Evaristo Mendes

Evaristo Mendes

Professor da Escola de Lisboa da Faculdade de Direito da UCP

 

Aval prestado por sócios de sociedades por quotas e anónimas

e perda da qualidade de sócio

 

Palavras-chaves: Aval - livrança em branco - qualidade de sócio – pacto de preenchimento – interpretação da garantia

Resumo: O aval cambiário só surge como tal quando a letra ou livrança em que é aposto preencher todos os requisitos dos artigos 1 e 75 da LULL. Antes disso, existe uma simples vinculação jurídica pré-cambiária (um pré-aval). Quando um sócio apõe uma declaração de aval numa livrança em branco subscrita pela sua sociedade a favor de um financiador desta, fá-lo, via de regra, na qualidade de sócio: é este o significado razoável da exigência do aval por parte do financiador e é este também o sentido que um sócio normal atribuirá a essa exigência e à sua declaração de aval. Nessa medida, nas situações em que a livrança avalizada cobre a relação de negócios existente entre a sociedade e o financiador assinalado, ou um certo segmento dessa relação de negócios, perdendo o pré-avalista a qualidade de sócio, falta, em princípio, justificação para o mesmo continuar a cobrir tal relação de negócios. O sentido normal da vinculação por aval, neste contexto, é o da cessação da cobertura dessa relação de negócios para o futuro, especificando-se o objeto da garantia e passando o pré-aval a cobrir apenas a dívida existente nessa altura.

 

Nota introdutória

[1] É comum os bancos exigirem às sociedades suas financiadas a subscrição-emissão a seu favor de livranças em branco – ou seja, que não cumprem um ou mais dos requisitos constitutivos legais - com a aposição nas mesmas de avales dos respetivos sócios, numa grande parte dos casos sócios gerentes ou administradores. Tais livranças destinam-se tipicamente a melhorar a posição processual do financiador, na medida em que a sua entrega a este envolve uma autorização para – em caso de necessidade, via de regra ocorrendo uma situação de «incumprimento» sério do contrato de financiamento a que estão associadas - ele as preencher com o elemento em falta e para as apresentar à cobrança, ficando com um título executivo nas mãos que poderá fazer valer se não obtiver voluntariamente o valor nele inscrito. Complementarmente, cumprem uma função de garantia, na medida em que se encontram avalizadas pelos sócios. Daí a sua qualificação corrente como «livranças de garantia» ou «livranças-caução». Dada esta sua função económica típica, não se destinam a circular; e a circunstância de o montante estar em branco também as torna pouco aptas, enquanto assim se conservarem, designadamente, para serem descontadas. [2] Como a autorização de preenchimento com o elemento em falta e a consequente utilização das livranças, mormente como títulos executivos, pressupõem uma situação de «incumprimento» da relação contratual a que elas se encontram associadas, apenas numa minoria de casos tal preenchimento e tal utilização ocorrem. [3] Isto não significa que elas sejam, em geral, inúteis. Ao menos teoricamente, funcionam como mecanismo de pressão (ou compulsório): sobre a sociedade para que cumpra pontualmente os contratos de financiamento a que estão ligadas e, sobretudo, sobre os sócios, levando-os a favorecer uma gestão da sua sociedade orientada para esse cumprimento. Com efeito, verificando-se uma situação de incumprimento, o portador pode retirá-las do estado larvar em que se encontram, completando-as com o elemento em falta. Neste caso, o mesmo portador beneficia da referida melhoria processual e, na eventual sua execução, à garantia patrimonial da sociedade subscritora-emitente acresce a dos sócios avalistas.

[4] A subscrição-emissão pela sociedade de uma livrança em branco – isto é, sem algum dos requisitos essenciais indicados no artigo 75 da LULL, designadamente o montante da promessa de pagamento - a favor de um seu financiador não cria imediatamente um título cambiário, sujeito ao regime geral desta Lei (art. 76) e, em especial, independente, desprendido quer da relação subjacente quer do pacto de preenchimento a que alude o artigo 10 da LULL. Na verdade, o título – enquanto título de crédito, com as características que a Lei lhe confere - apenas existirá se e quando apresentar os requisitos essenciais do artigo 75: designadamente, quando dele constar uma promessa de pagar perfeitamente identificada, com a indicação do valor devido, o tempo e o lugar do pagamento, etc. Até lá, temos meros documentos de livrança com pactos de preenchimento, suscetíveis de serem legitimamente transformados pelo seu portador em verdadeiras livranças ao abrigo de tais pactos, se se verificarem os pressupostos neles contidos. E já se assinalou que essa transformação não sucede na generalidade das situações: segundo se supõe, a grande maioria dos documentos de livrança emitidos nunca atinge a fase da livrança título de crédito cambiário. Isto quer dizer que, dentro da figura das livranças em branco, elas são, adicionalmente, livranças em branco especiais: falta um elemento para a sua perfeição jurídica e esta situação de imperfeição não se apresenta apenas transitória ou passageira – pode tornar-se definitiva, sendo este desfecho, na prática, a regra. [5] Na LULL, acerca da figura, só existe o artigo 10, que pressupõe um título circulante e, pelo menos como elemento característico, um acordo de preenchimento, a circulação do mesmo por endosso e a inobservância do acordo (preenchimento indevido ou não autorizado, em si mesmo ou nos seus termos). Título circulante que, dada a assinalada função sócio-económica de garantia, não corresponde ao figurino típico das livranças em branco subscritas pelas sociedades e avalizadas pelos sócios; pelo que o artigo se mostra pouco relevante, ou mesmo irrelevante, para a generalidade dos problemas específicos das presentes livranças em branco, enquanto conservarem esta condição.

[6] Em consonância com o que antecede - mormente a não qualificação legal dos documentos de livrança em branco como livranças (títulos de crédito cambiários) - o aval em sentido técnico, ou aval cambiário, enquanto garantia regulada na LULL (em especial nos arts. 30 a 32), com as características que correntemente lhe são reconhecidas da independência e autonomia, da irrevogabilidade e incondicionabilidade e ainda, porventura, da abstração, é necessariamente uma garantia de pagamento de uma quantia certa e determinada, em tempo e local determinados (ou, sendo o título à vista, dentro de certo prazo), aposta num título de crédito cambiário (que tem que cumprir os requisitos dos arts. 1 ou 75 da LULL). A declaração de aval aposta por um sócio num documento de livrança emitido em branco pela sociedade a que pertence não é juridicamente um aval, mas um pré-aval, donde decorre uma vinculação jurídica preliminar, pré-cambiária, cartularmente incompleta, estando naturalmente sujeita a regras diferentes das que regem o aval cambiário; regras que importa determinar, tendo em conta que a constituição da livrança título de crédito é um dado futuro e meramente eventual (recorda-se que a generalidade dos documentos de livrança emitidos pelas sociedades não chega a atingir a condição de livrança)[i]. [7] Distinguem-se, assim, 3 situações, a que correspondem três tipos de vinculação jurídica distintos: (i) aquela em que existe apenas um documento de livrança em branco com apostas assinaturas de aval, que o portador está autorizado a transformar numa livrança, elevando desse modo igualmente as declarações de aval à condição jurídica de avales cambiários, ao abrigo de um acordo de preenchimento (vinculação jurídica de pré-aval[ii]); (ii) aquela em que já existe uma livrança título de crédito cambiário, isto é, um documento que tem inscrita uma concreta promessa cambiária de pagamento de certa importância nos termos do artigo 75 da LULL (eventualmente «integrado» nos termos do artigo 76) e concretas garantias desse pagamento (avales) – situação, como se observou, apenas verificável num número limitado de documentos de livrança emitidos; (iii) e aquela em que a livrança foi transmitida, com os avales, por endosso a terceiro, que, estando de boa fé diligente, é protegido contra a exceção de eventual vício de «preenchimento abusivo» ou não autorizado – situação excecional, de muito difícil ocorrência em relação aos documentos de livrança emitidos pelas sociedades a favor dos bancos que as financiam e, pelo menos em geral, envolvendo um comportamento do financiador endossante contrário à boa fé. Em rigor, as livranças em causa deveriam ter aposta uma cláusula não à ordem. Não sendo esse o caso, verifica-se o risco específico do preenchimento não autorizado (ou «abusivo») inoponível a adquirente de boa fé sem culpa grave (desconhecedor, sem culpa grave, do vício do abuso), o que justifica um especial rigor no estabelecimento das condições de validade do título e dos avales, bem como das assinaladas situações jurídicas prodrómicas que neles se podem converter pela simples ação do portador.[iii]

[8] Para o negócio jurídico de emissão do documento de livrança em branco, com a correspondente obrigação do subscritor-emitente, ter um objeto determinável e para a definição deste – juntamente com a elevação do documento e da obrigação à condição jurídica de negócio e obrigação cambiários, sujeitos ao regime de rigor da LULL - não ficar sujeita ao poder arbitrário de um terceiro (portador do documento), torna-se necessário um pacto de preenchimento, expresso ou tácito, entre esse emitente e o tomador do documento, que regule o exercício do «poder de facto» detido por este, juridificando-o[iv]. De modo que a vinculação preliminar aqui descortinável resulta do conjunto formado pelo documento e por esse acordo, via de regra moldado pela relação fundamental de financiamento e com frequência inserido formalmente no contrato que rege essa relação fundamental.

[9] Também as pré-garantias de aval, enquanto vinculações preliminares convertíveis em avales, carecem de um objeto determinável (art. 280.1 do CC); ou seja, precisam de um pacto de preenchimento, expresso ou tácito, que permita a definição desse objeto. Este tanto pode ser um acordo pessoal, à margem do documento de livrança, celebrado diretamente entre os respetivos autores, o banco financiador que os requer e/ou a sociedade avalizada, como ser constituído pelo pacto de preenchimento relativo a esse documento de livrança. [10] Em princípio, o objeto da garantia afere-se por este último pacto. Mas nada impede, designadamente, a celebração entre o pré-avalista e o tomador do documento de livrança de um acordo, também expresso ou tácito, no qual se definam as condições em que o primeiro autoriza o segundo a preenchê-lo, tornando-o uma livrança, com o seu aval nela aposto. [11] Além disso, o pré-aval está sujeito às regras gerais de interpretação dos negócios jurídicos, seja a interpretação stricto sensu (art. 236 a 238 do CC), seja a interpretação complementadora (art. 239 do CC); sendo através delas que, juntamente com o que tenha sido adicionalmente acordado, se define o sentido e alcance da vinculação do seu autor. E, neste contexto, assume especial relevância a qualidade de sócio dos dadores de aval, em atenção à qual a prestação da garantia é tipicamente exigida e o respetivo autor aceita prestá-la; havendo portanto, em princípio, segundo o normal entendimento das coisas, uma ligação estreita entre elas, determinante para aquela interpretação, mormente em face do financiador portador do documento de livrança, destinatário direto das declarações de garantia. Quando se verifica o preenchimento do título e surgem os avales, estes estão sujeitos a uma interpretação ainda mais objetivista, valendo com o sentido que um normal participante no tráfico cambiário lhes daria[v].

[12] O pacto de preenchimento, enquanto destinado a completar o documento de livrança, transformando-o num título de crédito obrigacional, respeita à própria génese e conformação do título, não podendo ver-se como um simples acordo extracartular. Nessa medida, opõe-se em princípio a todos os subscritores, incluindo os avalistas, e ao portador (neste caso, dentro dos limites do artigo 10 da LULL), podendo também ser invocado pelos avalistas perante este.

[13] Porém, a vinculação dos pré-avalistas através do pacto de preenchimento, decorrente da aposição no documento de livrança em branco das respetivas assinaturas como avalistas, por um lado, deve considerar-se sempre limitada pelo sentido a atribuir ao seu negócio jurídico, segundo as assinaladas regras da interpretação e integração dos negócios jurídicos (cfr. «supra», 9). Por outro lado, no que respeita aos avalistas comuns e aos avalistas sócios (minoritários), considerados individualmente, assumem, ainda, especial relevo os requisitos da determinabilidade suficiente do objeto da sua garantia e da correspondente não sujeição ao poder ilimitado de terceiros, ainda que um deles seja a sua sociedade (cfr. o art. 280 do CC). De facto, a responsabilidade assumida – de resto agravada em virtude do artigo 10 da LULL – deve ser abarcável; de contrário, não existe um mínimo de racionalidade necessário para a vinculação jurídica. Tal requisito não se encontra, sem mais, preenchido se o pacto de preenchimento tiver um caráter aberto, sem a definição, pelo menos, de um valor máximo de responsabilidade e das fontes desta. Como o não está se o pacto puder ser modificado, designadamente, por ampliação da relação subjacente, sem o consentimento dos avalistas e com eficácia face a eles. O mesmo acontece se faltar a fixação de um prazo de duração da vinculação. Este aspeto pode, no entanto, ser substancialmente resolvido através do reconhecimento ao pré-avalista de um direito de denúncia do pré-aval enquanto garantia de cobertura da relação de negócios existente entre a sua sociedade e o financiador destinatário da garantia, especificando o valor da dívida existente nesse momento e limitando o objeto do pré-aval a esse valor.

[14] Importa ter presentes as 3 situações assinaladas. O aval cambiário é sempre uma garantia relativa a um valor pecuniário determinado. O pré-aval, em especial o aposto pelos sócios de uma sociedade em livrança em branco emitida pela respetiva sociedade, é tipicamente uma garantia de cobertura de certa relação de negócios, estabelecida entre a sociedade e um financiador da mesma, com as dívidas dela emergentes; ou, noutra perspetiva, é uma garantia das dívidas decorrentes dessa relação de negócios. [15] Na verdade, quando a livrança em branco respeita a um negócio determinado – um concreto contrato de leasing ou certo mútuo – o objeto de referência e valor máximo de responsabilidade potencial do dador de aval encontram-se pré-definidos; devendo o financiador poder contar com a plena cobertura do seu crédito. A situação de vinculação decorrente do pré-aval apresenta aí uma definição, em certo sentido, equiparável à de um aval. [16] Quando a livrança em branco respeita genericamente (i) a uma conta-corrente associada a um contrato de factoring, a um contrato-quadro de desconto de títulos ou relativo a instrumentos financeiros, a um contrato de abertura de crédito em conta-corrente com cláusula «revolving», etc., via de regra contratos de duração indeterminada ou concluídos por certo prazo renovável (sem o consentimento dos avalistas), ou respeita (ii) a uma conta na qual se repercutem os resultados de uma pluralidade de contratos deste tipo, haverá um pacto de preenchimento aberto, cobrindo o pré-aval a relação de negócios desse modo estabelecida entre a sociedade e o seu financiador, com todas as responsabilidades daí advenientes. É em relação a esta vinculação pré-cambiária que importa determinar, por aplicação das referidas as regras de interpretação e integração, o sentido do respetivo negócio constitutivo e definir as condições de validade do mesmo.

[17] Tipicamente, se um sócio apõe uma declaração de aval numa livrança em branco subscrita pela sua sociedade a favor de um financiador, fá-lo na qualidade de sócio: é esse o significado razoável da exigência do aval por parte do financiador e é esse também o sentido que um sócio normal atribuirá a essa exigência e à sua declaração de aval. Nessa medida, perdendo o pré-avalista a qualidade de sócio, falta, em princípio, no último grupo de situações assinalado [cfr. o nº 16], justificação para o mesmo continuar a cobrir a existente relação de negócios entre a sociedade e o respetivo financiador. O sentido normal da vinculação por aval, neste contexto, é o da cessação da cobertura dessa relação de negócios para o futuro, especificando-se o objeto da garantia, isto é, passando o pré-aval a cobrir apenas a dívida existente nessa altura.

O texto a seguir, que serviu de base à minha participação nas I Jornadas de Direito das Garantias que, sob a coordenação científica dos Profs. Doutor António Menezes Cordeiro e Doutor Januário Gomes, tiveram lugar na FDL no dia 19 do corrente mês de novembro de 2015, ocupa-se deste tema candente. Com ele, pretende-se, igualmente, homenagear um dos professores que, enquanto aluno desta Escola, mais me marcaram – o Dr. Mário Esteves de Oliveira -, destinando-se a um livro em sua honra.

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Sumário: A - Aval em letra ou livrança (completa) – p. 11; B - Aval de sócio em livrança subscrita e emitida em branco pela sociedade – p. 16; C - Aval em livrança em branco e perda da qualidade de sócio. Limitação do objeto da garantia – p. 22; DDireito à redução do objeto da garantia – p. 31; E - As livranças em causa como títulos não destinados à circulação – p. 34

 

Continua a haver uma abundante jurisprudência acerca do aval cambiário, sendo em grande número os problemas que permanecem controvertidos. Salienta-se, no entanto, a jurisprudência relativa aos avales apostos em livranças em branco, mormente quando o subscritor-emitente da livrança é uma sociedade por quotas ou uma sociedade anónima fechada e o aval é nelas aposto por sócios da mesma. Enunciam-se em seguida algumas questões.

I) Que sentido tem a aposição de uma assinatura de aval em livrança em branco emitida por certa sociedade por quotas ou anónima a favor de um financiador desta que “exige” como condição da celebração de determinado negócio de financiamento a entrega dessa livrança com os avales dos sócios dessa sociedade – via de regra, sócios-gerentes ou administradores? Que função se destina a cumprir tal livrança? É expectável que o financiador-portador venha a negociá-la, nomeadamente descontando-a numa outra Instituição de crédito (IC)?

A prestação do aval num tal documento em branco possui o mesmo significado que a entrega por parte de alguém de uma letra ou livrança[vi] após ter nela aposto o seu aval?[vii]

II) Que sentido tem ainda para os avalistas essa assinatura da livrança em branco (ou já completa) quando todos os sócios a assinam, designadamente sob a inscrição única «por aval à subscritora», «bom para aval à subscritora» ou outra congénere? Nas relações entre eles, atuam de forma «coletiva», solidária, ou cada um por si, de forma independente?[viii]

III) Vindo um avalista a ser acionado, pode o mesmo invocar a exceção de violação do pacto de preenchimento? Será esta uma mera exceção pessoal?[ix]

IV) Se um avalista perde a qualidade de sócio – por morte, alienação da participação, exoneração, exclusão, amortização forçada das quotas ou ações, etc. - deve entender-se que ele (ou em caso de morte os seus sucessores) continua(m) a cobrir, com o seu aval, a relação de negócios existente entre a sociedade subscritora da livrança e a entidade financiadora que a detém, com as dívidas contraídas após essa ocorrência? Por tempo ilimitado? E sem limite de valor? Apesar de ter perdido o interesse e o, maior ou menor, poder de influência que detinha na sociedade? Que pode justificar uma garantia com esse objeto e duração? Uma eventual disposição contratual nesse sentido contida nas CCG do financiamento é válida, em especial quando o sócio que sai é um particular pessoa singular?

Acerca deste último grupo de questões, pronunciou-se, em parte, o STJ no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2013, de 11.12.2012[x]. Posteriormente, podem indicar-se, com especial interesse, o Acórdão de 12.11.2013[xi] e o Acórdão de 11.09.2014[xii]. Procede-se em seguida a um breve apontamento sobre o tema, deixando para outra altura um tratamento mais aprofundado do conjunto das questões enunciadas.

Há cerca de 20 anos, publicámos um estudo sobre a fiança geral (fiança global ou omnibus), em que chamámos a atenção para a especificidade de tais fianças, quando dadas por sócios (gerentes ou administradores) a favor das suas sociedades, contrariando a tendência que então se desenhava na jurisprudência no sentido de uma indiscriminada consideração da mesma como inválida[xiii], embora com decisões em sentido oposto, donde resultou o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2001[xiv]. Seguiu-se um outro relativo ao aval e à fiança gerais[xv]. O sentido do texto de hoje procura novamente chamar a atenção para tais especificidades, em relação aos avales apostos por sócios de certa sociedade em livrança em branco subscrita e emitida por esta a favor de um financiador; considerando especificamente as consequências da perda da qualidade de sócio e defendendo, para as situações típicas, um princípio de limitação da responsabilidade do garante ao valor em dívida no momento em que perde a qualidade de sócio. Dissentindo assim de uma importante corrente jurisprudencial que rejeita tal limitação.

 

A - Aval em letra ou livrança (completa[xvi])

 

1. Nos termos do artigo 30 I da LULL[xvii], o avalista garante o pagamento da letra; e, segundo os artigos 31 IV e 32 I, a garantia está ligada a uma operação cambiária principal de referência (saque, aceite ou endosso) - «acessoriedade típica» (Rossi, Paulo Sendin[xviii]) - embora seja dela substancialmente independente (arts. 7 e 32 II). Quer isto dizer: ao devolver voluntariamente uma letra em que figura como avalista, a pessoa em causa (i) assegura ao portador cartularmente legitimado[xix] da mesma que, se este a apresentar pontualmente a pagamento ao destinatário da ordem de pagar nela contida (o sacado[xx]) o pagamento não lhe será recusado (art. 30 I); (ii) assumindo[xxi] tal posição no título em atenção ao autor da operação avalizada[xxii], pela confiança que este lhe merece[xxiii], inserindo-se por isso na cadeia cambiária a par dele (arts. 31 IV e 32 I)[xxiv].

Se o resultado voluntariamente garantido pelo avalista – que também é legalmente garantido pelo sacador e eventuais endossantes e eventualmente prometido pelo sacado (assumindo desse modo a qualidade de aceitante) - não se produzir, verificados os demais pressupostos legais[xxv], a letra, que até aí era um título circulante (destinado a circular – arts. 11 ss) e continha uma ordem de pagamento garantida e eventualmente aceite[xxvi], converte-se num título puramente obrigacional a liquidar (destinado a ser liquidado – cfr. o art. 20), contendo obrigações de regresso dos subscritores (arts. 47ss)[xxvii]. De tal modo que, via de regra, não compensa subscrever e utilizar uma letra se não houver a fundada expectativa de ela vir a ser paga pelo sacado no vencimento[xxviii].

 

2. Transpondo este regime para a livrança (cfr. o art. 77 da LULL) - e pensando no caso de um aval prestado por honra do respetivo subscritor/emitente, que promete pagar o valor inscrito no título (art. 75) -, o avalista, em atenção a este seu avalizado (arts. 31 IV e 32 I/art. 77) mas de forma independente (arts. 32 II e 7/art. 77), garante ao portador cartularmente legitimado que, se apresentar o título a pagamento a tal subscritor, no vencimento, receberá dele[xxix] esse pagamento (art. 30 I/art. 77). Caso o resultado prometido pelo subscritor e garantido pelo avalista não se produza, verificados os demais pressupostos da LULL, todos os que nela tenham a sua assinatura[xxx] ficam responsáveis pelo seu pagamento de regresso (arts. 47ss). Na falta de tais pressupostos, o título, em rigor, apenas documenta a obrigação do subscritor (art. 75; cfr. arts. 53 e 77), mas a orientação de largo dominante é no sentido de que um avalista como o presente também é obrigado[xxxi].

A garantia do avalista – e portanto a sua responsabilidade - é autónoma (arts. 7, 32 II e 17; cfr. o art. 77). Se o ato é ainda qualificável como abstrato ou não mostra-se um problema distinto, que pode discutir-se. A LULL não impõe que assim seja e isso também não parece resultar da sua inserção no ordenamento jurídico português; mas, em última análise, tudo depende da conceção de abstração perfilhada[xxxii].

Embora a LULL não o diga expressamente[xxxiii], enquanto garantia cambiária operacional aposta no título (isto é, conexa com uma operação «principal», do avalizado: cfr. os arts. 31 IV e 32 I), pode afirmar-se, ainda, um seu caráter incondicionável; e, após ter-se constituído ou tornado eficaz com a entrega do documento avalizado, a sua natureza irrevogável[xxxiv]. Mas, tal como sucede com o aceite (art. 26 I), a garantia pode ficar limitada apenas a uma parte do valor do título (art. 30 I). E nada impede que essa ou outra limitação resulte, em relação a certo interveniente e/ ou portador do título, de uma convenção extracartular, expressa ou tácita – originando então, em relação a ele, uma exceção pessoal do avalista: ou seja, vindo essa pessoa a ser portadora do título e a fazer valer o direito nele inscrito, desse avalista não pode exigir mais do que o valor entre eles acordado e nas condições ajustadas.

Cumprindo o título todos os requisitos dos artigos 1 (letra) e 75 (livrança) da LULL, aquilo que o avalista garante encontra-se cartularmente predefinido. Embora corra um risco maior ou menor, porque os títulos cambiários têm uma base fiduciária e nessa medida envolvem risco, ele conhece os precisos termos da responsabilidade em que pode vir a incorrer; sendo a definição precisa daquilo que garante que permite a sua sujeição ao chamado «rigor cambiário».

Todo o regime da LULL está concebido para tornar a letra e a livrança um título de crédito negociável, especialmente apto para a circulação e destinado a circular[xxxv]. No sistema da Lei, o aval, com o rigor próprio de uma garantia substancialmente autónoma, insere-se nessa lógica circulante, reforçando o crédito do título com vista conferir-lhe aptidão circulatória ou a melhorá-la. Pode o título cumprir, na prática, outras funções, independentes desta aptidão, mormente de garantia; e o aval desempenhar aí um papel tão ou mais fundamental. Mas, legalmente, subsiste sempre uma correlação estreita entre um princípio de literalidade e de formalidade estrita do título e o indicado rigor cambiário, que atinge designadamente os subscritores, incluindo avalistas.

 

B - Aval de sócio em livrança subscrita e emitida em branco pela sociedade

 

3. No caso das livranças subscritas e emitidas em branco, por sociedades por quotas ou anónimas, e avalizadas em branco pelos respetivos sócios[xxxvi], a favor de um financiador da sociedade[xxxvii], a situação mostra-se substancialmente diferente; muito diferente, mesmo[xxxviii]. Via de regra, trata-se de documentos sem a indicação do valor prometido pelo subscritor (em branco quanto ao montante)[xxxix] e sem indicação do momento em que tal valor deve ser oferecido ou pode ser exigido (em branco quanto ao vencimento)[xl].

A própria LULL afirma expressamente que tais documentos de livrança, enquanto não tiverem inscrito o montante a pagar, não valem como livranças (art. 76[xli]) - isto é, não são títulos de crédito (especificamente títulos cambiários), sujeitos ao regime nela estabelecido. E, portanto, as declarações de aval também não valem, em termos técnico-jurídicos, como avales, com as características e o regime a que a LULL os sujeita. Quando muito, poderá falar-se em títulos provisoriamente incompletos, em livranças em formação ou pré-livranças, e em avales em formação ou pré-avales[xlii]; mas a ideia de provisoriedade nem sequer é totalmente correta, porque a grande maioria dos documentos de livrança em apreço nunca chega a converter-se em livrança, porque os contratos subjacentes são pontualmente cumpridos.

Mais: a LULL quase não regula a figura, cujo recorte depende assim substancialmente dos vários ordenamentos nacionais. A única norma existente é a do artigo 10 (aplicável às livranças por força do art. 77), claramente destinada a proteger o título enquanto título circulante, acautelando o interesse de potenciais adquirentes cartulares de boa fé. Mas este preceito não nos interessa, pelo menos diretamente, uma vez que as livranças de que tratamos são reconhecidamente, como veremos, livranças de caução ou garantia; não títulos destinados à circulação[xliii].

 

4. Além disso, contendo o documento uma promessa de pagamento e garantias de pagamento sem indicação do montante, se não houvesse elementos adicionais capazes de permitir a determinação desse objeto da obrigação e das garantias, tanto o negócio jurídico de constituição da dívida, do subscritor-emitente, como os negócios constitutivos das garantias[xliv], dos avalistas, seriam nulos, nos termos gerais (art. 280.1 do CC). Daí a essencialidade dos acordos ou pactos de preenchimento a que alude o artigo 10 da LULL[xlv].

Na verdade, além de por eles se saber que o documento não pretende ser imediatamente pagável à vista (embora, tendo em conta o art. 76, pudesse aparecer como tal), é através deles (i) que o elemento montante a pagar, essencial tanto para a promessa como para as garantias, haverá de determinar-se e é através deles (iii) que o portador ficará com o poder de completar o documento, transformando-o em livrança e fazendo desse modo nascer a obrigação (do subscritor-emitente) e as garantias cambiárias (dos avalistas); devendo, ainda, tal poder ser exercido dentro dos limites da autorização conferida.

Aqui, importa fazer uma distinção. Quem tem poder para configurar ou conformar a livrança – enquanto título de crédito cambiário - é o subscritor (emitente). Ficando o documento de livrança incompleto, é este, portanto, que confere ao portador que o recebe o poder jurídico de o completar com o elemento em falta[xlvi].

Isto quer dizer duas coisas. Primeira: o pacto de preenchimento, em sentido próprio, é apenas aquele que é celebrado entre o subscritor-emitente e o tomador/portador a quem a livrança em branco é entregue[xlvii]. Segunda: tal pacto de preenchimento não é um mero acordo extracambiário, gerador de simples exceções pessoais oponíveis entre os seus subscritores ou partes no mesmo. Com efeito, é através dele que o portador recebe do subscritor-emitente o poder jurídico de fazer nascer a livrança como tal, enquanto título cambiário, bem como a obrigação e as garantias cambiárias. Logo, é um acordo que atribui ao portador o poder de conformar o próprio título e define os limites do exercício desse poder. Com uma ulterior consequência: o portador autorizado configura o título com eficácia face a todos os subscritores, incluindo os avalistas; e, como reverso da medalha, a violação do acordo faz nascer uma exceção relativa ao próprio título, isto é, oponível, por qualquer subscritor da livrança, incluindo os avalistas, ao portador que é parte nesse acordo e a qualquer portador subsequente (se cartularmente legitimado, dentro dos limites do art. 10)[xlviii].

Vendo as coisas de outro ângulo. Assinalou-se acima que, numa letra ou livrança título de crédito cambiário (valendo como tal nos termos dos arts. 2 e 76), o avalista garante ao portador cartularmente legitimado que, se ele apresentar pontualmente o título, no vencimento, a quem está nele indicado para o pagar, o pagamento não será recusado. A posição jurídica assumida pelo avalista de um documento de livrança em branco é, em conformidade com a natureza desta, distinta.

Seguindo a mesma lógica da livrança-título de crédito cambiário, ele garantirá ao portador que, (i) se este completar tal documento em conformidade com o acordo de preenchimento, fazendo dele uma livrança, e (ii) o apresentar pontualmente a pagamento assim configurado, o pagamento não lhe será recusado; tornando-se responsável de regresso se o resultado garantido não se produzir, desde que se verifiquem os demais pressupostos do regresso.

Mostra-se, de resto, compreensível que assim seja. Na verdade, só é, em geral, expectável que o subscritor de um documento de livrança em branco venha a pagar a livrança já completa, pontualmente, no vencimento – resultado garantido pelos avalistas – se o acordo de preenchimento tiver sido observado. O aval prestado nestas condições pressupõe naturalmente que o portador configure o título com respeito pelo pacto de preenchimento celebrado com o subscritor. Ninguém que atue com um mínimo de racionalidade aceita, em geral, garantir o pagamento pontual do título, por parte do seu criador e devedor principal, se o respetivo pacto conformador, que este devedor pode opor ao portador dentro dos limites do artigo 10 da LULL, não dever ser respeitado, também em relação a si. E um declaratário normal (de boa fé e razoável) colocado na posição do destinatário entenderá assim as coisas: ou seja, compreenderá que o avalista o autoriza a preencher o documento de livrança em branco com o seu aval, transformando-a em título de crédito cambiário, nessas condições e não noutras. Sendo, em geral, injustificado um distinto entendimento desse destinatário[xlix].

 

5. Todavia, o pacto de preenchimento não é tudo[l]. Como se assinalou, por um lado, nada impede que os avalistas limitem, no próprio título, o valor garantido (art. 30 I). Por outro lado, nada obsta a que, extracartularmente, procedam a igual limitação e/ou estabeleçam outros termos ou condições do exercício ou acionamento da garantia prestada – que tanto lhes podem ser favoráveis, como desfavoráveis.

Por exemplo, quanto a estas últimas condições desfavoráveis, mostra-se concebível que os avalistas acordem eventualmente com o destinatário da livrança em prestar-lhe uma garantia do pagamento desta em face da simples recusa de tal pagamento por parte do subscritor, sem poderem invocar a exceção de preenchimento abusivo. Não é a situação normal e natural, mas, dentro dos limites gerais da vinculação por garantia, é uma hipótese plausível.

Quanto ao estabelecimento de limitações favoráveis aos avalistas, o panorama apresenta-se mais diferenciado. Vejamos.

Numa letra ou livrança completas, o avalista limita-se, via de regra, a aderir ao conteúdo constante do título, sem exprimir quaisquer reservas destinadas a valer em relação ao seu destinatário[li] e sem consignar no documento qualquer limitação quantitativa da garantia. De facto, a não ser assim, poderia estar a pôr em causa o crédito do título, a confiança no seu pagamento pontual, em vez de o reforçar[lii].

Numa livrança em branco (ainda em formação ou incompleta), já se viu que quem tem competência para autorizar a sua transformação em livrança em sentido jurídico, completando o documento com o elemento ou os elementos em falta, é o respetivo subscritor-emitente, conferindo ele tal poder ao portador a quem entrega o documento, através do acordo de preenchimento. Um preenchimento nesses termos, com respeito pelo acordo, é, portanto, em princípio, oponível aos avalistas. A aposição da sua assinatura no documento de livrança tem implícita uma autorização de preenchimento do mesmo com a declaração de aval nele inscrita, nessas condições; e, legalmente, ela vale com esse sentido, em face de um portador do título em geral, uma vez que estamos no domínio da conformação do título. Rege o artigo 10.

Todavia, em primeiro, nada impede que, complementarmente, entre o avalista e um portador da livrança – via de regra, o primeiro e único destinatário da mesma – seja concluído, expressa ou tacitamente, um acordo relativo à prestação do aval[liii]; que o avalista, nas relações entre eles, poderá, naturalmente, invocar. Em face de eventual portador mediato, estranho ao acordo, vale a regra do artigo 17.

Em segundo lugar, pode não haver acordo, mas o aval ser prestado sob determinados pressupostos, essenciais para o seu autor, e essa essencialidade ser reconhecida pelo portador do título – em geral o primeiro e único destinatário do mesmo e do aval. Ou, pelo menos, podem tais pressupostos ser pertinentes e conhecidos ou reconhecíveis por ele dentro de padrões de diligência (profissional) média. De tal modo, que um acionamento da garantia com desconsideração dos mesmos se apresente contrário à boa fé.

Em terceiro lugar, a aposição de uma assinatura de aval em livrança em branco está sujeita a interpretação, simples e complementadora, nos termos gerais. Neste domínio se situam questões como a de saber se estamos perante uma declaração negocial revogável ou irrevogável (e no interesse de quem será a irrevogabilidade: sociedade e/ou IC)[liv]. Mesmo entendendo que o aval cambiário é irrevogável, incondicionável e sujeito ao princípio da literalidade, isso não é assim com a subscrição de uma declaração de aval em livrança em branco enquanto esta situação se mantiver.

Em quarto lugar, aplicam-se aqui integralmente as regras nacionais relativas à vinculação por garantia, incluindo as respeitantes à sua validade[lv]. A circunstância de o aval cambiário ser eventualmente qualificável como um ato abstrato mostra-se, para o efeito, irrelevante; podendo, inclusive, afirmar-se que, se é assim, então mais rigorosas devem ser as suas condições legais de validade. Além disso, colocando-se o problema antes do preenchimento do título, em que ainda não há um aval cambiário, a questão não se põe nesses termos.

 

C - Aval em livrança em branco e perda da qualidade de sócio. Limitação do objeto da garantia

 

6. Entre os aludidos pressupostos do aval, sobressai o da qualidade de sócio do avalista. Os avales em apreciação são tipicamente prestados pelos sócios – em regra, sócios gerentes ou administradores – enquanto tais, na qualidade de membros da sociedade e, através dela, de beneficiários indiretos do financiamento que à mesma é concedido[lvi].

De facto, é esse o sentido normal da declaração de aval. Por um lado, corresponde tipicamente à vontade real dos avalistas e esta é reconhecível por qualquer financiador profissional como os bancos. Por outro lado, é esse o sentido que plausivelmente lhe dará um declaratário normal ou destinatário típico da mesma (e portador da livrança), profissionalmente diligente, razoável e de boa fé (atuando com natural prudência e racionalidade económica, o que o leva a atender àquela vontade reconhecível, sem desconsiderar as legítimas expectativas do autor da declaração)[lvii].

Mas mais do que isso. É esse também o sentido fundamental da exigência dos avales por parte dos financiadores.

Na verdade, mais do que adicionais patrimónios de garantia, a estes financiadores interessa o comportamento cumpridor da sociedade financiada. Quando uma instituição de crédito concede um financiamento a certa sociedade, fá-lo primordialmente em atenção à sua capacidade de gerar receitas para lhe pagar pontualmente e à presumida vontade de cumprir o acordado[lviii]. Mas tem igualmente presente que, em boa medida, a sociedade são os seus sócios, num grande número de casos também gerentes ou administradores, a quem pertence o respetivo valor líquido ou residual (após dedução do passivo), que surgem como senhores do seu destino e que determinam o seu comportamento.

A exigência dos avales explica-se, antes de mais, porque a IC financiadora quer comprometer os sócios com uma gestão e um comportamento da sua sociedade favoráveis ao cumprimento do contrato de financiamento. E é também em atenção à respetiva qualidade de sócios - a quem pertence o valor da sociedade e nessa medida beneficiam dos financiamentos a ela concedidos - que os mesmos aceitam presumivelmente envolver-se, cobrindo com a aposição da sua assinatura de avalistas no documento de livrança em branco, convertível em aval em caso de incumprimento: (i) as responsabilidades emergentes de um concreto negócio, (ii) a relação de negócios estabelecida entre a IC e a sociedade ou (iii) um segmento desta relação de negócios, com as responsabilidades delas derivadas.

Vindo tal qualidade de sócio a faltar, a cobertura das responsabilidades constituídas, à data da comunicação da saída, em princípio, não se discute. É para isso que serve, a final, a livrança com os avales: para efetivar de maneira eficiente e melhorada tais responsabilidades, se vier a ocorrer um incumprimento contratual sério (o que, repete-se, é uma situação anómala e, felizmente, excecional). Está em causa um valor de que a sociedade e o sócio, enquanto membro dela, beneficiaram. Logo a garantia mantém-se quanto a elas.

Tratamento distinto merece, porém, a cobertura da relação de negócios que perdura entre a sociedade e a IC, com as inerentes responsabilidades futuras da sociedade já sem o sócio. Na verdade, quanto a esta, a perda da qualidade de sócio faz desaparecer, em princípio, a razão de ser da exigência da garantia (por parte dos financiadores) e da correspondente vinculação (por parte dos avalistas). Isso mesmo resulta do regime legal aplicável à saída de um sócio de responsabilidade ilimitada (art. do 175.2 do CSC) ou com complementar responsabilidade limitada de índole estatutária perante os credores (art. 198 do CSC)[lix]. A circunstância de as sociedades por quotas e anónimas serem legalmente organizações produtivas de membros variáveis, sendo este um dado com que todos têm que contar, financiadores incluídos, reforça esta conclusão.

 

7. Vejamos melhor este tópico, considerando, antes de mais, o problema sob a ótica dos financiadores. Na fiança tradicional, o fiador é um terceiro, que vem reforçar ou conferir crédito negocial ao afiançado, acrescentando-lhe um património de garantia; e na conceção corrente do aval cambiário (aposto em título completo), que vê nele uma garantia ou obrigação de garantia da obrigação do avalizado, a situação é semelhante. Na conceção do aval que, na linha do Prof. Sendin, entendemos estar presente na LULL (cfr. sobretudo os arts. 30 I e 32 II), o avalista reforça o crédito do título, enquanto título negociável, assegurando ao portador cartularmente legitimado que, atendendo à confiança que lhe merece o avalizado[lx], o título terá bom fim, isto é, será pago pontualmente no vencimento (pelo sacado/aceitante da letra ou pelo subscritor da livrança). Podendo, de resto, acrescentar-se que, numa operação de concessão de crédito a um particular (máxime, crédito ao consumo), com emissão de livrança em branco avalizada por terceiro, a situação ainda apresenta algumas semelhanças com as precedentes.

Porém, as coisas passam-se de maneira diferente nas típicas operações de financiamento bancário (ou de outras IC) a organizações produtivas com livranças em branco avalizadas pelos sócios. Sobretudo tratando-se de PMEs, como é o caso normal das sociedades por quotas e anónimas fechadas, em que avultam: (i) em primeiro lugar, a sua maior ou menor capacidade de gerar receitas suficientes para pagarem os compromissos assumidos; (ii) em segundo lugar, o papel que os sócios, em geral gerentes ou administradores (no todo ou em parte), podem ter na sua gestão e no seu comportamento, incluindo o respeitante a esses compromissos; (iii) em terceiro lugar, uma comum estrutura do capital desequilibrada, ou seja, um acentuado endividamento e um capital próprio relativamente pequeno[lxi].

No modelo legal destes tipos sociais, seria suposto a sociedade ter os meios próprios necessários[lxii] para – juntamente ou não com outros recursos económico-financeiros fornecidos pelos sócios sob a forma de suprimentos e/ou por terceiros - desenvolver a sua atividade, com responsabilidade limitada ao seu ativo (arts. 197.3 e 271 do CSC). Pertencendo o seu valor líquido ou residual aos sócios e podendo estes determinar em grande medida a sua gestão – sobretudo através das correntes qualidades de gerentes ou administradores -, no caso de possuir capital próprio num nível considerável, merecedor de ser preservado, haveria um incentivo natural para que a mesma fosse gerida de modo a assegurar pelo menos essa preservação; o que implica, antes de mais, ir cumprindo os compromissos que vai assumindo (mormente, ir pagando o que deve).

Por conseguinte, se esta fosse a situação real, os bancos e outros financiadores até poderiam, sobretudo para melhorar a sua posição processual, exigir a subscrição de livranças em branco[lxiii]. Mas não haveria, via de regra, justificação bastante para exigir, adicionalmente, a aposição nas mesmas de avales dos sócios.

Todavia, em Portugal, não é o que em geral acontece. Daí a exigência[lxiv] quase sistemática, por parte dos bancos, da subscrição de livranças em branco avalizadas pelos sócios. O objetivo primordial não é o de acrescentar ao património da sociedade outros patrimónios de garantia, executáveis em caso de incumprimento da sociedade devedora, mas o de se assegurarem que a sociedade será gerida de modo a honrar pontualmente os compromissos assumidos para com eles. Uma vez que o valor do capital próprio é insuficiente para levar a esse resultado, são exigidas garantias pessoais, forçando os sócios a comprometer-se pessoalmente com uma gestão da sociedade «amiga» dos credores cujos créditos garantem.

Noutros termos, os documentos de livrança em branco com apostas assinaturas de aval dos sócios são, acima de tudo, instrumentos de pressão, de índole compulsória, incidindo a pressão, em especial, sobre os sócios gerentes ou administradores. Apenas no caso excecional de tal mecanismo não funcionar é que tais documentos serão convertidos, com o seu preenchimento, em títulos de crédito cambiários e entrará em jogo a função secundária de garantia patrimonial destes, com a efetivação dos direitos nelas inscritos.

Duas notas mais. Primeira: o que acaba de expor-se explica-se porque a principal garantia dos credores de uma organização produtiva é uma espécie de «garantia económica», consistente na sua capacidade para gerar fluxos monetários suficientes para pagar o que vai devendo, à medida que as dívidas se vencem; não são as garantias patrimoniais civis, destinadas a funcionar apenas como último recurso, quando a «gestão solvente» e cumpridora da sociedade falha. Estamos perante uma lógica de índole económica, não estático-patrimonial.

Segunda: via de regra, o aval tem aqui uma feição distinta daquela que apresenta na LULL. De facto, no presente contexto, ele não tem tipicamente implícita nenhuma manifestação de confiança no pagamento pontual da livrança pela sociedade subscritora, no vencimento, mediante simples apresentação do título para o efeito. Se a sociedade não cumpriu o contrato fundamental, em regra, também não estará em condições de pagar a livrança. Nos casos excecionais[lxv] em que a livrança chega efetivamente a constituir-se como título de crédito cambiário, o aval surge, assim, como mais uma obrigação de pagar, a par da obrigação cambiária da sociedade[lxvi].

 

Em suma, no presente contexto, os financiadores, com vista ao objetivo primordial do cumprimento pontual dos contratos de financiamento celebrados com a sociedade, exigem que os respetivos sócios – enquanto titulares de participações na mesma[lxvii] que os tornam, também a eles, beneficiários do financiamento e enquanto pessoas capazes de determinar a sua gestão e o seu comportamento, incluindo no que toca aos compromissos assumidos – subscrevam a seu favor documentos de livrança em branco, na qualidade de avalistas, como forma de os levar a diligenciar para que a sua sociedade cumpra os compromissos assumidos, sob pena de, não acontecendo tal, virem a responder como avalistas pelo que a sociedade dever; sendo esta uma das condições fundamentais dos contratos de financiamento. Na base de tal exigência está, pois, a qualidade de sócio dos prestadores de aval, frequentemente acompanhada da qualidade de gerentes ou administradores. É ela que a justifica.

A livrança em branco avalizada e os respetivos avales cumprem assim duas funções típicas. A primordial, comum a todas elas e desempenhada especificamente pelo documento de livrança em branco com as assinaturas de aval, consiste em pressionar a sociedade a cumprir o contrato subjacente e, sobretudo, em pressionar os avalistas, atendendo ao interesse que têm na sociedade e ao poder de influência de que nela gozam, a fazer com que tal suceda[lxviii]. A segunda, limitada à minoria das situações em que tal mecanismo de pressão não foi eficaz, consiste em criar para o financiador, portador da livrança por ele completada ao abrigo do pacto de preenchimento, uma posição processualmente favorável e em minorar as consequências do incumprimento da sociedade devedora, fazendo nascer e acionando os avales.

Na sua grande maioria dos casos, os documentos de livrança em branco avalizados não chegam a converter-se em verdadeiras livranças – títulos de crédito cambiários; e, portanto, os avales também não chegam a constituir-se. Tudo se mantém num espécie de limbo ou plano virtual, a menos que ocorra um facto anómalo: o eventual «incumprimento» do contrato de financiamento, havendo valores em dívida[lxix].

Quer isto dizer que o centro de gravidade do fenómeno está no plano subjacente à livrança; não nesta e nos avales. A independência que caracteriza os títulos cambiários, perante as relações subjacentes aos mesmos, apenas se manifesta de forma secundária e, no caso dos avales, de um modo diferente daquele que está presente na LULL.

 

8. Vistas as coisas sob a ótica dos avalistas, é também em virtude da sua qualidade de sócios da sociedade financiada (a que se soma, num grande número de casos, a de gerentes ou administradores) que eles aceitam constituir-se como (potenciais) avalistas. Isto é assim porque, por um lado, eles são titulares do valor residual dessa sua sociedade e beneficiários do respetivo aviamento, para os quais contribui o financiamento solicitado; por outro lado, visto que se mostram detentores de um poder de influência (pelo menos coletivo) capaz de determinar a gestão e portanto também o comportamento contratual da sociedade devedora, sobretudo quando gerentes ou administradores; e, ainda, porque têm uma posição que lhes permite acompanhar e de algum modo controlar o nível de endividamento global da mesma sociedade.

Trata-se de uma circunstância sobejamente conhecida. E, em todo o caso, os financiadores da sociedade não podem ignorá-la, porque, em boa medida, é também ela que justifica a exigência, por si, dos avales.

 

9. Atentemos agora na perda da qualidade de sócio: por exoneração, exclusão, transmissão voluntária entre vivos a título singular da quota ou das ações (que, na falta de um direito geral de exoneração por justa causa[lxx], cumpre, em boa medida, uma função de substituto ou sucedâneo da exoneração), amortização forçada por outros motivos, etc. Terminada essa qualidade, decorre do exposto que, em princípio, desaparecem, para o futuro, os pressupostos da exigência do aval do sócio em causa pelas IC (perspetiva dos financiadores) e da prestação do mesmo por esse sócio (perspetiva dos avalistas), quanto à continuação da garantia de cobertura da relação de negócios subsistente entre o financiador e a sociedade financiada, relação essa da qual podem resultar novas dívidas[lxxi]. O que, por si, como solução de princípio e em certa medida, já justifica o reconhecimento ao avalista da possibilidade de se opor a tal continuação[lxxii].

Mas existe uma razão adicional para que o desaparecimento de tais pressupostos  possa ser oposto pelo avalista ao financiador portador da livrança. De facto, como é sobejamente sabido, as sociedades por quotas e anónimas, mesmo quando de restrita base social ou caráter familiar, são organizações produtivas de membros variáveis. Logo, salvo havendo uma cláusula do género da que se prevê no artigo 229, nº 5, alínea a), do CSC, o financiador também contará ou deverá contar com a variabilidade do seu elemento pessoal e a consequente perda, por parte do sócio que sai, do interesse e do maior ou menor poder de influência que determinaram não só a sua decisão de prestar o aval, mas também a correspondente exigência do mesmo.

Infere-se do que antecede que o princípio a reter deverá ser este: se um sócio sai da sociedade e a saída é comunicada a um financiador da sociedade, numa altura em que ainda não há uma livrança em sentido técnico, o financiador deve poder contar com a sua garantia para a dívida da sociedade existente, mas não com a cobertura de dívidas assumidas pela sociedade a partir dessa data. Se o financiador entende que, desse modo, a garantia se tornou insuficiente, colocando em perigo o recebimento do valor em dívida, pode, designadamente, pedir o reforço da mesma sob pena de cessar o financiamento e, em último recurso, de preencher a livrança e fazer valer os correspondentes direitos cambiários[lxxiii]. Se a insuficiência respeitar tão-só à cobertura do negócio que tem interesse em manter com a sociedade e às correspondentes dívidas futuras, cabe-lhe redimensionar ou reequacionar a relação de negócios em apreço, nomeadamente mediante acordo com a sociedade[lxxiv].

À mesma conclusão se chega vendo o problema sob a ótica dos avalistas. Na verdade, aceitando o avalista apor a sua assinatura na livrança em branco para viabilizar e/ou promover a relação de negócios da sua sociedade com a IC em causa – porque isso era do seu interesse enquanto sócio e porque tinha pelo menos alguma possibilidade de acompanhamento e influência na sociedade -, se perde a qualidade de sócio, essa razão de ser do seu ato desaparece quanto à cobertura da relação de negócios subsistente, entre a sociedade que já não é sua e a IC. Apenas quanto à dívida existente falta, em regra, fundamento para fazer cessar unilateralmente a garantia; embora possa obter, naturalmente, uma liberação negociada.

Importa, em todo o caso, fazer duas ressalvas. Primeira: as situações concretas são muito variadas e portanto o princípio enunciado apenas pode valer como uma diretriz de índole geral, tendo por base o fenómeno típico do financiamento das sociedades portuguesas[lxxv].

Segunda: dentro dos limites legais gerais – tendo em conta que a garantia do ex-sócio passará a ser uma garantia prestada a dívida de terceiro (deixando de ser, via de regra, uma garantia patrimonialmente interessada), que ninguém pode vincular-se por uma garantia geradora de uma responsabilidade potencial inabarcável, que ninguém pode ficar sujeito perante outrem a uma vinculação potestativa de duração e/ou objeto (valor) ilimitados, bem como o princípio da proibição os vínculos perpétuos, o regime das CCG, etc.[lxxvi] -, parece de admitir uma estipulação especial derrogatória de tal princípio. Ou seja, o avalista pode, em certas circunstâncias, vincular-se a manter a garantia de cobertura da relação de negócios subsistente.

 

Acresce o que se segue. Como se observou, o aval é, legalmente, uma garantia do pontual pagamento do título em que é aposto (art. 30 I) – necessariamente uma letra ou livrança que preencha os requisitos dos artigos 1 ou 75 da LULL[lxxvii], quer dizer, um título completo. Como se observou, o avalista garante ao portador cartularmente legitimado que, se ele o apresentar pontualmente a pagamento, no vencimento, o mesmo lhe será pago. Ou, na conceção dominante, é uma garantia de cumprimento da obrigação do avalizado (…mesmo que esta não exista).

Aplicando literalmente o artigo 30 I ao caso, dir-se-ia que o avalista garante ao portador do título que, (i) se ele o preencher em conformidade com o estabelecido, expressa ou tacitamente, no acordo de preenchimento celebrado com o subscritor-emitente e (ii) o apresentar pontualmente a pagamento, no vencimento, a esse o subscritor, o pagamento não lhe será recusado. Ficando responsável (de regresso) pelo pertinente valor do título se o resultado garantido não se vier a verificar.

Já se viu que a situação presente assume contornos especiais, donde decorre que o figurino do aval não é bem este, porque tipicamente não é expectável que a sociedade subscritora da livrança a venha a pagar. Porém, em nenhuma circunstância, ele pode ser visto como um mecanismo de cobertura da relação de negócios que uma instituição de crédito esteja interessada em manter com uma sociedade após a perda da qualidade de sócio pelo seu autor; impondo-lhe a manutenção dessa cobertura apesar desta perda. Pelo menos, não é isso o aval cambiário regulado na LULL. Nem é esse o sentido normal da vinculação assumida com a prestação do aval em livrança em branco, sem mais. O avalista pode, eventualmente, consentir em que tal aconteça, mas torna-se, então, necessária uma manifestação de vontade inequívoca nesse sentido.

 

D – Direito à redução do objeto da garantia

 

10. Concretizando melhor o que acaba de expor-se, realça-se, à cabeça, que a perda da qualidade de sócio, apesar de significar a insubsistência de um pressuposto da manutenção da garantia de cobertura da relação de negócios existente entre a IC e a sociedade, não opera automaticamente a cessação dessa cobertura. O que se justifica é reconhecer ao ex-sócio um direito de lhe pôr termo, limitando a sua responsabilidade ao valor que estiver em dívida, como se assinalou[lxxviii].

A perda da qualidade de sócio funciona como causa ou justificação do direito – de caráter negocial (apoiada na interpretação e integração da declaração de aval aposta no documento de livrança em branco, tendo designadamente em conta a sua finalidade, a razão que a justificou e a boa fé) e/ou de índole legal (resolução-redução por inexigibilidade, atendendo sobretudo à circunstância de o ex-sócio deixar de acompanhar a evolução da relação de negócios em apreço), que o ex-sócio exercerá ou não, como entender[lxxix].

 

11. No que respeita à forma de exercício do direito, coloca-se a questão de saber se a simples comunicação pelo sócio ao banco financiador e portador da livrança de que, por exemplo, cedeu a sua quota deve valer como tal; ou é necessária uma declaração expressa no sentido (i) de fazer cessar a garantia de cobertura da relação de negócios existente, limitando-a ao valor em dívida nessa altura, (ii) de se desvincular para o futuro, etc., usando fórmulas deste género ou semelhantes. Embora o assunto seja controvertido, não apenas em Portugal mas também no estrangeiro, mormente em França, consideramos que o sentido normal da comunicação é esse, ou seja, que ela contém uma declaração negocial com esse significado[lxxx].

 

12. Exercido o direito, o banco portador apenas fica autorizado a preencher a livrança, se tal vier a ser necessário, com o aval em causa, nesses termos restritos. E o dador do aval pode exigir-lhe que faça constar do título o montante máximo da sua garantia (por exemplo, anotando ao lado da sua assinatura «até ao montante x»).

Ainda que o não faça, o banco fica sujeito a que o avalista lhe oponha tal exceção de redução da garantia. Donde resulta que, se vier a endossar a livrança a terceiro sem o elucidar acerca do assunto, a exceção só será oponível a esse terceiro adquirente nos termos do artigo 17[lxxxi]; mas o banco endossante terá um comportamento contrário à boa fé, sendo obrigado a indemnizar o avalista pelo dano causado.

 

13. No caso de a relação de negócios coberta pela garantia ser uma relação duradoura, sem fixação de prazo ou com fixação de prazo renovável automaticamente, o sócio que apõe a sua assinatura no associado documento de livrança em branco, como avalista, tem, nos termos gerais, o direito de, unilateralmente e sem invocar causa justificativa («ad nutum»), declarar ao banco portador do documento de livrança que a sua garantia deixa de ter por objeto tal relação de negócios, passando a circunscrever-se à dívida existente nesse momento[lxxxii]. O que, em caso de cessação da qualidade de sócio, significa uma possibilidade de desvinculação (parcial) independente de se considerar que há justo fundamento para a mesma.

Duas ressalvas, no entanto. Primeira: mesmo quando ocorre a perda da qualidade de sócio, havendo um contrato renovável por períodos relativamente curtos, pode ser exigível ao sócio que exerça este direito sob a forma de uma oposição à renovação, quanto a si; em vez de exercer o direito referido no número anterior.

Segunda: se o direito de desvinculação parcial ad nutum for exercido por um sócio que conserva a qualidade de sócio, haverá que ver em que medida esse exercício é conforme à boa fé, levando em conta não apenas possíveis motivos subjetivos do avalista (por exemplo, afastamento da gerência), mas também a legítima expectativa do financiador. De facto, é plausível pensar que o financiamento, nos termos em que ocorreu, pressupunha a manutenção da garantia de cobertura enquanto os «dadores de aval» conservassem a sua qualidade de sócios. Nessa medida, pode entender-se que a qualidade de sócio é um pressuposto negocial bilateral.

 

E - As livranças em causa como títulos não destinados à circulação

 

14. Uma última nota. As livranças em causa também não são concebidas para circular[lxxxiii]. Apesar de via de regra lhes faltar uma cláusula «não à ordem», e de haver inclusive CCG de alguns bancos que preveem o seu possível endosso, mormente para desconto, a sua função sócio-económica típica é de garantia.

Na realidade, por um lado, quando ainda em branco, o título dificilmente é apto para desconto. E o seu eventual preenchimento surge, de um modo geral, em situações em que não se espera que a sociedade subscritora o pague - seja à simples apresentação, seja num dado prazo subsequente; logo, também fará menos sentido o seu desconto quando já completo. Por outro lado, a intenção tipicamente reconhecível da sociedade subscritora e dos avalistas também é a de fornecer ao financiador da primeira um instrumento de garantia e de melhoria da sua posição processual; não um título para negociar. Tornando, em geral, contrária à boa fé a eventual negociação.



[i] Dada a diferente natureza jurídica de uma pré-livrança – no fundo, um documento particular de dívida incompleto (e portanto não auto-suficiente) que o portador tem o «poder» de completar, transformando-o numa livrança título de crédito - e uma livrança título de crédito cambiário, por um lado, e a circunstância de, nos casos em análise, essa transformação apenas se destinar a ocorrer em situações excepcionais de incumprimento de uma vinculação subjacente, mostra-se discutível que se possa aplicar regra análoga à contida no artigo 410.1 do CC. Mesmo que se entenda o contrário, como a razão de ser das normas da LULL respeita a um título de crédito circulante, destinado a cumprir uma função sócio-económica típica enquanto tal, a ressalva contida nesse preceito poderá, inclusive, constituir a regra.

[ii] Em que sobressai – insiste-se neste ponto - não apenas o carácter incompleto e futuro do aval, mas também o seu carácter eventual e, ainda, a circunstância de lhe faltar, cartularmente, um elemento essencial relativo aos termos da vinculação: tipicamente, o valor garantido (o que o torna um negócio jurídico imperfeito, carecido da aposição no documento de um elemento necessário para se tornar um ato cambiário). De facto, nas situações analisadas, tal elemento destina-se a ser determinado através de acordos extracartulares (o que exclui a aplicação da regra do artigo 400 do CC).

[iii] Em termos conceptuais e dogmáticos, acresce um outro dado. O aval cambiário é, legalmente, uma garantia do pagamento pontual, no vencimento, de uma letra ou livrança pelo sacado (na letra) ou pelo subscritor-emitente da livrança (art. 30 I da LULL), exprimindo tipicamente uma manifestação de confiança nesse pagamento. Não é esse o sentido geral do mesmo quando aposto em livranças emitidas por sociedades a favor dos seus financiadores, avalizadas pelos seus sócios. De facto, como o título cambiário, com os avales, só nasce quando houver uma situação de incumprimento ao nível da relação subjacente, a expectativa de que ele seja pago pontualmente pela sociedade emitente não existe ou quase não existe. Os avales que efetivamente se constituem aparecem, portanto, em termos materiais, como garantias relativas à obrigação da sociedade avalizada, o que os aproxima da respectiva concepção corrente na doutrina.

[iv] Vale aqui a observação constante da penúltima nota, a respeito do aval. A livrança também é meramente eventual e, pelo menos nos casos analisados, não se afigura aplicável o artigo 400 do CC. Em tese geral, também poderia falar-se num poder de preenchimento conferido no pressuposto de que o portador o exerceria em conformidade com os ditames da boa fé, dentro dos limites da relação subjacente. Mas afigura-se melhor ver aí um acordo, ainda que tácito, segundo as regras da interpretação e integração do negócio jurídico; pelo menos nas situações analisadas no texto. Acerca da aplicação destas regras à questão de saber se existe ou não um negócio jurídico, cfr. Evaristo Mendes/Fernando Sá, Comentário ao Código Civil, editado pela Faculdade de Direito da UCP, Lisboa (UCE) 2014, p. 489 (anot. II ao art. 217) e p. 537 (anot. I ao art. 236).

[v] Cfr. Evaristo Mendes/Fernando Sá, Comentário ao Código Civil (2014), cit., p. 534 e 536 (notas I e VIII), bem como, acerca dos princípios de interpretação não escritos dos negócios jurídicos, p. 535s (nota V).

[vi] Tenha-se presente que um tal documento só vale como livrança, com o conhecido rigor que caracteriza este título, quando se encontrar devidamente configurado nos termos do artigo 75 da LULL (art. 76; para a letra, cfr. arts. 1 e 2).

[vii] Procede a tal distinção, como se observará, Carolina Cunha, num artigo em que comenta o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do STJ nº 4/2013, de 11.12.2012, «Cessão de quotas e aval: equívocos de uma uniformização de jurisprudência», DSR 9 (2013), p. 91-114, 92ss. Já antes, Carolina Cunha, Letras e Livranças. Paradigmas actuais e Recompreensão de um Regime, Coimbra (Almedina) 2012, p. 584ss (acerca das relações de financiamento duradouras, p. 597ss; sobre o tema específico da perda da qualidade de sócio pelo avalista, p. 610ss). Na mesma linha, cfr. também Filipe Cassiano dos Santos, «Aval, livrança em branco e denúncia ou resolução de vinculação: anotação ao AUJ do STJ de 11-12-2012», RLJ 142 (2013), p. 300-312, 312-346, 318ss, e Januário Gomes, «O (in)sustentável peso do aval em branco prestado por sócio para garantia de crédito bancário revolving – Ac. de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2013, de 11.12.2012, Proc. 5903/09», CDP 43 (2013), p. 15-32, 32-47, 34ss.

[viii] Sobre o tema, cfr., designadamente, o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do STJ nº 7/2012, de 5.06.2012 (relatado por Abrantes Geraldes), proc. 2493/05.0TBBCL.G1.S1, DR I de 17.07.2012, e o Acórdão do mesmo Tribunal de 30.04.2015 (também relatado por Abrantes Geraldes), proc. 2430/11.3.TVLSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt. Lê-se no primeiro: «Sem embargo de convenção em contrário, há direito de regresso entre os avalistas do mesmo avalizado numa livrança, o qual segue o regime previsto para as obrigações solidárias». Com posição crítica, cfr., designadamente, Pais de Vasconcelos, «Avales dos sócios de sociedades comerciais», in DSR 11 (2014), p. 13-34, 17ss. Em sentido favorável, Carolina Cunha, «Pluralidade de avalistas e direito de regresso – Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 7/2012, de 5.6.2012, Rev. 2493/05», CDP nº 40 (2012), p. 41-55, 56-67. Anteriormente, cfr. P. Pais de Vasconcelos, «Pluralidade de avales por um mesmo avalizado e «regresso» do avalista que pagou sobre aqueles que não pagaram», in AAVV, Nos 20 anos do CSC, III, Coimbra Editora 2007, p. 947-978.

[ix] Há vasta corrente jurisprudencial no sentido deste carácter pessoal, apenas admitindo a invocação do pacto pelos avalistas quando sejam partes nele. Cfr., por ex., o Acórdão do STJ de 22.02.2011 (relatado por Sebastião Póvoas), proc. 31/05 – 4TBVVD – B.G1.S1, em cujo sumário se lê: «2. A violação do pacto de preenchimento é uma excepção de direito material que não pode ser invocada pelo avalista salvo se o mesmo nele teve intervenção, subscrevendo-o»; bem como o Acórdão do mesmo Tribunal de 10.09.2009 (de que foi relator Lopes do Rego), proc. 380/09.2YFLSB, em cujo sumário se escreve: «2.Sendo a execução instaurada pelo beneficiário de livrança que lhe foi entregue em branco, e não tendo tido o avalista, segundo a sua própria versão fáctica, qualquer intervenção, quer nos negócios jurídicos subjacentes à subscrição da livrança, quer na celebração do pacto de preenchimento, não lhe é possível opor ao portador do título a excepção de preenchimento abusivo, nem invocar erro na prestação do aval, já que, neste caso, não existe qualquer relação extracartular entre portador da livrança e avalista que possa fundamentar a dedução de tais excepções.» Ambos os acórdãos se encontram disponíveis em www.dgsi.pt (última consulta: novembro de 2015). Toma-se adiante posição diferente, pelos motivos aí aduzidos. Em geral, sobre a letra em branco, cfr. Paulo Sendin, Letra de Câmbio, I, Lisboa (Almedina) 1980 p. 143ss, 156ss, 172ss, 176ss, 183ss, 198-264, 306ss, 359ss, etc. No sentido de que o aval é dado no pressuposto da observância do acordo de preenchimento, cfr. Evaristo Mendes, «Aval e fiança gerais», Direito e Justiça XIV (2000)/1, págs. 149-169, 150. Cfr. também, embora em sentido não inteiramente coincidente com o do texto, os referidos comentários de Carolina Cunha, «Cessão de quotas e aval: equívocos de uma uniformização de jurisprudência», DSR 9 (2013), p. 91-114, mormente, p. 96ss, Januário Gomes, «O (in)sustentável peso do aval em branco prestado por sócio para garantia de crédito bancário revolving», CDP 43 (2013), p. 15-32, 32-47, 38, 41ss (sobretudo, 43ss), e Filipe Cassiano dos Santos, «Aval, livrança em branco e denúncia ou resolução de vinculação: anotação ao AUJ do STJ de 11-12-2012», RLJ 142 (2013), p. 300-312, 312-346, 333ss.

[x] Acórdão relatado por Gabriel Catarino e comentado criticamente, designadamente, por Carolina Cunha, no primeiro estudo citado, «Cessão de quotas e aval: equívocos de uma uniformização de jurisprudência», DSR 9 (2013), p. 91-114. Quanto ao problema específico da desvinculação do avalista que perde a qualidade de sócio, vejam-se em especial as páginas 99ss (mormente quanto à resolução, por inexigibilidade, do acordo de preenchimento, e seus limites, 113ss). Já antes, realçando a diferença que existe entre o aval aposto em letra ou livrança completa e o aval inscrito numa letra ou livrança em branco e reconhecendo ao sócio que cede a sua participação na sociedade o direito de se desvincular, para o futuro, cfr. Letras e Livranças (2012), cit., p. 610ss, em especial, 613ss. Sobre o assunto, em tom igualmente crítico, cfr. também F. Cassiano dos Santos, «Aval, livrança em branco e denúncia ou resolução de vinculação: anotação ao AUJ do STJ de 11-12-2012», RLJ 142 (2013), p. 300-312, 312-346 (embora valorando a perda da qualidade de sócio de modo diferente do daquela autora - p. 315, 320ss/324ss), e Januário Gomes, «O (in)sustentável peso do aval em branco prestado por sócio para garantia de crédito bancário revolving – Ac. de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2013, de 11.12.2012, Proc. 5903/09», CDP 43 (2013), p. 15-32, 32-47, bem como, em sentido favorável ao Acórdão, Pais de Vasconcelos, «Avales dos sócios de sociedades comerciais», in DSR 11 (2014), p. 13-34, 27ss; todos com mais indicações. O Acórdão encontra-se disponível, designadamente, em www.dgsi.pt e no DR de 21.01.2013 (1ª série). Fixou-se jurisprudência no seguinte sentido: «Tendo o aval sido prestado de forma irrestrita e ilimitada, não é admissível a sua denúncia por parte do avalista, sócio de uma sociedade a favor de quem aquele foi prestado, em contrato em que a mesma é interessada, ainda que, entretanto, venha a ceder a sua participação social na sociedade avalizada».

Lê-se no sumário do Acórdão fundamento, de 2.12.2008, relatado por Paulo Sá, proc. 08A3600 (disponível, em www.dgsi.pt): «V – Embora o aval seja irrevogável, é admissível a sua denúncia até ao momento do preenchimento do título, em situações como a dos autos, em que a livrança é decorrente de um contrato de abertura de crédito com um prazo inicial de 6 meses, que foi sendo renovado 16 vezes, por prazos idênticos e sucessivos, já tendo decorrido cerca de 4 anos e meio sobre a aposição do aval. VI – A denúncia basta-se, então, com a simples comunicação ao Banco exequente da vontade e do pedido feito pelo avalista de “ser retirado” da livrança o seu aval, isto independentemente do fundamento que foi invocado (a circunstância de ter deixado de ser sócio e renunciado à gerência da sociedade subscritora da livrança). VII – Tendo a declaração de denúncia chegado ao poder do Banco beneficiário, a mesma tornou-se eficaz (art. 224.º, n.º 1, do CC)». Acerca da possibilidade de denúncia, cfr. também Evaristo Mendes, «Aval e fiança gerais», Direito e Justiça XIV (2000)/1, págs. 149-169, 158, 160 s, 163 ss. Note-se, no entanto, que a denúncia não respeita ao aval e que, havendo, no momento em que produz efeito, uma dívida do avalizado, o avalista não pode exigir que o aval seja riscado do título, embora possa exigir a anotação no mesmo título, quanto a si, do valor até ao qual responde (cfr. «infra», na parte final do estudo).

[xi] Acórdão relatado por Nuno Cameira e disponível em www.dgsi.pt; proc. 1464/11.2TBGRD-A.C1.S1. Salienta-se no sumário: «IV – Actua com abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, o banco que aciona uma livrança, que os executados avalizaram em branco, oito anos depois de estes se terem afastado da sociedade subscritora, na qual tinham interesse, tendo o exequente conhecimento que estes só avalizaram a livrança por serem pessoas com interesse na sociedade subscritora, sendo que, na altura do afastamento (meados de 2003), a conta caucionada de que a sociedade era titular encontrava-se regularizada e, posteriormente (já depois de 2004), o exequente, sabendo que os executados se sentiam desobrigados e que era bastante a garantia dos restantes avalistas, continuou a conceder crédito à sociedade através da renovação do contrato de abertura de crédito que tivera início em 03-07-2002. V – Perante estes dados de facto, verifica-se que os executados podiam fundadamente confiar que, tanto tempo depois de se terem apartado da sociedade subscritora, o banco não acionaria o aval que prestaram: é inadmissível e contrária à boa fé a conduta assumida pelo exequente, na medida em que trai a confiança gerada nos executados pelo seu comportamento anterior, confiança essa reforçada pelo decurso de um tão dilatado lapso de tempo».

[xii] Acórdão relatado por Bettencourt Faria e disponível em www.dgsi.pt; proc. 3871/12.4 TBVFR-A.P1.S1.

[xiii] Cfr. Evaristo Mendes, «Fiança geral», RDES XXXVII (1995), p. 97-158, em especial, p. 136ss, 154ss.

[xiv] DR I de 8.03.2001. Embora proclamando uma posição de princípio desfavorável às fianças omnibus, o Acórdão deixa abertura para o tratamento diferenciado de situações especiais, que de resto tem sido utilizada pelos tribunais. Para um breve panorama da evolução que se operou na matéria, cfr. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, X – Direito das Obrigações. Garantias, Coimbra (Almedina) 2015, p. 509ss, em especial, 515ss. Note-se que, apesar de haver diversos Acórdãos dos tribunais superiores em sentido contrário, a doutrina do Aresto é, no essencial, transponível para o correspondente problema do aval. Neste sentido, cfr., ainda, Menezes Cordeiro, p. 601. Já antes, Carolina Cunha, Letras e Livranças. Paradignas actuais e Recompreensão de um Regime (2012), cit., p. 599 ss. Acerca do mesmo Acórdão, merece destaque o comentário de Januário Gomes, «O mandamento da determinabilidade na fiança omnibus e o AUJ nº 4/2001», in Estudos de Direito das Garantias, I, Coimbra (Almedina) 2004, p. 109-137; já antes, sobre o tema, Assunção fidejussória de dívida, Coimbra (Almedina) 2000, p. 597ss. Não exactamente na mesma linha, cfr., ainda, Menezes Cordeiro, p. 520 s. Veja-se, ainda, L. Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito das Garantias, Coimbra (Almedina) 2010, p. 95 ss, em especial, 99 ss.

[xv] Evaristo Mendes, «Aval e fiança gerais», Direito e Justiça XIV (2000)/1, págs. 149-169, já citado. Neste texto, formulámos perguntas semelhantes às acima enunciadas. Salienta-se aí: 1) considerando o caso normal de a livrança em branco avalizada ser entregue ao banco, sem que o avalista, nas relações com este, defina claramente os termos em que se vincula, pode a garantia ser interpretada no sentido de não compreender dívidas posteriores à saída do sócio da sociedade? Tendo o banco tido conhecimento da saída, pode considerar-se abusivo o acionamento da garantia no seu confronto? 2) Uma vez prestada a garantia, pode o garante «exonerar-se) da mesma (denunciá-la ou revogá-la, com efeitos «ex nunc», relativamente a dívidas futuras)? Como? 3) São válidas as garantias? Dentro de que limites? Para mais pormenores cfr. as p. 151 e 152. Acerca da figura do chamado «aval geral», cfr. p. 156 s (entendendo que o que está em jogo é um aval aposto em livrança em branco sendo a autorização de preenchimento de caráter geral); acerca da validade, p. 161 ss (cfr. também p. 167s); sobre a função sócio-económica deste tipo de garantias e o problema de governança societária que colocam, p. 166 s. Sobre o aval omnibus, com mais indicações, cfr. também Carolina Cunha, Letras e Livranças. Paradigmas actuais e Recompreensão de um Regime (2012), cit., p. 597ss, L. Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito das Garantias (2010), cit., p. 116ss, Menezes Cordeiro, Tratado X (2015), cit., p. 601.

[xvi] Recorda-se: única que vale como tal (arts. 2 e 76 da LULL).

[xvii] Salvo se outra coisa resultar de indicação expressa ou do respetivo contexto, os artigos citados respeitam à Lei Uniforme relativas às Letras e Livranças de 1930 (LULL).

[xviii] Deste autor, sobre o aval, cfr., desenvolvidamente, Letra de Câmbio II (1982), p. 721ss (acerca da acessoriedade típica, p. 783s).

[xix] Sobre este conceito, cfr. o art. 16 I da LULL.

[xx] Haja aceite ou não; cfr. o cheque.

[xxi] Ou supondo-se que assume. Não importa o estado psicológico do autor, mas o que é normal acontecer, com pessoas normais, razoáveis. Cfr. nota adiante.

[xxii] Este, ao deixar sair o título da sua esfera jurídica, com a sua assinatura, empenha nele o seu crédito, garantindo legalmente o seu pagamento pontual (sacador e endossantes: arts. 9 e 15) ou prometendo cumprir a ordem de pagamento que através da letra lhe é dada (sacado-aceitante: art. 28).

[xxiii] Tudo apreciado em termos de típica normalidade, independentemente portanto do concreto estado de alma do avalista e do avalizado, de a operação avalizada responsabilizar realmente o avalizado (art. 7 e 32 II), etc.

[xxiv] Cfr., a respeito da conceção de Paulo Sendin, Evaristo Mendes, «Letra de Câmbio e Direito Comercial centrado na Empresa. O Legado de Paulo Sendin», in Estudos em Memória do Prof. Doutor Paulo M. Sendin, Lisboa (UCE) 2012, p. 13-70, 67ss. Cfr. também Carolina Cunha, Letras e Livranças (2012), cit., p. 105ss.

 Em geral sobre a concepção não obrigacional da letra, na sua fase normal (distinta da fase patológica mas meramente eventual do regresso), com uma correspondente reconstrução do aval, podem ver-se Paulo Sendin, Letra de Câmbio, Lisboa, Almedina, 1980 e 1982, Paulo Sendin/Evaristo Mendes, A natureza do aval e a questão da necessidade ou não de protesto para accionar o avalista do aceitante, Coimbra (Almedina) 1991, em especial, p. 954ss, e Evaristo Mendes, «Letra de Câmbio e Direito Comercial centrado na Empresa. O Legado de Paulo Sendin», in Estudos em Memória do Prof. Doutor Paulo M. Sendin, Lisboa (UCE) 2012, p. 13-70, 19ss, Títulos de Crédito – Aulas da FDL 1990-1991, disponível em evaristomendes.eu. Para uma reconstrução doutrinal do título, veja-se, ainda, a supracitada obra de Carolina Cunha, Letras e Livranças (2012). Para a visão tradicional, cfr., por ex., José Engrácia Antunes, Os Títulos de Crédito. Uma Introdução, Coimbra (Almedina) 2012, p. 51ss (85ss, quanto ao aval), e A. Soveral Martins, Títulos de crédito e valores mobiliários, I – Títulos de crédito, Coimbra (Almedina) 2012.

[xxv] Apresentação pontual a pagamento, recusa de pagamento e comprovação dessa recusa por protesto tempestivamente requerido (cfr. os arts. 38, 44 e 53).

[xxvi] Estando aceite, a posição jurídica inscrita no título já não é apenas de beneficiário (legitimado) de uma ordem de pagamento legalmente garantida pelo sacador e eventuais endossantes, bem como voluntariamente pelos avalistas; a letra incorpora também a obrigação do aceitante. Mas, sendo o aceite facultativo (embora hoje em dia existente em quase todas as letras), a sua essência continua a residir na ordem de pagamento. Estruturalmente, continua a ser uma espécie de título de «delegação»: o sacador encarrega o sacado de fazer certo pagamento, em princípio por sua conta (cfr. o art. 3 da LULL). O confronto com o cheque, que é insusceptível de aceitação (art. 4 da LUCh), é elucidativo disto mesmo.

[xxvii] Se não se verificarem os pressupostos do regresso, encontrando-se aceite, a letra também se converte num puro título obrigacional, uma vez que a obrigação do aceitante (art. 28) se mantém (cfr. o art. 53 I) e as garantias (do sacador, dos endossantes e dos avalistas) se extinguiram, sem se converterem em obrigações de regresso.

[xxviii] Cfr. também, a respeito do cheque, Evaristo Mendes, «O actual sistema de tutela da fé pública do cheque», Direito e Justiça (DJ) XIII/1 (1999), p. 199-254.

[xxix] Ou por seu intermédio.

[xxx] Em nome próprio ou em nome alheio se faltam os necessários poderes (art. 8). Em princípio serão todos. Pode, no entanto, faltar a responsabilidade de um ou mais, designadamente por incapacidade, por ser falsa a assinatura, por ter sido desapossado do título (controvertido), etc. Neste caso, além do artigo 16 II, é importante o princípio da independência recíproca do artigo 7.

[xxxi] Isto deriva, em termos conceptuais, da corrente conceção do aval como um ato instituidor – não de uma garantia de produção de certo resultado (o pagamento pontual do título no vencimento, pelo sacado da letra ou pelo subscritor/emitente da livrança), com a correspondente eventual obrigação de regresso se se verificarem os pressupostos deste – mas de uma obrigação solidária de garantia da obrigação do avalizado. Sobre este ponto, cfr. Paulo Sendin/Evaristo Mendes, A Natureza do Aval e a Questão da Necessidade ou não do Protesto para Accionar o Avalista do Aceitante, Coimbra (Almedina) 1991.

[xxxii] Em termos gerais, a abstracção de um negócio ou obrigação cartulares significa a sua independência relativamente à respetiva causa [relação subjacente (causa remota) e convenção executiva (causa próxima, que estabelece a ponte entre o plano cambiário e o plano causal)], que pode ser plúrima, como nas letras e livranças e nos cheques (salvo, porventura, no caso do aval, que cumpre uma função de garantia), ou corresponder a um determinado tipo negocial, como sucede no caso do conhecimento de carga (cuja relação causal é necessariamente o contrato de transporte de mercadorias por mar e, portanto, só comportará abstracção no primeiro sentido). No caso das letras e livranças, ela é frequentemente identificada, no que respeita às obrigações, com o disposto no artigo 17 da LULL [cfr., por ex., Soveral Martins, Títulos de crédito (2012), p. 80ss, e Menezes Cordeiro, Tratado X (2015), p. 603 (só existe quando o título está nas mãos de um terceiro de boa fé)], o que significa a sua recondução à autonomia do título. Afirmando também o seu caráter relativo, cfr. Paulo Sendin, «Usura. Letra de Câmbio e Direito Comercial», in AAVV, Nos 20 Anos do CSC, III, Coimbra Editora 2007,851-914, 901s [a letra vale por si, a operação cambiária é «suficiente»; mas trata-se de um regime jurídico, não de um dogma, e possui caráter relativo: havendo entre os intervenientes cambiários uma relação imediata (por serem partes também na relação causal subjacente), essa suficiência deixa de existir, sendo possível apreciar o negócio subjacente e opor exceções pessoais daí derivadas]. Porém, com mais desenvolvimento e estendendo-a também ao domínio das relações imediatas (que existem entre intervenientes da cadeia cartular partes numa relação subjacente) e portanto conferindo-lhe relevância própria embora mitigada, cfr., no entanto, Ferrer Correia(/Paulo Sendin/Sampaio Cabral), Lições de Direito Comercial, III, Coimbra 1966 (polic.), p. 45ss [abstracção significa pluralidade de funções do negócios cambiários e independência da causa ou função, a causa é separada do negócio, ficando fora da obrigação cambiária; aludindo à autonomia nas relações mediatas (art. 17 – este consagra a abstracção: p. 59) e considerando que a autonomia é uma decorrência da literalidade e da abstracção, cfr. p. 47s, 59s, 65; considerando que a inoponibilidade da convenção de favor também é manifestação da abstracção, p. 50; entendendo que, nas relações imediatas, tudo se passa como se a obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstracta, porque a disciplina da LULL visa assegurar a sua fácil circulação, através da protecção da boa fé de terceiros – p. 67s e 88; mas entendendo também que a natureza da obrigação é, em rigor, a mesma no domínio das relações mediatas e imediatas, ou seja, que a obrigação é sempre literal e abstracta, embora nas relações imediatas, por razões de economia processual, as excepções causais funcionem como uma «contra-pretensão» que vem compensar e anular a que o portador imediato baseia na letra, cfr. p. 88ss (na linha de La Lumia e aludindo ao enriquecimento sem causa). A este respeito, tenha-se presente, ainda, que, quando se discutiu a validade em Portugal das garantias bancárias autónomas, se justificou a mesma distinguindo entre abstracção (que elas não teriam) e autonomia (inoponibilidade de excepções) – cfr. Evaristo Mendes, «Garantias bancárias autónomas…», RDES 1995/4, p. 411-444, 445-473, 421ss, 430, 433ss, 448ss, 451, 462ss  Considerando, nos títulos abstractos, um absurdo entender que a abstracção só existe no domínio das relações mediatas, mas admitindo nas imediatas a oposição das excepções causais, procurando uma explicação para tal, cfr. também Fernando Olavo, Direito Comercial, II – Títulos de crédito em geral, Coimbra Editora 1978, p. 48ss (em especial, p. 51s, 57ss). No direito alemão, cfr., por ex., Hueck/Canaris, Recht der Wertpapiere, (Munique (Vahlen) 1986, p. 26ss, 44, 106s, 165ss, e Ernst Jacobi, Wechsel- und Scheckrecht, Berlim 1956, p. 275ss. Importa assinalar que a abstracção do título, em si mesmo, e do respectivo ato criador, pode, no caso do cheque, retirar-se do artigo 3 da LUCh, na medida em que a validade do mesmo não depende da existência da provisão que tipicamente justifica a ordem de pagamento que através do cheque é dada ao sacado. E é defensável igual construção para as letras e livranças, embora falte na LULL disposição semelhante. Tudo o resto – saber se os demais negócios cambiários e obrigações são abstractos – é, em face do ordenamento causalista português, discutível cfr. também, por ex., Francesco Galgano, I titoli di credito, Pádua (Cedam) 2009, p. 30ss – embora justificando a inoponibilidade de exceções nas relação mediatas através de uma construção do fenómeno «translativo» muito vulgarizada mas igualmente discutível]. Sobre o tema, na literatura recente, cfr. a reconstrução de Carolina Cunha, Letras e Livranças (2012), p. 123ss (134ss; 151ss, quanto aos negócios cambiários), 208ss.

 

[xxxiii] Diversamente do que sucede com o saque, o endosso e o aceite (cfr. os arts. 1, 12 e 26 I da LULL), bem como com a subscrição/emissão da livrança (art. 75.2º).

[xxxiv] Tais afirmações carecem, em todo o caso, de ser justificadas. Não resultam evidentes do texto da lei.

[xxxv] Isto não deve, no entanto, fazer esquecer a mudança de paradigma que entretanto ocorreu. Presentemente, as letras são emitidas, via de regra, para serem descontadas, morrendo nas mãos do primeiro endossado (em geral um banco). E esta circulação limitada apenas existe porque se generalizou no século passado o saque à ordem do sacador; se fosse utilizada a modalidade do saque a favor ou à ordem do tomador, nem sequer tal circulação limitada ocorreria. O mesmo se verifica com as livranças: como se diz no texto, estas encontram-se tipicamente associadas a contratos de concessão de crédito ou de risco e cumprem em geral uma função de garantia e melhoria da posição processual do financiador destinatário, não se destinando a circular. Sobre o assunto, cfr. Evaristo Mendes, «Letra de Câmbio e Direito Comercial centrado na Empresa. O Legado de Paulo Sendin», in Estudos em Memória do Prof. Doutor Paulo M. Sendin, Lisboa (UCE) 2012, p. 13-70, máxime, p. 19, e Carolina Cunha, Letras e Livranças (2012), cit., passim.

[xxxvi] Em geral, sócios gerentes ou administradores; menos frequentemente, apenas sócios maioritários e/ou gerentes/administradores. Sobre estas em geral, cfr. Evaristo Mendes, «Aval e fiança gerais», Direito e Justiça XIV (2000)/1, p. 149-169, 166ss.

[xxxvii] Trata-se de um fenómeno muito difundido, quer em Portugal quer noutros países europeus, envolvendo via de regra sociedades por quotas e anónimas de pequena e média dimensão. Mas também se observa em relação a agrupamentos societários cuja faturação anual ascende a algumas centenas de milhão de euros. E também existe fora do contexto profissional, por exemplo, no crédito ao consumo. Com frequência, os sócios constituem-se, ainda, fiadores, além de avalistas ou em alternativa ao aval.

[xxxviii] Como também realçam Carolina Cunha, Cassiano dos Santos e Januário Gomes, nos comentários supracitados.

[xxxix] Falta, portanto, a «quantia determinada» que se refere o artigo 75.2º (cfr., para as letras, o art. 1.2º); o que faz com que a promessa de pagamento seja uma promessa em branco, não cartularmente determinada nem determinável.

[xl] Quanto a este elemento, embora quando completada com a quantia devida a livrança possa surgir como uma livrança pagável à vista (cfr. o art. 76 I) – isto é, mediante a simples apresentação do título por quem esteja cartularmente legitimado a fazê-lo (arts. 34 I e 77) -, isso não é forçoso.

[xli] Para as letras, cfr. o artigo 2. Cfr., por todos, Engrácia Antunes, Os Títulos de Crédito (2012), p. 55s, e A. Soveral Martins, Títulos de crédito (2012), p. 46 s. Cfr. também, por exemplo, o aludido comentário de Januário Gomes, «O (in)sustentável peso do aval em livrança em branco prestado por sócio…», CDP 43 (2013), p. 36ss (citando, designadamente, Oliveira Ascensão, Pinto Coelho, Carolina Cunha e P. Sendin) e 41.

[xlii] Mostra-se controvertida a questão de saber quais os requisitos absolutamente indispensáveis para haver uma letra ou uma livrança em branco, ou seja, para haver um título cambiário em formação, sujeito à regra do artigo 10 da LULL. Diferentemente de entendimento corrente na Alemanha, também perfilhado por Ferrer Correia (Lições de Direito Comercial, III, Coimbra 1966, com a colaboração de P. Sendin e Sampaio Cabral), o Prof. Sendin defendia a necessidade da verificação, no caso da letra: de um documento com a palavra letra e de uma ordem de pagamento, com um autor (assinatura do sacador), um destinatário (sacado) e um beneficiário (o próprio sacador ou um tomador) [cfr., sobretudo, Letra de Câmbio I (1980), p. 176ss]. Sobre o assunto, cfr., em sentido não totalmente coincidente, por ex., A. Soveral Martins, Títulos de crédito (2012), cit., p. 45, com mais indicações (p. 133), Engrácia Antunes, Os Títulos de Crédito (2012), e Carolina Cunha, Letras e Livranças (2012), cit., p. 544ss, 548. Se os pré-avales podem ou não valer como fianças relativas à obrigação subjacente, que para a sociedade decorre do contrato de financiamento, é problema de que não nos ocupamos.

[xliii] Apresenta-se controvertida a questão de saber se o título pode circular cambiariamente ainda em branco e, vindo tal a acontecer, se é aplicável o artigo 10. Mas, pela razão indicada no texto, o seu tratamento cai fora do âmbito deste pequeno apontamento, relativo às correntes livranças em branco com avales prestados por sócios da sociedade subscritora.

[xliv] Note-se que, legalmente, estas são negócios jurídicos de garantia do pagamento do título no vencimento, não da obrigação do avalizado, que pode não existir, por vício ou falta de eficácia vinculativa do negócio constitutivo (cfr. o art. 32 II e, ainda, o art. 7).

[xlv] Pode, eventualmente, vir a surgir uma letra ou uma livrança, por força dos artigos 7 e 16, apesar de não haver um ato constitutivo válido. Esse é, no entanto, um problema distinto, de que aqui não tratamos. Sobre as livranças em branco e o «aval geral» (aval em branco com autorização geral de preenchimento) nelas aposto, cfr., por ex., Evaristo Mendes, «Aval e fiança gerais», Direito e Justiça XIV (2000)/1, p. 149-169, 156ss. Cfr. também F. Cassiano dos Santos, «Aval, livrança em branco e denúncia ou resolução de vinculação: anotação ao AUJ do STJ de 11-12-2012», RLJ 142 (2013), p. 300-312, 312-346, 333ss, em especial, 335ss.

[xlvi] Cfr., em especial, Paulo Sendin, Letra de câmbio I (1980), p. 176ss.

[xlvii] Tratando-se de um documento circulante, se se admitir a sua circulação ainda em branco, o acordo é celebrado com o tomador, para que este o preencha ou, se essa for a vontade das partes, ceda a um seu endossado o poder de o preencher; podendo o processo repetir-se. Já se indicou, no entanto, que este é um mundo diferente daquele que nos ocupa, o das livranças de garantia (e um mundo, de resto, hoje em dia, mais virtual que real).

[xlviii] Cfr. Evaristo Mendes, «Aval e fiança gerais», Direito e Justiça XIV (2000)/1, págs. 149-169, 154, 157 ss. Sobre o tema, admitindo que o acordo de preenchimento pode envolver os avalistas como partes, considerando que, em geral, o avalista, através da aposição da sua assinatura na livrança em branco, manifesta a sua vontade no sentido de que o documento seja preenchido, quanto a si, nos termos que vigoram para o avalizado, quer participe no acordo de preenchimento quer não (neste caso, há uma determinação do conteúdo da sua declaração de aval «per relationem») e situando o problema da eventual inobservância do mesmo no campo do artigo 10 da LULL, cfr. Carolina Cunha, Letras e Livranças (2012), p. 586ss, em especial, p. 588, 591ss (apreciando também a jurisprudência que recorre ao art. 32 I).

[xlix] Como se observará adiante, nas livranças típicas de que tratamos, a situação ainda pode ser mais diferente daquela que se encontra os artigos 30 a 32 da LULL, mormente no artigo 30 I. Na verdade, em geral, a livrança só surge como título de crédito, com o preenchimento, em situações, de incumprimento ou mora qualificada no âmbito da relação fundamental, nas quais (ou em boa parte das quais) não é expectável que a sociedade subscritora a pague, à simples apresentação.

[l] Considerando que, ao apor a sua assinatura em letra ou livrança em branco, o dador de aval o faz no pressuposto de que o acordo de preenchimento será observado, cfr. Evaristo Mendes, «Aval e fiança gerais», Direito e Justiça XIV (2000)/1, págs. 149-169, 150. Observa-se aí também que o poder jurídico de completar o título é conferido ao portador pelo emitente, mas que o exercício de tal poder fica sujeito ao que a esse respeito ficar convencionado, expressa ou tacitamente, bem como aos princípios gerais aplicáveis (p. 154, 157 s). Considerando, no fundo, que o preenchimento pressupõe uma autorização de cada subscritor, incluindo os avalistas, cfr. Januário Gomes, «O (in)sustentável peso do aval em livrança em branco prestado por sócio…», CDP 43 (2013), p. 38, embora não desenvolva o assunto por o considerar irrelevante no contexto do AUJ que comenta; cfr. também p. 43, onde fala num (possível) acordo de garantia entre avalista e banco financiador, englobando o pacto de preenchimento e o documento em branco assinado pelo avalista, a respeito do qual se coloca o problema da desvinculação referido adiante.

[li] No comum das letras, hoje em dia, uma instituição de crédito que aceita descontá-lo, com quem de resto o avalista muitas vezes nem contacta.

[lii] Na Alemanha, o aval cambiário, em especial nas letras, tem um significado prático limitado, justamente porque se entende, mais latamente, que, se uma letra tem aposto um aval, é porque há algum problema com a confiança no seu pontual pagamento; aproveitando-se a garantia legal do endosso para evitar que tal aconteça: se é preciso reforçar o crédito do título, em vez de o garante aparecer como avalista, é inserido na cadeia cambiária como endossante.

[liii] A ideia segundo a qual, extracartularmente, só há acordos entre avalista e avalizado, presente num número considerável de Acórdãos, não corresponde à realidade; mormente na situação típica dos financiamentos concedidos pelas IC às sociedades. De facto, estas são aí consideradas tipicamente como organizações dotadas de certo elemento pessoal, os sócios, que se querem dentro da operação, formando um bloco com a sociedade, não fora dela; ainda que, formalmente, eles possam aparecer como simples subscritores de um documento de livrança em branco na qualidade de (futuros e potenciais) avalistas. Consciente de que o comportamento contratado da sociedade a financiar será determinado pelos sócios (em geral, sócios gerentes ou administradores), a ideia da IC é financiar essa determinada sociedade com os seus sócios, levando estes a corresponsabilizar-se perante si pelo pontual cumprimento do contrato por parte sua sociedade, sob pena de ela, IC credora, fazer nascer a livrança com os avales e exigir o seu pagamento. É esta a mensagem fundamental presente na sua declaração negocial, a que, com maior ou menor boa vontade, os sócios dão o seu acordo, expresso na assinatura do documento de livrança. Em muitos casos, isso leva a que os sócios também assinem o acordo de financiamento (hoje em dia, englobando com frequência o pacto de preenchimento). Mas quando o não fazem a situação é substancialmente análoga. Retoma-se o tema, adiante, no texto.

[liv] Mais latamente, cfr. «supra», as observações de Carolina Cunha.

[lv] Designadamente o regime das CCG e de defesa do consumidor. Sobre o tema, cfr., por ex., Menezes Cordeiro, Tratado X (2015), p. 601 ss, bem como, em geral, p. 191ss, 216ss; a respeito da fiança, p. 447ss, 509ss.

[lvi] Na maioria dos casos, a prestação dos avales destina-se a criar condições para que a sociedade obtenha capitais alheios, suprindo uma insuficiência de capitais próprios. Daqui decorre, por exemplo, que, não obstante o teor literal do artigo 243 do CSC, vindo um avalista a pagar a livrança, o crédito de regresso que terá contra a sociedade deva ser, via de regra, ao menos numa sociedade por quotas e quanto a detentores de mais de 25% do capital do capital nas sociedades anónimas (segundo a doutrina nacional maioritária, bastam 10%), objecto de qualificação legal como crédito de suprimento, para os efeitos do artigo 245 do CSC. E, tal como sucede com a realização de suprimentos (cfr. o art. 244 do CSC), também pode o pacto social impor aos sócios a prestação deste tipo de garantias.

[lvii] Cfr. os artigos 236 e 238 do CC. Sobre eles, vejam-se Evaristo Mendes /Fernando Sá, in Comentário ao Código Civil. Parte Geral, edição da FDUCP, Lisboa (UCE) 2014, págs. 532ss, com mais indicações, e Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, II, Parte Geral. Negócio Jurídico, 4ª ed., Coimbra (Almedina) 2014, págs. 673ss, 715ss. No sentido do texto, a respeito da fiança, cfr. também Evaristo Mendes, «Garantias bancárias autónomas…», RDES 1995/4, p. 411-444, 445-473, 457s (e «Fiança geral», cit., p. 133).

[lviii] Em certo sentido, pode, assim, dizer-se que às IC financiadoras interessa prioritariamente esta «garantia económica» (assente na capacidade solutória da sociedade devedora) e a disposição para cumprir; não tanto as garantias patrimoniais destinadas a funcionar em caso de incumprimento.

[lix] Sobre o assunto, cfr. também Evaristo Mendes, «Aval e fiança gerais», Direito e Justiça XIV (2000)/1, págs. 149-169, 168s.

[lx] Trata-se, como se observou, de uma garantia operacional, conexa com uma operação cambiária principal (cfr. os arts. 31 IV e 32 I).

[lxi] Salienta-se, mais uma vez, que estamos a considerar situações societárias típicas, abstraindo de situações específicas de sociedades conflituais, com sócios minoritários «ausentes» ou de mera fachada, etc.

[lxii] Mesmo sem a imposição de um capital mínimo (tenha-se presente o regime das SA e SCA no CCom).

[lxiii] Apesar de já beneficiarem da presunção do artigo 799 do CC. Note-se que o NCPC de 2013 voltou a circunscrever de forma acentuada o rol dos títulos executivos extrajudiciais, mantendo neles, porém, os títulos cambiários (art. 703).

[lxiv] Quanto esta justifica, dada a conhecida subcapitalização e sobreendividamento das SQ e SA, mas também quando tal não seria necessário. Generalizou-se, de facto, uma prática, não salutar, de exigência sistemática, sem critério, de livranças em branco avalizadas, mesmo em relação a operações comezinhas e de risco limitado, como locações financeiras e contratos de mútuo, realizadas, inclusive, com grandes grupos empresariais.

[lxv] Embora em número considerável, como se revela pelo volume existente de casos judiciais.

[lxvi] Dito de outro modo. Os documentos de livrança em branco, com as declarações de aval dos sócios, apenas se convertem em livranças e tais declarações em avales em último recurso, se a sociedade devedora não cumprir o contrato de financiamento; ou seja, se eles não tiverem cumprido a sua função primordial de meios tendentes a evitar o incumprimento. E, neste caso, a mensagem que os avalistas transmitem ao portador do título não é a de que, se ele o apresentar pontualmente a pagamento, ele lhe será pago. A situação é outra: porque não funcionou o mecanismo de «pressão» da livrança avalizada, como solução de recurso, excecional, os avalistas vão responder com os seus patrimónios pelo valor em falta.

[lxvii] Quotas-partes do seu valor líquido, dos lucros, etc., que em maior medida podem transferir para os seus patrimónios pessoais.

[lxviii] Nas garantias comuns, esta função compulsória também pode existir mas com significado diferente. Cfr., a este respeito, Menezes Cordeiro, Tratado X, cit., p. 205 e 447.

[lxix] Salienta-se este dado. As livranças em apreço não são apenas títulos provisoriamente incompletos, destinados a ser preenchidos segundo pacto de preenchimento: via de regra, não se destinam a ver nascer a luz do dia. São títulos futuros, meramente eventuais, que na maioria dos casos nunca chegam a constituir-se e, inclusive, que se espera não venham a constituir-se (porque isto é sinal de que as coisas correm bem e, portanto, a função primordial foi cumprida).

[lxx] Acerca de um possível direito geral de exoneração por justa causa com figurino diferente do previsto na lei, cfr. Evaristo Mendes, «Exoneração de sócios (…)», AAVV, II Congresso DSR (2012), Coimbra (Almedina) 2012, p. 13-89.

[lxxi] Sobre esta ideia de que a IC financiadora da sociedade e portadora da livrança tem direito a que os avalistas cubram as dívidas contraídas pela sociedade até à sua eventual saída desta, mas, em princípio, não tem nenhum direito (ou sequer uma legítima expectativa), a que eles cubram o seu subsistente negócio com a sociedade, continuando a beneficiar do respetivo «serviço de acreditamento», após a cessação da qualidade de sócios, cfr., a respeito das garantias de duração indefinida, Evaristo Mendes, «Aval e fiança gerais», Direito e Justiça XIV (2000)/1, págs. 149-169, 160s, 164s (admitindo neste caso a denúncia quanto a esse serviço ou cobertura, com naturais implicações na autorização para o exercício do poder de completar o documento de livrança com eficácia face aos avalistas).

[lxxii] Cfr. também, a respeito da fiança, Evaristo Mendes, «Garantias bancárias autónomas…», RDES 1995/4, p. 411-444, 445-473, 458.

[lxxiii] Cfr., designadamente, os artigos 626, 633 e 701 do CC. Mais latamente sobre o problema visto na ótica dos bancos e da sociedade, cfr. Januário Gomes, «O (in)sustentável peso do aval em livrança em branco prestado por sócio…», CDP 43 (2013), p. 45s, e Carolina Cunha, «Cessão de quotas e aval: equívocos de uma uniformização de jurisprudência», DSR 9 (2013), p. 91-114, 109ss.

[lxxiv] Trata-se, de resto, uma solução semelhante à que ocorre na perda da qualidade de sócio por sócio de responsabilidade ilimitada (art. 175.2 do CSC) e por sócio de sociedade por quotas que tenha assumido estatutariamente uma responsabilidade nos termos do artigo 198 do CSC.

[lxxv] No mesmo sentido, quanto à solução que propõe da resolução por inexigibilidade, cfr., por ex., Carolina Cunha, «Cessão de quotas e aval: equívocos de uma uniformização de jurisprudência», DSR 9 (2013), p. 91-114, máxime, 105ss, 109.

[lxxvi] Neste sentido depõe, em especial, o CSC, ao fixar um limite máximo para as eventuais prestações suplementares dos sócios (art. 210, nº 3 a), e nº 4), ao reconhecer o direito de «abandono da quota» no artigo 207.2 e ao exigir que as possíveis obrigações de prestações acessórias tenham fixados os elementos essenciais nos estatutos (arts. 209.1 e 287.1). Assinala-se também que o mesmo Código admite a assunção por um ou mais sócios de responsabilidade pelas dívidas sociais, mas apenas desde que seja fixado um limite a essa responsabilidade (art. 198). E o nº 2 do artigo 198 afirma expressamente que a responsabilidade abrange apenas as obrigações assumidas pelas sociedade enquanto o sócio a ela pertencer e não se transmite por morte, sem prejuízo da transmissão das obrigações a que o sócio estava anteriormente vinculado. Em geral, cfr. Januário Gomes, «O mandamento da determinabilidade na fiança omnibus e o AUJ nº 4/2001», in Estudos de Direito das Garantias I (2004), cit, p. 109-137 e, já antes, Assunção fidejussória de dívida, Coimbra (Almedina) 2000, p. 597ss, sobretudo,621ss, e Menezes Cordeiro, Tratado X (2015), cit., p. 191ss, 509ss, 601ss. Veja-se também Evaristo Mendes, «Aval e fiança gerais», Direito e Justiça XIV (2000)/1, págs. 149-169, 161 ss (salientando a insuficiência de uma mera determinabilidade «per relationem» do objeto da garantia – máxime, p. 163) e «Fiança geral» (1995), cit, p. 140, 143s, 154, 157s. Entendendo, com razão, que a aplicação ao aval aposto em livrança em branco da doutrina daquele AUJ nº 4/2001, relativo à fiança, não pode sem mais afastar-se e que, na linha do que escrevemos em «Aval e fiança gerais», «a atribuição ao avalista em branco que garante uma operação sem prazo do poder de se desvinvular relativamente a dívidas posteriores à eficácia da declaração de desvinculação constitui um requisito essencial de validade deste tipo de garantias», cfr., ainda, Januário Gomes, «O (in)sustentável peso do aval em livrança em branco prestado por sócio…», CDP 43 (2013), p. 42.

[lxxvii] O mesmo se aplica ao cheque – cfr. o artigo 25 I da LUCh.

[lxxviii] Admitiu-se uma limitação nestes termos, designadamente, no Acórdão do STJ de 3.05.2001, apesar de o pacto de preenchimento limitar a responsabilidade dos subscritores da livrança em branco a certo montante, superior ao valor à data da saída, tendo sido o título preenchido com tal montante. O Acórdão encontra-se publicado na ROA 61 (2001), p. 1039 ss, com anotação favorável de Menezes Cordeiro (p. 1051s, embora observe que problemas como o presente também podem ser vistos sob o ponto de vista da invalidade da garantia por indeterminabilidade do objecto e da eventual quebra de confiança com o concomitante abuso do direito, porque só se entrega uma livrança assinada em branco a um banqueiro quendo nele se tenha uma especial confiança).

Atendendo à regra que os interessados, agindo de boa fé, criariam se tivessem regulado o assunto; ou atendendo à vontade hipotética do autor do negócio em causa de estabelecer a reserva em apreço, a qual, em conformidade com a boa fé, será oponível ao financiador destinatário do documento de livrança em branco.

Pode discutir-se, nos casos correntes de operações de crédito renováveis, se o momento relevante para fixar a responsabilidade coberta pela garantia é o da comunicação da perda da qualidade de sócio ou se, por exemplo, num contrato de abertura de crédito com renovação automática de 6 em 6 meses, o avalista deverá seguir a via da oposição à renovação com eficácia face a si, sendo esse o momento relevante. E, quando o ex-sócio excerça um direito de denúncia, se deve observar um pré-aviso. Cfr. Januário Gomes, «O (in)sustentável peso do aval em livrança em branco prestado por sócio…», CDP 43 (2013), p. 44.

[lxxix] Cfr. Carolina Cunha, Letras e Livranças (2012), cit., p. 613, aludindo à posição de Januário Gomes expressa no estudo supracitado, a respeito da fiança, e, mais desenvolvidamente, «Cessão de quotas e aval: equívocos de uma uniformização de jurisprudência», DSR 9 (2013), p. 91-114, 105ss. No sentido de que os sócios fiadores e os sócios que apõem o aval em livrança em branco merecem tratamento semelhante, perante situações de aberturas de crédito renováveis a favor das respectivas sociedades, cfr., ainda, Januário Gomes, «O (in)sustentável peso do aval em livrança em branco prestado por sócio…», CDP 43 (2013), p. 40s, aludindo também, a respeito do aval em livrança em branco, à doutrina da inexigibilidade, «enquanto legitimadora do rompimento resolutivo da relação contratual duradoura» na p. 44 («a priori, poderá ser inexigível a continuação da vinculação como garante relativamente a novas situações de dívida, quando o avalista deixa de ter interesses na sociedade enquanto sócio, tendo sido este – o de sócio – o status determinante do aval em branco»).

[lxxx] No mesmo sentido, Carolina Cunha, Letras e Livranças (2012), cit., p. 612. Sobre o assunto, cfr. também Januário Gomes, «O (in)sustentável peso do aval em livrança em branco prestado por sócio…», CDP 43 (2013), p. 44 (nota 70).

[lxxxi] Em face do acima exposto, pensamos ser este preceito o aplicável, embora o simples conhecimento, factual ou normativo, do adquirente da livrança seja de considerar, no específico caso em apreço, suficiente para dizer que o mesmo atua conscientemente em detrimento do devedor (avalista). O resultado não será, assim, substancialmente diferente, neste caso especial, daquele que resulta da aplicação do artigo 10, preconizada por Carolina Cunha.

[lxxxii] Evaristo Mendes, «Aval e fiança gerais», Direito e Justiça XIV (2000)/1, p. 149-169, 156ss, 168. Não qualificamos esta faculdade de desvinculação parcial ad nutum como denúncia, de propósito. De facto, também é concebível a sua qualificação como revogação, considerando que pode estar em jogo a modificação do objecto de um negócio jurídico unilateral. Trata-se de um problema técnico-jurídico de importância menor. Sobre o tema, cfr. Januário Gomes, «O (in)sustentável peso do aval em livrança em branco prestado por sócio…», CDP 43 (2013), p. 42ss (embora, no que toca à revogação, só aluda à revogação por justa causa, que entende poder consistir na perda da qualidade de sócio, estabelecendo o paralelo com a resolução – p. 45). Admitindo-se a existência de um contrato de garantia entre o avalista e o financiador, ele tanto pode ser resolvido ex nunc, quanto às novas situações de dívida, com possível fundamento na perda da qualidade de sócio, como, havendo uma relação duradoura celebrada por tempo indeterminado, ser objecto de denúncia (p. 43 e 44).

[lxxxiii] Cfr. também Evaristo Mendes, «Aval e fiança gerais», Direito e Justiça XIV (2000)/1, págs. 149-169, 151, 156. Se houver circulação, cfr. p. 158 s.