modelo e o papel do  Direito Comercial [p. 180-186]. III - Modelo constitucional e matéria mercantil. Objecto do  Direito Comercial [p. 186-284]. 1. A natural vocação do Direito comercial para regular, ainda que parcialmente, a actividade produtiva plenamente sujeita a uma lógica de mercado concorrencial e com relevância sistémica, atendendo directamente à sua dimensão e significado económicos. 1.1 Possível critério geral de distinção da actividade produtiva comercial (comércio) e civil no Código Comercial. 1.2 Controvérsia doutrinal. 2. Modelo objectivista do CCom e respectivas consequências. 3. Mudança de contexto. Propostas de abertura do conceito de comércio. 3.1 Critério empresarial de Paulo Sendin. Empresa comercial. 3.2 Súmula do pensamento deste autor. 3.3 Pontos salientes. 3.4 O conceito de empresa. 4. Posição adoptada e principais implicações – aplicação obrigatória do CSC e do estatuto do comerciante. 4.1 Confirmação da vocação natural do Direito mercantil para estabelecer o regime económico-privado geral dos actores produtivos com relevância sistémica. 4.2 Confronto com a posição da doutrina tradicional na versão relativamente aberta de Coutinho de Abreu.  4.3 Observação conclusiva. IV - Panorama sintético do objecto do Direito comercial visto a esta luz [p. 245-250].

 

Resumo

(i) O modelo económico constitucional é um modelo de organizações empresariais (arts. 80ss da CRP), tendo na base e como princípio activador fundamental a liberdade de empresa, com a sua dupla dimensão, de liberdade fundamental de índole pessoal (liberdade de empreender) e económico-institucional (liberdade de actuação profissional no domínio económico mediatizada por essas organizações, através das quais a actividade produtiva é estruturada e exercida, tipicamente em ambiente de plena lógica de mercado concorrencial) [arts. 61 e 80c) da CRP]; estando em causa, portanto, um modo de produção em que surge uma figura desconhecida dos modos de produção pré-capitalistas – o empresário; (ii) são essas organizações – via de regra entidades empresariais colectivas ou agregados de entidades desse tipo (máxime, olhando o fenómeno por outro prisma, empresas mono ou plurissocietárias) - que compõem a malha do tecido produtivo nacional, e as mesmas revelam-se indispensáveis  para realização de diversas funções do próprio Estado; através delas se cria o essencial da riqueza nacional, se consegue o progresso social e económico e se prossegue o fim último – a instituição de uma sociedade de bem-estar; (iii) a esta relevância económica (sistémica), social e até política acresce a circunstância de nelas confluírem diversas categorias de interesses e valores não inteiramente coincidentes ou até conflituantes com os de quem promove a sua constituição, detém o respectivo poder de controlo, real e/ou nominal, e, em exclusivo ou juntamente com certos outros potenciais investidores de risco, tem direito ao respectivo valor residual [«titular(es)»/«empressário(s)», em certa acepção do termo] – interesses dos eventuais gestores profissionais, dos trabalhadores, dos consumidores, dos investidores e credores em geral, valores ambientais, de saúde pública, etc.;  (iv) apresentam-se, ainda, como espaços de realização pessoal e profissional, mormente dos «empresários», mas também dos trabalhadores. (v) A este mundo empresarial contrapõe-se a actividade profissional independente não empresarializada (tradicional/artesanal e liberal) - exercida directamente pelo respectivo agente, individualmente ou de forma associada, e modo de desenvolvimento directo da sua personalidade no domínio económico -, que em parte constitui um último reduto da antiga economia pré-capitalista e se situa hoje nas margens do sistema sócio-económico; correspondendo-lhe uma liberdade fundamental de cariz pessoal, ainda que em grau variável imbuída de certo espírito económico (art. 47.1 da CRP). (vi) O modelo carece de ser concretizado e desenvolvido pelo legislador ordinário; promovendo-se a instituição de um sistema sócio-económico equilibrado e com níveis pelo menos aceitáveis de risco, iniciativa e investimento; não se compreendendo, nem sendo conforme à Constituição, que a actividade empresarial, com as respectivas empresas e actores produtivos, por definição sistemicamente relevante, fique sem enquadramento jurídico adequado ou que a regulamentação legal não cubra importantes áreas da mesma; (vii) no Direito privado, o ramo do ordenamento jurídico que, desde sempre, compreendeu uma regulamentação de cariz essencialmente económico fundada na ideia de sistema, de um sistema organizado, disciplinado e funcionante, é o Direito comercial; por conseguinte, ele tem uma natural vocação para regular toda a actividade empresarial enquanto actividade profissionalizada, incluindo os sujeitos jurídicos, quanto à respectiva tipologia, capacidade e estatuto profissional, as organizações e formas organizativas, os instrumentos de exercício dessa actividade, etc., na medida em que já não exista regulamentação geral apropriada e a isso não se oponham razões particulares de certo sector de actividade (por exemplo, a agricultura); (viii) em correspondência com o carácter evolutivo da realidade económico-produtiva regulada, mormente no plano organizatório e dos instrumentos de exercício da actividade, a regulamentação em causa – embora, por razões de organização, funcionalidade e clareza do sistema, possa impor certos modelos regulatórios típicos - deve ser flexível e possuir carácter aberto, não entravando a inovação, sob pena de ineficiência e perda de competitividade; importando, ainda, atender à especificidade do fenómeno económico, promover a circulação rápida e segura da riqueza (em sintonia com a ideia de que a circulação de riqueza gera riqueza) e encarar o mundo empresarial como um espaço privilegiado da autonomia privada, num sentido que vai para lá da mera liberdade contratual; por exemplo,  nas relações interprofissionais – ou seja, no interior do sistema económico-empresarial – a profissionalidade pode dispensar exigências de forma, a aplicação estrita do princípio do contrato, justificar maior objectividade e literalidade na interpretação de declarações e instrumentos negociais, etc.; (ix) ao mesmo tempo, o campo de aplicação obrigatória do Direito comercial deve, na medida do possível, circunscrever-se ao fenómeno empresarial, deixando de fora a referida actividade profissional, não empresarializada; actividade essa de índole pessoal, em grande medida sem estrito carácter económico (pense-se no artesanato e nas profissões liberais protegidas) e também sem relevância sistémica que justifique a sua sujeição a um regime especial fundado na ideia de um sistema organizado, equilibrado na multiplicidade de valores e interesses coenvolvidos e funcionante; (x) o quadro de normas qualificadoras do CCom, que delimitam o campo de aplicação da lei mercantil, deve ser interpretado de forma actualista e em conformidade com as considerações anteriores (aplicando designadamente o princípio de uma interpretação conforme à Constituição); (xi) tendo em conta esses parâmetros, importa, no seguimento do Prof. Sendin, distinguir duas zonas de comercialidade: a dos actos isolados de comércio (comerciais mesmo não estando integrados no exercício de uma empresa nem respeitando à sua organização) (art. 2º/1ª parte do CCom) e a das empresas mercantis, respectivos «empresários» e negócios de empresa (arts. 230º e 2º/2ª parte do CCom); considerando-se empresas comerciais, em princípio, todas as existentes, com possível ressalva das empresas agrícolas (cfr. aquele art. 230, §§ 1º e 2º); (xii) esta conclusão assenta no pressuposto de que o conceito de empresa utilizado exclui as chamadas «pequenas empresas», no sentido de organizações de meios que suportam, com carácter acessório, o exercício directo de uma actividade económica pelo respectivo agente; para quem utilize um conceito mais lato, como sucede com aquele professor, entre outros, haverá também que as ressalvar; mesmo havendo aí uma unidade produtiva relevante para certos efeitos jurídicos (cfr., por ex., o art. 1112 do CC), estamos perante um fenómeno que nada justifica subtrair à reserva civil dos cidadãos; (xiii) todavia, o sistema de qualificação mercantil, tal como gera o produto «residual» dos actos isolados de comércio (art. 2º/1ª parte), também comporta, no âmbito do comércio em sentido económico, a figura do «pequeno comerciante» (art. 13.1º); o que se justifica é circunscrever  a aplicação obrigatória do regime comercial a ambos estes fenómenos economicamente marginais, mero produto de certa ideologia liberal do Código e, hoje em dia, sem qualquer relevância sistémica que justifique a imposição de uma disciplina especial como a mercantil; reduzi-los aos estritos limites do Código e, como directriz geral, fazer uma interpretação restritiva do regime que formalmente se lhes aplica (operando uma redução teleológica, por exemplo, do estatuto do comerciante, de disposições legais como o art. 471, etc.).