EVARIST​O MENDES

Evaristo Mendes

Amortização de quotas e morte de sócio.

Prática estatutária [i] . Nota

A presente nota, relativa à amortização de quotas por morte do sócio de uma SpQ, foi elaborada em 2006 e teve por base uma análise de cerca de um milhar de pactos sociais deste tipo societário, quase todos relativos ao período de 1987 a 2005. Em jeito conclusivo, extrai-se deles o que se segue.

1. Cláusulas de continuação com os herdeiros. Representante comum

Um número significativo de pactos sociais continua a conter meras cláusulas de continuação da sociedade com os herdeiros do sócio falecido ou, mais raramente, de transmissão da quota por morte. O interesse primordial de tais cláusulas reside no facto de, comummente, incluírem a regulamentação do exercício dos direitos respectivos enquanto a quota se mantiver integrada na herança ou, em geral, indivisa. Em regra, impõe-se esse exercício através de representante comum. Nalguns casos, na falta de designação (pelos herdeiros ou pelo autor da sucessão, em testamento), considera-se como tal o mais velho, o cabeça de casal ou o representante legal da herança. Ocasionalmente, dispõe-se que, faltando a designação dentro de certo prazo, caberá ela à sociedade.

Por vezes, a regulamentação é bastante pormenorizada. É exemplo disso um pacto de 1991, com o seguinte teor: «1 - Em caso de falecimento, interdição ou inabilitação de qualquer sócio ou sendo judicialmente declarada a sua ausência, deverão os seus herdeiros, meeiro, tutor, curador ou quem, em seu lugar, deve reger o respectivo património, identificar-se perante a sociedade, fazendo prova autêntica da sua qualidade e, sendo mais de um, escolher entre si uma pessoa singular que a todos represente. 2 – O prazo para ser dado cumprimento ao disposto no número anterior é de três meses, contados do falecimento ou do trânsito em julgado da decisão final do processo, sendo caso disso, e, findo que seja ele, todos os actos serão válidos relativamente a todos os titulares da quota, independentemente do conhecimento que os mesmos tenham da sua prática e de terem ou não intervindo neles, sendo-lhes de qualquer modo vedado participar em assembleias gerais, fiscalizar a escrita social ou exercer quaisquer outros direitos sociais, designadamente quanto à percepção de dividendos ou lucros, enquanto não regularizarem a situação.»

Todavia, como se verá a seguir, as cláusulas em apreço também aparecem em contratos de sociedade que consideram a morte fundamento de amortização compulsiva ou reconhecem aos herdeiros um direito a essa amortização. Em alguns deles, o fundamento da amortização é a falta de designação de representante comum da quota indivisa dentro de certo prazo a contar a da morte.

2. Cláusulas impeditivas da transmissão das quotas ou da aquisição da posição de sócio do falecido por mero efeito a morte

Muitos pactos incluem cláusulas impeditivas ou eventualmente impeditivas da sucessão na titularidade da quota ou da posição de sócio do «de cujus». Tais cláusulas – que se encontram previstas pelo legislador societário nos arts. 225 e 226 – reconduzem-se a dois grupos principais. O primeiro abrange aquelas que consagram a intransmissibilidade, absoluta ou relativa, da participação. O segundo abarca as que, de algum modo, condicionam a transmissão, seja a favor da sociedade, seja a favor dos próprios herdeiros. Quase sempre tais cláusulas têm expressamente associada a amortização como destino da quota.

a) São pouco frequentes as disposições estatutárias que, de forma inequívoca, excluem a transmissão por morte das quotas ( cláusulas de intransmissibilidade absoluta) ou a aquisição da posição de sócio que era do falecido pelos respectivos herdeiros ( cláusulas de estabilização, conservação ou continuação da sociedade com os sobrevivos ). Quando isso sucede, a amortização aparece como o destino ou um dos destinos possíveis da participação (a par da aquisição ou cessão a sócio ou terceiro).

Nalguns casos, o universo de potenciais adquirentes é circunscrito. Quer, dizer, essa exclusão é relativa: por norma, só ocorrerá se não houver herdeiros legitimários ou habilitados para o exercício de certa profissão. Ocasionalmente, restringe-se a transmissibilidade aos descendentes.

Esporadicamente, aparecem, ainda, cláusulas de amortização automática – sem deliberação - de certas quotas. Nesse caso, por morte, opera-se a extinção da quota e a herança é integrada com o correspondente crédito compensatório.

b) As cláusulas que tornam a transmissão dependente do consentimento ou beneplácito da sociedade são em maior número. Na maioria dos casos, este requisito encontra-se expresso de forma directa e tem associada a faculdade de amortização da quota. Por vezes, dispõe-se que essa transmissão só ocorrerá se a sociedade não optar pela amortização dentro de certo prazo.

Mas a transmissão também aparece colocada na dependência da vontade dos herdeiros. Como no sub-grupo anterior, por morte eles não assumem automaticamente a posição de sócio – ou a titularidade da quota - que eram do falecido. Ocasionalmente, têm um prazo para o fazer, decorrido o qual o seu silêncio vale como assentimento. Mais raramente, determina-se que a sociedade só continuará com os herdeiros se houver um acordo nesse sentido, celebrado entre a sociedade e eles mesmos.

Esporadicamente, encontra-se, ainda, um outro tipo de cláusulas impeditivas da aquisição da quota pelos herdeiros, às quais a amortização é alheia. Por morte do sócio, a quota fica automaticamente adquirida por uma pessoa determinada, máxime certo sócio.

3. Cláusulas de amortização não impeditivas da transmissão da quota ou da aquisição da posição de sócio do falecido

Uma quantidade relevante de pactos autoriza a amortização por morte ou na sequência da morte de sócio, mas sem que se impeça a transmissão «mortis causa» da participação, legal ou testamentária. Embora, como sucede nas hipóteses anteriormente consideradas, se suscite um problema prévio de interpretação, há casos em que inequivocamente isso acontece e outros em que, pelo menos numa primeira impressão, a conclusão se mostra idêntica.

Assim, além de outros elementos fornecidos pelo contexto global dos estatutos, importa referir os seguintes. Em primeiro lugar, há contratos que, por um lado, contêm uma cláusula de continuação da sociedade com os herdeiros (em regra dispondo também acerca do exercício dos direitos sociais) e, por outro lado, reconhecem à corporação o direito de amortizar ou, aos sucessores, um direito à amortização. Em segundo lugar, o fundamento da amortização é, por vezes, não directamente a morte, mas a subsequente falta de designação atempada de representante comum dos herdeiros (ou de acordo quanto ao mesmo). Finalmente, certos pactos, ao preverem a amortização, excluem na deliberação respectiva o voto dos herdeiros e, em certos outros, as expressões utilizadas levam a pensar na amortização de uma quota (eventualmente) transmitida (por ex., reconhece-se aos sucessores a opção por se «manterem» ou não na sociedade).

Concluindo-se que o sentido a dar ao pacto é o de autorizar a amortização de quotas incluídas, por morte, na herança - funcionando esta apenas como fundamento estatutário de um direito de amortizar e/ou de um direito à amortização -, não haverá lugar à aplicação directa do disposto nos arts. 225 a 227, mas do regime geral da amortização. Em especial, não haverá, em princípio, lugar à suspensão de direitos prevista neste último preceito.

4. Cláusulas de simples amortização

Uma grande parte dos pactos limita-se, contudo, a permitir à sociedade a amortização (compulsiva) por morte do sócio – nalguns casos, apenas se não houver herdeiros legitimários, certa categoria destes ou herdeiros que cumpram determinados requisitos – e/ou a reconhecer aos herdeiros um direito à amortização, sem mais indicações acerca da transmissão ou não da participação. O principal problema que estas cláusulas suscitam é o de saber se se aplica ou não o regime legal da suspensão de direitos previsto no art. 227. Questão semelhante suscitam outras disposições contratuais, mais raras, que se limitam a reconhecer à sociedade ou aos sócios sobrevivos uma opção de aquisição da quota.

O problema em apreço foi vivamente debatido no domínio da LSQ, formando-se duas correntes de opinião: uma, defendida designadamente por Ferrer Correia e V. G. Lobo Xavier, favorável à suspensão dos direitos; a outra, dominante na jurisprudência, negando tal suspensão. À primeira vista, o CSC pretendeu resolver a contenda no sentido propugnado por aqueles professores. Todavia, a assinalada distinção entre os vários tipos de cláusulas efectivamente existentes na prática estatutária leva a concluir que a questão se mantém em aberto, embora, na falta de uma indicação inequívoca do pacto em sentido contrário, se possa considerar aplicável, agora diretamente ou por analogia, o referido art. 227. Mesmo quando se proíbe na deliberação de amortização o voto dos herdeiros, na falta de outros elementos que levem a concluir pela transmissão da quota com os direitos inerentes, não é de excluir em absoluto uma interpretação do pacto no sentido de que se quis essa suspensão geral, embora ilustrada com o direito de voto.

O prazo para amortizar é por vezes alargado (v.g., 6 meses, 180 dias). O que faz surgir a questão de saber se, neste aspeto, as cláusulas são compatíveis com o art. 225.º, n.º 2, e/ou com o art. 234.º, n.º 2; isto é, se eles são imperativos.

5. Contrapartidas compensatórias. Valor de desinvestimento assegurado

As contrapartidas compensatórias devidas pela sociedade que opta pela amortização ou que os herdeiros podem reclamar como valor de desinvestimento, vão, em regra, desde o simples valor nominal da quota até ao respectivo valor contabilístico «ad hoc» ou ao valor legal, passando pelo que resulta do último balanço aprovado, eventualmente ajustado em função dos resultados do ano social em curso ao tempo da morte ou da amortização. Em regra, o pagamento é em prestações, com ou sem vencimento de juros.

Num pacto, estabelece-se que no balanço a elaborar os valores a ter em conta serão os valores de venda, embora não se esclareça se, para o efeito, deverá ser tido em conta todo o activo da sociedade e o eventual valor de trespasse do estabelecimento social. Num outro, dispõe-se que o valor da contrapartida será «o valor da quota multiplicado pelo número de anos contados da celebração do contrato que determinou a aquisição da qualidade de sócio».



[i] Abstraindo dos pactos que contêm meras cláusulas de continuação da sociedade com os herdeiros do sócio falecido, cerca de 20% regulam as consequências da morte e admitem como destino da quota a respectiva amortização. Manteve-se a grafia original.