EVARIST​O MENDES

Sumário: O presente texto recorta, no conceito alargado de sociedades (comerciais) irregulares, as sociedades que, apesar de terem objeto mercantil e, portanto, deverem respeitar, na sua constituição, as regras de procedimento do CSC e do CRCom, iniciam a sua atividade sem tal procedimento estar completo: porque falta o próprio título constitutivo, formal, legalmente exigido para a constituição de uma sociedade comercial (sociedades designadas como preliminares) ou porque falta o registo (sociedades em formação). E ocupa-se de algumas questões que as figuras suscitam.

Palavras-chaves: Sociedades irregulares – Sociedades preliminares – Sociedades em formação

Abstract: The paper leads with some problems related to partnerships that temporarily exercise a commercial activity in the meaning of the Portuguese Commercial Code, for which the Companies Code requires a registered company of a defined form, and to companies that initiate their activities before incorporation.

Keywords: Mercantile activities – Irregular partnerships - Companies before incorporation

Evaristo Mendes

Sociedades preliminares e sociedades em formação

(A versão definitiva do presente texto foi publicada in RFDUL-LLR, LXIV (2023) 1, Homenagem ao Professor José de Oliveira Ascensão, pp. 635-668)

Introdução

O Código das Sociedades Comerciais [i] contém no art. 1.º, n.ºs 1 a 3, uma norma de ordenação económica, segundo a qual, para o exercício das atividades mercantis[ii], sob a forma de uma sociedade, é obrigatório constituir uma sociedade de direito comercial, legalmente típica e sujeita ao disposto neste Código e eventual legislação especial, designadamente quanto ao respetivo procedimento constitutivo. Concretamente, dispõe o n.º 3: «As sociedades que tenham por objeto a prática de atos de comércio devem adotar um dos tipos referidos no número anterior»; subentendendo-se que deverão, ainda, constituir-se com observância do disposto no Código – ou seja, em geral, mediante contrato escrito [iii], pelo menos com as assinaturas presencialmente reconhecidas (art. 7.º)[iv], e registo, envolvendo este um controlo dos requisitos constitutivos do tipo escolhido (controlo de legalidade) [v] –, como se dispunha no art. 107.º do Código Comercial, ou, em alternativa, quanto às SpQ e SA, com observância do disposto num dos regimes de constituição simplificada das mesmas, constantes do DL n.º 111/2005 e do DL n.º 125/2006. Os tipos legais são os seguintes: SNC e SCS, por um lado, SpQ (incluindo SuQ), SA (incluindo sociedades anónimas cotadas, parcialmente reguladas também no CVM) e SCA.

Decorre daqui que, se uma atividade comercial for exercida através de uma sociedade geral, não correspondente a um dos tipos sociais referidos, e/ou cujo processo constitutivo não tenha respeitado integralmente o prescrito no CSC, a sociedade em causa – para além, de poder carecer de título constitutivo válido – é, em sentido lato, uma sociedade irregular [vi]. Em caso de inobservância da forma devida, ela está, mesmo, sujeita, ainda que em termos mitigados, a uma ação de liquidação direta por iniciativa do Ministério Público, sem dependência de uma prévia ação de declaração de nulidade (arts. 172.º e s.).

No presente estudo, vamos ocuparmos de duas figuras compreendidas no conceito – a das sociedades (mercantis) preliminares(1.) e a das sociedades em formação(2.) – distinguindo-as das sociedades irregulares em sentido estrito. No caso das sociedades em formação, a análise circunscreve-se às SpQ e SA com objeto comercial.

1. Sociedades preliminares

Existindo um projeto de constituição de uma sociedade de direito mercantil e o início antecipado da atividade, isto é, a realização de atos preparatórios e, porventura, a celebração de negócios próprios da atividade escolhida, antes de celebrado o contrato de sociedade definitivo, há que atender ao art. 36.º, n.º 2, do CSC. Dispõe-se nele: «Se for acordada a constituição de uma sociedade comercial, mas, antes da celebração do contrato de sociedade, os sócios iniciarem a sua atividade, são aplicáveis às relações estabelecidas entre eles e com terceiros as disposições das sociedades civis».

O preceito suscita diversas interrogações, em parte relativas ao seu âmbito de aplicação e à forma do acordo, em parte respeitantes ao seu conteúdo precetivo e, ainda, a outros aspetos de índole mais geral. Ocupamo-nos, em seguida, de boa parte delas.

Antecipa-se, no entanto, que, em nosso entender, a norma apenas se aplica quando haja uma situação societária preliminar – logo, provisória – de uma projetada sociedade de direito comercial, estando os fundadores a preparar a celebração do contrato definitivo (através da via clássica ou de um dos procedimentos simplificados referidos). O próprio texto da lei o indica: se for acordada a constituição de uma sociedade comercial (definitiva), e, com base no acordo, verbal ou escrito, houver o exercício em comum da atividade escolhida, ainda antes de a sociedade projetada ser constituída, aplica-se, às relações societárias relativas a este exercício, o regime das sociedades civis. Ou seja, por razões de ordem pragmática, flexibilizando a diretriz do art. 1.º, n.ºs 1 a 3, tolera-se tal situação e confere-se-lhe um regime jurídico que se considera apropriado – o regime societário geral; não o regime especial do CSC, diferenciado consoante os tipos legais. Podemos dizer que há aqui uma sociedade preliminar [vii].

Se o projeto em apreço nunca existiu, querendo os interessados desenvolver informalmente e/ou sem a devida publicidade legal uma atividade mercantil de forma associada (tendo consciência ou não de que deveriam constituir uma sociedade de direito comercial), se o projeto existiu mas foi abandonado, porque se concluiu pela inviabilidade, desnecessidade ou inconveniência do exercício da atividade nos termos legais, ou se já passou um prazo razoável sem que se tenha constituído a sociedade projetada, a situação já não pode considerar-se jurídico-politicamente tolerável: viola direta e irremediavelmente aquela diretriz de ordenação ou regulação económica, que, como se assinalou, já constava da própria ordem económica liberal (art. 107.º do CCom). Ou seja, neste caso, a sociedade não é uma sociedade preliminar, que o legislador vê com complacência, mas uma sociedade irregular em sentido estrito, sem título jurídico válido (por falta de forma, violação do princípio da tipicidade, etc.), e, portanto, diferentemente do que acontece naquele caso, sujeita a uma possível ação de nulidade dissolutória (arts. 41.º, n.º 1, 52.º e 165.º) ou a uma ação de liquidação, nos termos dos arts. 172.º e 173.º [viii] .

1.1 Questões em torno da figura: enunciado

Na sua aparente simplicidade, o citado art. 36.º, n.º 2 – que apresenta uma clara semelhança de redação com o art. 16.º do Anteprojeto de Coimbra de LSQ [ix] – suscita, como se assinalou, diversas questões, que passamos a enunciar.

Primeira: o preceito aplica-se apenas quando haja uma situação societária preliminar – logo, provisória – de uma projetada sociedade de direito comercial, estando os fundadores a preparar a celebração do contrato definitivo (através da via clássica ou de um dos procedimentos simplificados referidos), ou também quando esse projeto não existe, foi abandonado ou se encontra irrazoavelmente retardado?

Segunda: ainda a respeito do seu campo de aplicação, quando nele se fala em sociedade comercial deve entender-se uma sociedade de tipo e com objeto comerciais ou, mais latamente, uma sociedade de direito comercial (com objeto comercial ou civil)? Terceira: circunscrevendo-se o preceito às sociedades comerciais, deve ele aplicar-se também, extensiva ou analogicamente, quando o objeto é civil, mas a lei impõe a constituição de uma sociedade de direito comercial?

Quarta:o tipo social tem de estar escolhido? Quinta: para o preceito se aplicar, é necessário haver já um acordo vinculativo? E, mesmo, um acordo contendo todos os requisitos do contrato de sociedade salvo o relativo à forma?

Sexta: sendo o objeto da sociedade mercantil (ou impondo a lei a constituição de uma sociedade de direito comercial), a sociedade tem título jurídico válido? Ou não tem e qualquer interessado ou o Ministério Público podem provocar a sua dissolução e consequente liquidação, nos termos acima vistos (arts. 41.º e 52.º, 172.º e s.)?

Sétima:sendo o objeto comercial, o regime civil aplica-se em toda a extensão? Admitindo-se, por ex., a existência de sócios de responsabilidade limitada (art. 997.º, n.º 3, do CC)? E a oponibilidade a terceiros de disposições contratuais do sistema legal de representação da sociedade (art. 996.º do CC)?

Oitava: vindo a sociedade projetada a constituir-se, há identidade jurídica entre a sociedade preliminar e a sociedade definitiva? Se não, como podem passar as situações jurídicas da primeira para a segunda?

Nona: fora do regime societário em si, estando em causa o exercício de uma atividade mercantil, aplicam-se as regras relativas à profissão de comerciante? A sociedade e/ou os respetivos sócios são comerciantes (arts. 13.º e 230.º do CCom)? Embora, como deveria tratar-se de uma sociedade registada, nem a sociedade nem os sócios possam invocar o estatuto do comerciante (arts. 18.º e ss. e 2.º II do CCom) na parte em que lhes seria favorável (designadamente, o regime dos juros comerciais – art. 102.º, §§ 3.º e 4.º, do CCom)?

Décima: para os conflitos societários, são competentes os juízos de comércio (art. 128.º, n.º 1, als.b)a e), da LOSJ)?

Décima primeira:a sociedade preliminar é dotada de subjetividade jurídica?

Antes de responder especificadamente a cada questão, importa ter presente que, na exposição de motivos relativa ao Anteprojeto de LSQ correntemente conhecido como Anteprojeto de Coimbra[x], era indicado o seguinte: i) o início antecipado da atividade poderá justificar-se, por ex., quando os interessados acordam em pôr em comum um estabelecimento comercial, originando relações entre si e com terceiros[xi]; ii) o acordo (de constituição de uma SpQ) teria que ser juridicamente vinculativo, i. e.,preencher todos os requisitos gerais dos contratos e do contrato de sociedade em especial, salvo o relativo à forma[xii]; iii) seria em face da regulamentação das sociedades civis que se deveria apurar a existência ou não da sociedade, que se determinariam os direitos e deveres dos sócios, os fundamentos da dissolução, etc.; sem, contudo, se qualificar a sociedade como civil[xiii]; iv) a aplicação do regime às relações externas também seria razoável, dada a proteção dos credores sociais através da responsabilidade pessoal e solidária de todos os sócios (art. 997.º do CC) e da garantia de preferência relativamente aos credores pessoais destes, que lhes concederia o art. 999.º em conjugação com o art. 1021.º do CC; v) a solução fora inspirada na doutrina suíça.

1.2 Questões societárias

A primeira questão,cuja resposta, em parte, já antecipámos, pressupõe uma distinção entre sociedade preliminar e sociedade definitiva[xiv], mas também entre sociedade preliminar e sociedade irregular stricto sensu . Na primeira, há um projeto de constituição de uma sociedade de direito comercial – correspondente a certo tipo social (ou, pelo menos, a um dos existentes tipos legais, embora ainda não definitivamente escolhido) e em devida forma –, estando a realizar-se as diligências necessárias para que isso aconteça. É esta situação societária provisória ou prodrómica, que pressupõe uma futura sociedade definitiva, a diretamente visada pelo preceito legal. Como se observou, o próprio texto da lei o indica; e, apesar de a sociedade em apreço não cumprir a indicada diretriz de ordenação económica, a mesma é tolerada.

Diferentemente, se o projeto em apreço nunca existiu, querendo os interessados desenvolver informalmente e/ou sem a devida publicidade legal uma atividade mercantil de forma associada (tendo consciência ou não de que deveriam constituir uma sociedade de direito comercial), se o projeto existiu mas foi abandonado, porque se concluiu pela inviabilidade, desnecessidade ou inconveniência do exercício da atividade nos termos legais, ou se já passou um prazo razoável sem que se tenha constituído a sociedade projetada, a situação já não pode considerar-se jurídico-politicamente tolerável: viola tal diretriz de ordenação ou regulação económica, que, como se assinalou, já constava da própria ordem económica liberal. Ou seja, neste caso, a sociedade não é uma simples sociedade preliminar, que o legislador vê com complacência, mas uma sociedade irregular em sentido estrito.

Postas assim as coisas, a resposta à questão colocada é no sentido de que, a estas sociedades irregulares stricto sensu – em rigor não contempladas no art. 36.º, n.º 2, pelo menos diretamente –, o regime societário das sociedades civis, enquanto regime geral, apenas poderá ser aplicado na medida em que não contrarie as finalidades regulatórias do art. 1.º, n.ºs 1 a 3. Noutros termos: o preceito pode aplicar-se-lhes, mas apenas por analogia e com esta ressalva.

Quanto àsegundae terceira questões, afigura-se que o preceito está pensado para os casos em que o legislador impõe a constituição de uma sociedade de direito comercial, em virtude de o objeto ser mercantil (art. 1.º, n.º 3). Na verdade, se o objeto for civil, ainda que se trate de uma sociedade preliminar de uma sociedade definitiva de direito comercial, o natural é aplicar o regime societário geral, das sociedades civis.

No que respeita à quartae quinta questões, embora o assinalado Anteprojeto de Coimbra fosse muito mais restritivo e alguns autores sigam na mesma linha, dada a latitude com que o preceito está redigido, bastará um acordo meramente verbal[xv]; e não se afigura necessária uma antecipada escolha do tipo social concreto[xvi]. No comum das situações, a escolha dos interessados incidirá, todavia, sobre uma definitiva SpQ, menos comummente uma SA.

A sexta questão relaciona-se intimamente com a primeira. Na verdade, se a sociedade é tão-só uma sociedade preliminar, não faz sentido a aplicação dos arts. 172.º e 173.º, nem a proposição de uma ação de nulidade dissolutória por vício de forma ou violação do princípio da tipicidade; o que retira substancial relevo prático ao problema de saber se, para uma sociedade preliminar, qualquer acordo, formal ou informal, é legalmente bastante ou se ela carece de título constitutivo válido[xvii]. Na verdade, proposta uma ação de nulidade por um destes vícios, a sociedade deve poder opor o seu caráter provisório, obstando à procedência da mesma.

A sétima questão merece uma análise mais fina. Na verdade, se o acordo for no sentido da constituição de uma SCS ou de uma SCA, poderão os futuros sócios comanditários ser sócios de responsabilidade limitada também na sociedade preliminar, nos termos do art. 997.º, n.º 3, do CC, embora a limitação da responsabilidade não seja oponível a terceiros de boa fé (art. 996.º, n.º 2, ex vi do art. 997.º, n.º 3)? Ou, no campo das atividades mercantis, tal limitação só se consegue através de uma sociedade em comandita, necessariamente registada? Noutros termos, a cláusula em causa deve considerar-se sujeita a registo no sentido de que, faltando ele, é absolutamente ineficaz (o registo tem neste caso eficácia constitutiva – cfr. o art. 5.º do CSC)? Esta última é pelo menos a resposta mais conforme ao espírito da lei mercantil e também aquela que parece ter estado no espírito dos redatores do Anteprojeto de Coimbra de LSQ[xviii].

No que respeita à vinculação da sociedade, as cláusulas derrogatórias do regime legal, se originárias, são, sem mais, oponíveis a terceiros, independentemente da sua boa ou má fé (art. 996.º, n.º 1, do CC)? Ou, faltando o registo, deve aplicar-se o disposto no art. 996.º, n.º 2, do CC, isto é, a oponibilidade respeita apenas aos terceiros de má fé? Ou até, mais radicalmente, nem esta oponibilidade é de aceitar? Afigura-se correta a oponibilidade aos terceiros (o registo não respeita, aqui, aos elementos caracterizadores dos tipos sociais, logo, não é constitutivo), mas a tutela e ordenação do tráfico jurídico mercantil reclama que tal se circunscreva aos terceiros que conheciam o sistema de representação acordado.

Quanto à oitava questão – consistente em saber se, vindo a sociedade projetada a constituir-se, há identidade jurídica entre a sociedade preliminar e esta sociedade definitiva –, as situações podem ir desde a simples celebração de negócios preparatórios (montagem do negócio ou empresa social), em nome de um ou mais dos promotores, com indicação de que se destinam a sociedade a formalizar (tendo implícito que esta virá a ser parte na respetiva relação e de algum modo garantindo que isso sucederá), até à exploração normal de estabelecimento de um deles, posto em comum, ou adquirido para o efeito, provisoriamente, em nome de todos ou de um deles, sob firma ajustada ao exercício em comum e com indicação de que os negócios se destinam a futura sociedade mercantil, passando pela celebração de negócios em nome de uma futura sociedade, mormente uma SpQ, sob uma firma porventura já certificada pelo RNPC. Em qualquer dos casos, dispõe a lei que a futura sociedade (definitiva, de direito comercial) pode assumir tais negócios ou os correspondentes efeitos jurídicos (direitos e obrigações) – destinados a si – mediante a sua especificação e expressa ratificação no respetivo ato constitutivo (podendo esta especificação constar de documento anexo)[xix]. Nada impede que a assunção compreenda tendencialmente todos os negócios e situações jurídicas, de modo que, havendo já uma empresa, esta passe para a sociedade destinatária.

Caso haja já um negócio (business) ou estabelecimento, pode também o mesmo ser dado como entrada, singular ou conjunta, ou prever-se no ato constitutivo da sociedade definitiva a sua aquisição[xx]. E, nas situações mais complexas e prolongadas, compreende-se, igualmente, o procedimento da transformação da sociedade preliminar na sociedade definitiva, nos termos dos arts. 130.º e ss. do CSC[xxi], evitando a dissolução da primeira; embora esta via se adeque mais a uma sociedade irregular stricto sensu, originária ou resultante da conversão de uma inicial sociedade preliminar.

Nestes casos, i. e., havendo já uma empresa coletiva constituída e ativada, sob a forma de uma sociedade preliminar, pode afirmar-se que, direta e formalmente através da transformação (mudança de tipo ou forma social), ou indiretamente através da mencionada assunção dos negócios e situações jurídicas (ou do trespasse), há uma continuidade da mesma na sociedade definitiva. O centro de atividade produtiva (CAP societário) é, materialmente, o mesmo. Todavia, em termos jurídico-formais, temos, por um lado, um tipo social geral (provisório), que ou é esvaziado da sua substância, a favor da sociedade definitiva, e tendencialmente se dissolve, ou muda de forma jurídica, transformando-se numa regular sociedade de direito comercial.

Se for utilizado o processo de transformação, os interesses de quem contrata com a sociedade definitiva estão legalmente salvaguardados, através do regime aplicável. Se a passagem se der através da assunção de negócios, tal como sucede quando há entradas em espécie (por ex., estabelecimento), importa verificar o impacto que ela tem na situação líquida constitutiva da sociedade (definitiva), o que, via de regra, passará por uma operação de avaliação por ROC independente e/ou pela anexação ao contrato de sociedade de um balanço certificado, aplicando analogicamente o regime daquelas entradas.

1.3 Outras questões

No que toca às questões não societárias (em sentido estrito), assume particular relevância a nona, relativa ao estatuto do comerciante . Decorre do art. 13.º do CCom – e, quanto à atividade empresarial mercantil, também do art. 230.º – que, além das sociedades comerciais (n.º 2.º), quem exerce profissionalmente uma atividade comercial é comerciante (n.º 1.º), ficando sujeito ao estatuto jurídico correspondente, em que se contam, no caso das sociedades, não apenas a obrigatoriedade de o fazer sob a forma de uma sociedade de direito comercial devidamente constituída e publicitada (citado art. 1.º, n.ºs 1 a 3, do CSC), mas também a obrigação de adotar uma firma diferenciadora da sociedade em causa, os deveres de ter escrituração mercantil e de fazer um apuramento periódico da situação patrimonial-financeira (arts. 18.º e ss. do CCom), e, ainda, a qualificação dos negócios e obrigações como comerciais, nos termos do art. 2.º II, a regra da solidariedade das obrigações plurais (arts. 100.º e 101.º), a existência de um regime especial de juros, pelo menos moratórios, nos termos do art. 102.º, §§ 3.º e 4.º, etc.

Retira-se daqui que as sociedades em causa são comerciantes, pelo menos se dotadas de subjetividade jurídica, ou sê-lo-ão os respetivos sócios, caso assim não se entenda [xxii] . Estão, ainda, sujeitas à insolvência (art. 2.º, n.º 1, al. e), do CIRE)[xxiii]; e, em relação à contabilidade e ao relato financeiro, dada a natureza da atividade, também devem considerar-se sujeitas ao Sistema de Normalização Contabilística (SNC) [xxiv] , podendo a inobservância deste levar à qualificação de uma eventual insolvência como culposa (art. 186.º, n.º 2, al. h),do CIRE). Pode, no entanto, discutir-se se a sociedade tem a faculdade de invocar, contra terceiros, este estatuto, na parte em que lhe seja favorável e desfavorável a eles. Sem prejuízo de melhor reflexão, afigura-se que a resposta deve ser, em princípio, negativa se a sociedade for irregular; mas a inversa no caso presente, que a lei tolera.

A décima questão respeita à competência judiciária. Dispõe o art. 128.º, n.º 1, da LOSJ que compete aos juízos do comércio preparar e julgar: as ações de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade (al. b)); as ações relativas ao exercício de direitos sociais (al. c)); as ações de suspensão e de anulação de deliberações sociais (al. d)); e as ações de liquidação judicial de sociedades (al. e)). Decorre daqui que, mesmo que se defenda uma interpretação restritiva da competência, colocando de fora as sociedades civis puras, tal não se justifica no caso vertente, em que, de algum modo, ainda está em causa regular a existência, o funcionamento e a participação no tráfico jurídico de uma sociedade com objeto comercial[xxv].

Finalmente, no que respeita à décima primeira questão – consistente em saber se a sociedade preliminar é dotada de subjetividade jurídica –, há opiniões desencontradas, embora em geral relativas a situações que, segundo o critério acima exposto, compreendem tanto as sociedades preliminares propriamente ditas, como eventuais sociedades irregulares em sentido estrito. Presentemente, tende a prevalecer a tese da subjetividade jurídica[xxvi].

2. Sociedades em formação

Uma vez celebrado o contrato de sociedade definitivo – por ex., de constituição de uma SpQ ou SA –, já temos uma sociedade correspondente ao tipo social visado pelos sócios fundadores[xxvii], regida, em princípio, nas relações internas, pelas disposições legais e contratuais próprias desse tipo (art. 37.º, n.º 1, do CSC), mas com duas exceções maiores – a transmissão por ato entre vivos das participações sociais requer o consentimento unânime dos sócios que nele não participem [xxviii] e o contrato de sociedade também só pode ser modificado por unanimidade (art. 37.º, n.º 2), à semelhança do que sucede nas sociedades de pessoas e nos contratos em geral[xxix].

Todavia, como em boa medida já resulta destas exceções, a sociedade em causa apenas se torna uma sociedade definitiva ou perfeita – com as características próprias do tipo ou modelo regulatório em causa (designadamente, nos tipos sociais em apreço, com o capital social dividido em quotas ou ações e responsabilidade limitada – arts. 197.º e 271.º) e formalmente dotada de personalidade jurídica, com a capacidade jurídica «plena» própria das pessoas coletivas [xxx] – após o registo, precedido pelo menos de um controlo de legalidade por parte do conservador[xxxi]. Com efeito, dispõe o art. 5.º do CSC, relativo às sociedades de direito comercial em geral: «As sociedades gozam de personalidade jurídica e existem como tais a partir da data do registo definitivo do contrato pelo qual se constituem, sem prejuízo do disposto quanto à constituição de sociedades por fusão, cisão ou transformação de outras.» [xxxii] Antes do registo, podemos designá-la sociedade em formação [xxxiii].

Quanto às relações externas destas sociedades em formação (pré-sociedades do tipo considerado), falta no CSC uma norma geral explícita semelhante à que existe para as relações internas. No local próprio – arts. 37.º a 40.º –, apenas se dispõe acerca da responsabilidade decorrente dos negócios concluídos nesta fase; faltando uma norma mais geral relativa à sua atuação no tráfico jurídico. No que respeita às SpQ e SA em formação, que aqui nos interessam especialmente, estabelece o art. 40.º, n.º 1:«Pelos negócios realizados em nome de uma sociedade por quotas, anónima ou em comandita por ações, no período compreendido entre a celebração do contrato de sociedade e o seu registo definitivo,[I]respondem ilimitada e solidariamente todos os queno negócioagirem em representação dela, bem como os sócios que tais negócios autorizarem, sendo que [II] os restantes sócios respondem até às importâncias das entradas a que se obrigaram, acrescidas das importâncias que tenham recebido a título de lucros ou de distribuição de reservas.»

O art. 40.º, n.º 1, deve, no entanto, articular-se com o determinado no art. 19.º (epigrafado «Assunção pela sociedade de negócios anteriores ao registo»). Realça-se o que se segue.

Em primeiro lugar, com o registo definitivo do contrato, a sociedade ( maxime, SpQ e SA) – dotada de personalidade jurídica, nos termos do art. 5.º, e de capacidade geral, conforme o art. 6.º – assume de pleno direito (isto é, automaticamente): i) os direitos e obrigações decorrentes dos negócios jurídicos relativos à sua fundação especificados no contrato[xxxiv]; bem como os direitos e obrigações emergentes de negócios jurídicos concluídos antes do ato de constituição – mormente se o início da atividade social remonta a este tempo (em que não existia uma SpQ ou SA, nem sequer em formação, mas apenas uma sociedade geral, preliminar ou atípica) – e que neste sejam especificadose expressamente ratificados[xxxv]; ii) os direitos e obrigações resultantes da exploração normal de um estabelecimento que constitua objeto de uma entrada em espécie ou que tenha sido adquirido por conta da sociedade, no cumprimento de estipulação do contrato social[xxxvi]; iii) e os direitos e obrigações decorrentes de negócios jurídicos celebrados pelos gerentes ou administradores ao abrigo de autorização dada por todos os sócios no ato de constituição [xxxvii]. Neste último caso, não exigindo a lei a especificação dos negócios, afigura-se que a autorização pode ser geral[xxxviii]; mas não basta uma autorização de todos os sócios – é preciso, ainda, que ela conste do contrato de sociedade, beneficiando da correspondente publicidade legal.

Em segundo lugar, tendo sido realizados em nome da sociedade, após a celebração [xxxix] mas antes de registado o contrato, outros negócios jurídicos, os correspondentes direitos e obrigações não são, sem mais, imputados à mesma. Todavia – após o registo, quando já existe uma SpQ ou SA definitiva –, eles podem ser por ela assumidos mediante decisão da administração, decisão esta que deve ser comunicada à contraparte nos 90 dias posteriores ao registo[xl] , [xli] .

Em terceiro lugar, a assunção pela sociedade dos negócios indicados – ope legis ou por deliberação social –, por um lado, «libera as pessoas indicadas no artigo 40.º da responsabilidade aí prevista, a não ser que por lei estas continuem responsáveis[xlii]». Por outro lado, retrotrai os seus efeitos à data da respetiva celebração[xliii].

2.1 Anteprojeto de Coimbra. Principais questões

No Anteprojeto de LSQ de Coimbra, observava-se, a respeito dos arts. 18.º, 30.º e 31.º, substancialmente correspondentes aos arts. 40.º e 19.º do CSC, o que se segue.

Os negócios concluídos em nome da sociedade, antes do registo, não seriam da sociedade por quotas, dado que esta apenas se constituía com o registo; embora pudessem ser por ela assumidos, voluntária ou automaticamente, passando a responder pelas respetivas obrigações o património social[xliv]. E o exercício de uma atividade mercantil em nome da «pré-sociedade por quotas» devia encarar-se como excecional: em rigor, as atividades só deveriam iniciar-se após o registo. Todavia, para além dos atos preparatórios da futura atividade social, haveria casos em que um início mais cedo seria necessário: prática de atos relativos a vantagens especiais e despesas de constituição, bem como de aquisição de bens pela sociedade; exploração normal de uma empresa dada como entrada em espécie ou adquirida por conta da sociedade, que, como se compreende, não deve ser interrompida[xlv].

Quanto à responsabilidade pelos negócios realizados nesta fase, importava distinguir: i) pelos referidos negócios necessários e pelos negócios autorizados por todos os sócios (na escritura ou em momento posterior), responderia preferencialmente o fundo social, podendo os credores sociais exigir dos sócios as entradas que estivessem em dívida (i e.,estes respondiam até ao limite das entradas a que se obrigaram), e respondiam também, solidária e ilimitadamente, os gerentes que neles interviessem (art. 18.º, n.º 2); ii) pelos demais, carecidos desta legitimidade conferida pela totalidade dos sócios ou decorrente da natureza dos negócios, respondiam apenas, solidária e ilimitadamente, os (gerentes) que agissem em representação da sociedade e os fundadores que os autorizassem; não o fundo social (art. 18.º, n.º 1)[xlvi]. Com esta distinção, evitava-se que «o património da futura sociedade por quotas fosse desfalcado ou onerado logo nesta primeira fase por uma atuação dos gerentes que não se apresentasse como necessária, nem se fundasse no consentimento unânime dos associados», protegendo, no entanto, a contraparte nos negócios através da responsabilidade dos agentes e dos fundadores que os autorizassem[xlvii].

Segundo alguns autores, o CSC, ao não fazer, no art. 40.º, n.º 1, esta distinção entre negócios necessários e unanimemente autorizados e os demais, desvaloriza a inconveniência de a sociedade vir a surgir, após registo, com um património já diminuído, em virtude de operações não necessárias nem baseadas em deliberação unânime dos sócios[xlviii]. Ou seja, para eles, extrai-se do preceito, por um lado, que o património social das SpQ e SA em formação responde pelas obrigações contraídas em seu nome; mas também, por outro lado, que responderia por toda a atuação levada a cabo em seu nome. Embora fosse outra, designadamente, a interpretação da lei subjacente ao art. 125.º, n.º 3, do CREFal de 1993[xlix], e perfilhada por alguma doutrina[l], como se verá, a primeira afirmação reflete a interpretação dominante da disposição legal em apreço. A segunda carece, contudo, de análise mais fina.

Na verdade, acerca do preceito e, mais latamente, acerca da dimensão externa das sociedades de direito mercantil em formação, identificam-se, sobretudo, as questões que se seguem.

Primeira: havendo uma atuação jurídica em nome de uma SpQ ou SA (ou SCA) quando ainda em formação, além das pessoas indicadas no preceito, também o património social responde pelas dívidas contraídas (surgindo com o registo já onerado pelo passivo constituído nesta fase)? Ou, para impedir que a sociedade registada nasça já com o património diminuído, apenas respondem pessoalmente tais pessoas?

Segunda: respondendo o património social, a responsabilidade é plena, cobrindo toda a atuação feita em nome da sociedade (e também a atividade delitual)?

Terceira: respondendo o património social, a responsabilidade daquelas pessoas é subsidiária? E que tipo de responsabilidade têm os sócios referidos na parte final (que não autorizaram os negócios realizados)?

Quarta: a responsabilidade dos agentes e sócios autorizadores afere-se negócio a negócio (ou ato a ato)?

Quinta: os agentes têm de ser representantes da sociedade?

Sexta: a SpQ e SA em formação é um centro de atividade legalmente autorizado (tem capacidade jurídica de agir) e um correspondente centro de imputação jurídica (tem uma correspondente capacidade de gozo)? Mostra-se dotada de subjetividade jurídica? Sendo a atuação em nome dela própria, não da futura sociedade registada? Há identidade jurídica entre a sociedade antes e após o registo? E possui capacidade jurídica «plena»?

Sétima: admitindo a capacidade jurídica da sociedade (ainda em formação), quem tem poderes para a vincular? Como atua ela no tráfico jurídico-negocial? Há restrições ao poder de dispor das entradas realizadas?

Oitava: como se concilia a responsabilidade do património da SpQ e SA em formação com o princípio da exata formação do capital?

Nona: a sociedade em causa é uma sociedade irregular? [li]

2.2 Análise das questões

A primeira questão consiste em saber se – havendo uma atuação jurídico-negocial em nome de uma SpQ ou SA (ou SCA) quando ainda em formação [lii] – pelas obrigações contraídas, além das pessoas indicadas no art. 40.º, n.º 1, agentes e sócios, também responde o património social (surgindo este, com o registo, já onerado pelo passivo constituído nesta fase); ou se, para impedir que a sociedade registada surja no tráfico jurídico já com o património diminuído, apenas respondem pessoalmente tais pessoas. Quanto a ela, sem prejuízo dos termos mais exatamente definidos adiante, como se antecipou, a resposta – na linha do citado Anteprojeto de LSQ e, designadamente, do atual direito alemão [liii] – é, dominantemente, no sentido da responsabilidade do património social; podendo tal interpretação considerar-se, atualmente, confirmada pelo CIRE[liv].

A solução justifica-se se e na medida em que a SpQ e a SA em formação constituam um centro de atividade produtiva já legalmente reconhecido como tal, autorizado a atuar no tráfico jurídico; e encontra algum apoio na parte final do art. 40.º, n.º 1[lv]. Com efeito, a ser este o caso, mesmo tendo presente a importância do regime do capital social, dificilmente se compreenderia que a tal autorização não correspondesse a responsabilidade em causa.

Ora, essa autorização pode extrair-se do art. 19.º Vejamos em que termos, respondendo, do mesmo passo, à segunda questão acima enunciada, consistente em saber se tal responsabilidade é plena, cobrindo toda a atuação jurídico-negocial levada a cabo em nome da SpQ ou SA em formação (e também a atividade delitual), ou se o seu âmbito é mais restrito.

Como se indicou, há quem (a respeito da responsabilidade negocial) entenda, embora em tom crítico, que, em face do art. 40.º, n.º 1, a responsabilidade do património social é plena[lvi]. Esta disposição legal tem de se conjugar, no entanto, com o disposto no art. 19.º; donde resulta uma solução próxima do mencionado Anteprojeto de LSQ. Ou seja, tal responsabilidade apenas se justifica em relação à atividade autorizada no próprio contrato de sociedade e à que o legislador considera economicamente justificada (casos previstos no n.º 1 do art. 19.º) [lvii] . Nos demais casos, há uma atuação ultra vires (cfr. adiante) cujos efeitos apenas poderão ser assumidos, após o registo, pela SpQ ou SA já devidamente constituída, nos termos do art. 19.º, n.º 2, ou nos termos gerais.

Quer dizer, enquanto a SpQ e a SA se mantiverem como sociedades em formação, pela atuação dentro dos limites do art. 19.º, n.º 1, responde o património social e, nos termos a esclarecer a seguir, as pessoas indicadas no art. 40.º, n.º 1. Pela eventual atuação fora desse quadro – e, portanto, ilegítima – não se justifica a responsabilidade do património social;apenas respondendo os agentes e os sócios que a hajam autorizado (art. 40.º, n.º 1, 1.ª parte). Note-se, contudo, que nada impede a introdução no contrato de sociedade de uma cláusula em que se reconheça à sociedade um poder de atuação geral (cfr. o art. 19.º, n.º 1, al. d) ). Se tal suceder, a responsabilidade da sociedade pode ser «plena».

Respondendo o património social, coloca-se, ainda, a questão de saber, por um lado, se a responsabilidade das pessoas mencionadas no art. 40.º, n.º 1, é subsidiáriaou solidária e, por outro lado, que tipo de responsabilidade têm os sócios referidos na parte final (aqueles que não tenham autorizado os negócios realizados), i. e., se a sua responsabilidade se coloca no mesmo plano da dos demais responsáveis ou num plano diferente. [lviii] Em nenhum dos casos, a resposta é clara e inequívoca[lix]; seguro é apenas que, em última instância, a responsabilidade é da sociedade.

Na verdade, quanto à responsabilidade do agente– aquele que praticou o ato donde ela deriva, maxime, gerente ou administrador já formalmente designado –, concebe-se que ela seja ato a ato [lx] e seja de primeira linha (solidária, hoc sensu). Por duas razões: como meio de pressão para que o registo seja promovido rapidamente e para maior proteção de quem contrata com uma sociedade ainda sem a devida publicidade legal (agilizando do mesmo passo a sua atuação no tráfico jurídico)[lxi].

Quanto à responsabilidade dos sócios, pode afirmar-se o seguinte: i) se a atuação tiver sido diretamente autorizada no contrato de sociedade (cfr. o citado art. 19.º, n.º 1, al. d)), enquadrando-se no âmbito desta autorização formalmente conferida por todos os sócios (cfr. também o art. 37.º), uma vez que se trata de uma sociedade não registada, sem o benefício da responsabilidade limitada, o natural é que os sócios respondam, perante os credores sociais, como os sócios de uma sociedade civil (cfr. o art. 2.º do CSC), sendo o art. 40.º, n.º 1, de interpretar neste sentido; ii) se a atuação não estiver coberta por tal autorização mas respeitar ao exercício normal da atividade de um estabelecimento dado como entrada ou adquirido ao abrigo de cláusula do pacto social, ou tratando-se de outra das situações enquadráveis no art. 19.º, n.º 1, segundo os mesmos princípios gerais, o regime deveria ser idêntico, até porque, subscrevendo o pacto social, todos os sócios terão de algum modo consentido na atividade em causa e são potencialmente beneficiários da mesma; pode, no entanto, argumentar-se que, a menos que tenha existido uma autorização especial, ato a ato, a hipótese cai na segunda parte daquele art. 40.º, n.º 1, que, assim, conteria uma norma especial de responsabilidade limitada dos sócios das sociedades em causa, apesar de não registadas.

Neste caso, coloca-se, ainda, o problema de saber se esta responsabilidade é externa, perante os credores sociais, embora circunscrita ao valor das entradas de cada um porventura acrescido de valores já recebidos a título de lucros ou reservas, ou se é uma simples responsabilidade perante a sociedade, pela integração do património social (de garantia) com o valor das entradas em dívida e o eventual valor de lucros ou reservas já recebidos, isto é, relacionada com a garantia constituída por este património[lxii]. Quanto a tal problema, embora no Anteprojeto de LSQ a solução fosse a primeira[lxiii], a adjunção às entradas dos lucros e reservas parece mais de acordo com a segunda[lxiv].

No que concerne à quarta questão, afigura-se que a responsabilidade dos agentes, prevista no art. 40.º, n.º 1, será de aferir negócio a negócio (ou ato a ato)[lxv]; o mesmo sucedendo com a responsabilidade dos sócios autorizadores, por atuação ultra vires. A restante responsabilidade dos sócios, dentro dos limites do art. 19.º, n.º 1, tem caráter mais geral, como se referiu, a respeito da questão anterior.

A quinta questão respeita, ainda, à responsabilidade das pessoas que tiverem atuado em nome da sociedade (agentes): têm elas de ser gerentes ou administradores já formalmente designados, no contrato de sociedade ou em deliberação dos sócios? Há quem assim o entenda, mas a resposta só pode ser negativa[lxvi]. Com efeito, por um lado, a responsabilidade em causa tanto se refere à atividade desenvolvida em nome da sociedade dentro dos limites do art. 19.º, n.º 1, como a eventuais negócios fora desses limites; por outro lado, faltando o registo, em geral, quem contrata com a sociedade pode não saber se há ou não gerentes ou administradores formalmente designados, quem são e se quem se afirma, expressa ou tacitamente, como representante da sociedade tem efetivamente os poderes que se arroga (cfr. adiante). Ora, sobretudo quando há uma atuação ultra vires, alguém deve ser responsável perante a contraparte no negócio, sendo este o sentido fundamental do art. 40.º, n.º 1, primeira parte; e, na falta de registo, a assimetria informativa existente deve jogar contra o agente[lxvii].

Em todo o caso, por um lado, tem de se tratar de um agente pertencente à esfera dos gerentes ou administradores e dos sócios (integrantes da superstrutura societária da organização produtiva em apreço, formalmente e/ou de facto) ou que tenha atuado motu proprio,ainda que sem poderes de representação . Um simples representante voluntário (mandatário ou procurador) e as pessoas dotadas de poderes de representação nos termos dos arts. 248.º e ss. do CCom e 115.º, n.º 3, do CTrab (pertencentes à infraestrutura empresarial da organização) não devem considerar-se, pelo menos em geral, abrangidas. Por outro lado, justifica-se incluir no conceito os respetivos mandantes ou constituintes (gerentes ou administradores que autorizaram a sua atuação), tal como sucede com os sócios que hajam autorizado a atuação em causa.

Vejamos a sexta questão, de índole mais geral e envolvendo aspetos dogmáticos mais vincados. Afirmou-se acima que a SpQ e a SA em formação ativadas constituem já efetivos e atuais centros de atividade produtiva (CAP), legalmente autorizados a atuar nos termos do art. 19.º, n.º 1, sendo a atividade desenvolvida em nome da sociedade e respondendo o património social por essa atividade autorizada.

Quer dizer, por um lado, estamos perante CAPs societários formalmente instituídos e delimitados, que levam a cabo uma atividade própria, separada da dos respetivos membros, gerentes ou administradores e demais pessoas que os integram; considerando o legislador justificada a sua existência quando esteja envolvido um estabelecimento ou empresa comercial, dado como entrada ou adquirido ao abrigo de cláusula do contrato de sociedade (art. 19.º, n.º 1, al. b)), e admitindo, além disso, que os fundadores autorizem o imediato exercício da atividade social, definindo o âmbito respetivo (art. 19.º, n.º 1, al. d)). Neste sentido, são juridicamente dotadas de uma certa capacidade de agir, de facto e negocial (jurisgénica), geral ou limitada; formam uma unidade de ação e de efeitos (Wirkungseinheit) ; e são regidos por um princípio de separação da atividade.

Por outro lado, ao exercício de tal atividade corresponde um património de garantia – o património social –, sendo a garantia reforçada pelos patrimónios pessoais das pessoas indicadas no n.º 1 do art. 40.º (primeira parte). Como é próprio das sociedades em geral, o património social está especialmente afeto à atividade juridicamente autorizada: esta é desenvolvida num quadro patrimonial autónomo, com ou sem adicional subjetividade jurídica[lxviii]. Ou seja, as sociedades em causa são regidas por um princípio de autonomia patrimonial – separação e afetação especial do património social à atividade e à garantia dos credores sociais.

Neste sentido, ao centro de atividade em causa corresponde um centro de imputação jurídica : perfeito, se se lhe reconhecer adicional subjetividade jurídica; ou imperfeito, se, por falta desta, as situações jurídicas são formalmente encabeçadas pelos respetivos sócios enquanto tais, integrando um património coletivo destes, separado dos respetivos patrimónios individuais. E à referida capacidade de agir corresponde uma determinada capacidade de gozo : da sociedade em si – enquanto novo sujeito jurídico – ou dos respetivos sócios enquanto componente fundamental mas variável da mesma (formando uma coletividade unificada mas não subjetivada de membros variáveis, uma universitas personarum, titular do património): não podendo os direitos e vinculações ser imputados diretamente à sociedade, por falta de subjetividade jurídica, serão, através dela, (formalmente) imputados ao seu elemento constituinte fundamental.

Diferentemente do que sucedeu no passado, atualmente parece prevalecer a tese da subjetividade jurídica das sociedades em formação[lxix]. E o sujeito jurídico é o mesmo que existirá após o registo, ainda que submetido a regimes jurídicos diferenciados. Na verdade, há uma substancial identidade – de facto e jurídica – entre a SpQ e a SA em formação, tal como acaba se ser caracterizada, e a posterior sociedade registada: trata-se da mesma sociedade em diferentes estádios. O próprio art. 19.º, n.º 1, o confirma, ao dispor que, com o registo, a SpQ ou SA «assume» – sem mais e inelutavelmente – os direitos e vinculações relativos à mesma quando ainda em formação, mormente à atividade por ela desenvolvida. Apenas relativamente à atividade que porventura haja sido desenvolvida fora do quadro definido neste preceito (ultra vires)se torna necessário um ato de assunção dos mesmos pela sociedade registada, nos termos gerais ou nos termos especiais dos nºs 2 e 3 do mesmo artigo 19.º, destinados a favorecer tal assunção.

Quando do contrato de sociedade conste uma permissão geral de imediato exercício da atividade social, esta identidade subjetiva entre a sociedade em formação e a sociedade definitiva atinge a sua expressão máxima. Podendo dizer-se que, tal como a sociedade registada, a SpQ e SA em formação têm uma capacidade jurídica geral, de agir e de gozo, ainda que a mesma possa não compreender situações jurídicas que, por razões especiais, pressupõem uma sociedade registada. Faltando tal permissão geral, afigura-se haver uma diferença substancial entre a capacidade jurídica da sociedade em formação e da sociedade registada: a sociedade será a mesma, o sujeito jurídico será o mesmo, mas a capacidade será diferente.

A sétima questão – no essencial, relativa à vinculação das SpQ e SA em formação e, tal como a anterior, importante, designadamente, para determinar por que dívidas responde o património social – não tem substancial resposta na lei¸ e também não é comummente tratada pela doutrina. O problema respeita, como a aludida responsabilidade pela atividade desenvolvida em nome da sociedade, às relações externas; e, quanto a elas, falta uma norma semelhante à que vigora para as relações internas, segundo a qual estas são regidas, via de regra, com as devidas adaptações, pelas disposições do contrato de sociedade e da lei, salvo as que pressuponham o contrato registado (art. 37.º).

Sendo assim, perante uma tal lacuna do CSC, insuscetível de ser suprida por analogia com outras disposições deste, poderia ser-se tentado a aplicar, a título subsidiário, o regime societário geral, constante do CC (art. 2.º)[lxx]. Daí resultaria, designadamente (arts. 996.º e 985.º do CC): i) terem poderes de representação «orgânica» os gerentes ou administradores designados; ii) na falta de designação destes, todos os sócios deteriam poderes de representação (o que está em sintonia com o disposto no art. 253.º, n.º 1); iii) na ausência de regulação no contrato de sociedade, cada um deles teria poderes para, por si só, vincular a sociedade; iv) estando a oponibilidade a terceiros de boa fé de uma eventual regulação do assunto no contrato de sociedade dependente de registo, como este falta, ela não valeria em relação a eles[lxxi].

Contra uma tal aplicação, pode, no entanto, invocar-se o seguinte: i) a atividade representativa em causa vai afetar o património social, nos termos expostos; ii) extrai-se do art. 19.º que o legislador quis circunscrever essa afetação à atividade autorizada no contrato de sociedade e economicamente justificada; iii) a atividade em causa é levada a cabo, perante os terceiros, em nome de uma SpQ ou SA – com ou sem a indicação de que se trata de uma SpQ ou SA em formação (não registada); iv) havendo já um estabelecimento a funcionar, o grosso dos atos correspondentes à gestão normal do mesmo estarão abrangidos pelas regras de representação dos arts. 248.º e ss. do CCom e 115.º, n.º 3, do CTrab; v) sendo assim, quanto aos restantes – praticados no exercício de poderes de representação «orgânica», incluindo os de constituição de representantes voluntários –, faz mais sentido aplicar a regra legal do tipo social em apreço, i. e., no caso, a da representação conjunta por maioria (arts. 261.º e 408.º); uma eventual regulação do assunto no contrato de sociedade, faltando a necessária publicidade legal, será inoponível aos terceiros (de boa fé), embora possa ser invocada por eles, se lhes for favorável; vi) porque falta o registo, este sistema obriga os terceiros – na prática, em negócios importantes – a fazer investigações porventura complexas, correndo o risco, não o fazendo, de a sociedade poder vir a opor-lhes a sua não vinculação, com o inerente entrave do tráfico jurídico em que intervêm as SpQ e SA em formação, mas, por um lado, este entrave está em sintonia com o espírito do sistema (favorável a um tecido produtivo de sociedades registadas), por outro lado, não ficando a sociedade vinculada, haverá a responsabilidade pessoal do agente, nos termos do art. 40.º, n.º 1.

Note-se, ainda, que, nas SA (e SCA) em formação, o poder de dispor do valor das entradas em dinheiro realizadas (depositada em IC), designadamente, para cumprimento de compromissos assumidos, está sujeito ao prescrito no art. 277.º, n.º 5[lxxii].

Embora a oitava questão – consistente em saber como se concilia a responsabilidade do património das SpQ e SA em formação com o princípio da exata formação do capital – já não tenha a ver diretamente com o regime jurídico das mesmas e seja demasiado complexa para ser aqui analisada, importa fazer-lhe uma breve referência. As sociedades de direito comercial – mormente as SpQ e SA, devido à responsabilidade limitada que as caracteriza – estão submetidas a um exigente, embora controvertido e com tendência erosiva sobretudo nas SpQ, princípio de efetividade constitutiva (ou exata formação) e conservação da cobertura patrimonial do respetivo capital estatutário[lxxiii]. Em rigor, as SpQ e SA, quando surgem como tais com o registo definitivo, formalmente dotadas de personalidade jurídica e com responsabilidade limitada, deveriam, pelo menos em termos nominais, apresentar um património líquido não inferior ao respetivo capital social (nominal ou estatutário). Ora, quando a respetiva atividade social já foi exercida anteriormente, há o risco de tal não acontecer.

O problema foi amplamente discutido na Alemanha, começando a jurisprudência e a doutrina por afirmar a existência de um princípio de não pré-oneração da sociedade (Vorbelastungsverbot) sucessivamente atenuado – ainda presente, em versão atenuada, no indicado Anteprojeto de LSQ –, entretanto abandonado e substituído por um princípio mais flexível de responsabilidade pelo défice de cobertura patrimonial do capital social eventualmente existente à data do registo (Differenzhafung), que permite reconhecer às Srl (SpQ) e SA em formação subjetividade jurídica e uma capacidade jurídica semelhante à das sociedades já registadas, favorecendo a sua participação no tráfico jurídico[lxxiv]. Em face do CSC, também há quem defenda este princípio de responsabilidade, sustentando-o na parte final do art. 19.º, n.º 3[lxxv]. Vejamos.

No regime do capital, distinguem-se três aspetos: i) o da exigência legal de um capital estatutário mínimo, que atualmente apenas existe, com caráter geral, para as sociedades anónimas (art. 276.º, n.º 5)[lxxvi], embora subsista, também para as SpQ, com uma expressão muito significativa, em setores como o financeiro, segurador e transportador; ii) o da exigência legal de cobertura patrimonial da cifra do capital no momento da constituição da sociedade (requisito de efetividade ou integridade constitutiva), completada com a exigência de posterior efetividade da mesma cobertura – traduzida no dever de adotar medidas de saneamento financeiro em caso de afetação grave dessa cobertura derivada de perdas sociais –, muito enfraquecida em face da atual redação dos arts. 35.º e 171.º, donde resulta, em última análise, que, se for essa a vontade da coletividade social, esta falta grave de efetividade superveniente apenas tem de ser devidamente publicitada (art. 171.º, n.º 3); iii) e o da proibição da afetação, direta ou indireta, do valor do património social (situação líquida ou capital próprio) em benefício dos sócios se já existir ou daí resultar uma falta de integral cobertura patrimonial do capital estatutário (princípio de intangibilidade), que a lei reforça, designadamente, acrescentando à cifra de referência de base da intangibilidade do capital a da reserva legal.

A questão que nos ocupa tem a ver com o segundo aspeto; e será um problema de falta de cobertura, efetividade ou integridade constitutiva (exata formação) se o ponto de referência for o registo ou um problema de efetividade superveniente, se se considerar que o momento do nascimento das SpQ e SA é o do respetivo ato constitutivo – nascendo elas nessa altura, como SpQ e SA em formação. Contra esta segunda maneira de ver, pode invocar-se que, atualmente, em geral, o único controlo de legalidade do processo constitutivo da sociedade é levado a cabo pela entidade registadora competente e que a SpQ e SA apenas existem como tais – com as características próprias do tipo social em causa – e como pessoas jurídicas (formais) com o registo. Note-se, porém, por um lado, que nada impede um controlo pelo registador dos requisitos constitutivos tomando como referência o momento da constituição, sendo essa até a solução mais natural; por outro lado, que, verdadeiramente, a SpQ e SA já existe antes do registo, embora como SpQ e SA em formação (a sociedade é a mesma); e, ainda, que, decorrendo a eventual falta de cobertura do capital de perdas resultantes de uma atuação compreendida no art. 19.º, n.º 1, fundando-se numa cláusula do contrato de sociedade que autoriza o imediato exercício da atividade social – em maior ou menor medida, podendo tratar-se de uma autorização geral – ou sendo relativa a um estabelecimento, dado como entrada ou adquirido, quem contrata com a sociedade já registada não pode dizer-se surpreendido com ela, porque, com o registo, fica legalmente publicitada a existência dessa atividade pré-registal, tanto potenciadora de lucros como envolvendo o risco de perdas[lxxvii].

Por conseguinte, respeitando a SpQ ou SA, na sua atuação no tráfico jurídico, os limites do art. 19.º, n.º 1, a questão em apreço pode considerar-se, em boa verdade, uma não questão. Noutros termos, o problema da tutela dos credores da sociedade registada (de que o regime do capital é manifestação importante) – mormente em caso de insolvência – só se coloca, verdadeiramente, em relação a uma eventual atuação da sociedade em formação ultra vires. Neste caso, as situações jurídicas respetivas não são imputáveis à SpQ ou SA enquanto sociedade em formação, só o podendo ser à sociedade registada; e, para que o sejam a esta, torna-se necessário que ela as assuma, nos termos gerais ou nos termos especiais do art. 19.º, n.ºs 1 e 2.

Admita-se o caso da insolvência prematura da sociedade registada. Havendo credores pré-registais por negócios jurídicos fora da capacidade da sociedade em formação, eles não serão, em princípio, credores sociais e, portanto, não concorrem com estes. Se o forem, sê-lo-ão em virtude de um ato de assunção desses negócios pela sociedade registada, ato esse sujeito, designadamente, às regras insolvenciais da revogação ou resolução dos atos prejudiciais à massa (arts. 120.º e ss. do CIRE). Se a SpQ ou SA em formação desenvolveu uma atividade ultra vires e foram usados recursos para regularizar as respetivas transações, com eventuais perdas, redundando numa falta de integral cobertura do capital estatutário à data do registo, deverão considerar-se responsáveis – não apenas pela falta de cobertura, mas pelos prejuízos causados – aqueles que realizaram e aprovaram tal prática, nos termos dos arts. 72.º e ss. e 83.º (porventura também 71.º). [lxxviii]

Conclui-se esta análise com a nona questão, relativa à condição e ao enquadramento jurídicos das sociedades em apreço. Em sentido lato, trata-se de sociedades irregulares. Em sentido estrito, a designação que se lhes ajusta é, no entanto, como se antecipou, a de sociedades em formação ; importando distingui-las das SpQ e SA irregulares por falta de registo, para as quais há que encontrar um regime jurídico apropriado. A própria lei é clara no sentido de que – nos arts. 37.º a 40.º (e também 19.º) – só se ocupa das sociedades «no período compreendido entre a celebração do contrato de sociedade e o seu registo definitivo»; ou seja, de uma situação transitória, estando a correr normalmente o processo tendente ao registo.

Tal como se viu a respeito das sociedades preliminares, também aqui haverá uma sociedade irregular – e não uma «regular» sociedade em formação [lxxix] – quando os interessados houverem constituído a mesma sem a intenção de a registar, quando tiverem abandonado o projeto de a registar, quando o registo se revelar inviável e a sociedade se mantenha ativa e quando já haja decorrido um prazo razoável para promover o registo[lxxx]. [lxxxi]

3. Observações finais

O tema das sociedades preliminares e das sociedades de direito mercantil em formação (mormente, SpQ e SA em formação), como fenómeno distinto das sociedades irregulares em sentido estrito, mostra-se mais complexo do que aquilo que pode transparecer da exposição acabada de fazer. Em especial, no que respeita às sociedades em formação, o texto reflete, em grande medida, quanto ao fundo, a atual interpretação dominante dos textos legais, tendo subjacente o modelo alemão da Vorgesellschaft; mas é importante notar a existência de ordenamentos jurídicos que tratam da matéria de maneira diferente, aplicando com mais rigor, no domínio das sociedades de capitais ou das sociedades em geral, o princípio de que, por razões de boa ordenação económica, o tecido produtivo (pelo menos nas zonas preferenciais da economia) deve ser constituído por sociedades formal e publicamente instituídas (registadas), após competente controlo de legalidade. É o caso, na Europa, designadamente, do direito italiano e do direito francês.

Em boa medida, o texto do art. 40.º, n.º 1, salvo a parte final, e o art. 19.º favorecem, mesmo, uma construção das SpQ e das SA em formação ativadas como organizações ou centros de atividade produtiva que, nos termos expostos, estão legalmente reconhecidas como tais, autorizadas a atuar no tráfico jurídico, mas não como centros de imputação jurídica: a imputação jurídica dos efeitos dessa atuação à sociedade estaria dependente da condicio iuris do registo, que faz passar a sociedade da condição de mera sociedade em formação para a de sociedade definitiva, perfeita ou completa. Na base de tal conceção, pode ver-se a referida coordenada económica geral, mas, sobretudo, a ideia de que a sociedade deve, ao tempo do registo, para tutela de quem contrata com a mesma já perfeita, surgir sem uma prévia afetação da cobertura patrimonial do respetivo capital estatutário (Vorbelastungsverbot).

Todavia, por um lado, a construção em apreço pode considerar-se incompatível com a parte final daquele art. 40.º, n.º 1, razoavelmente interpretado; por outro lado, havendo a assunção automática de negócios e situações jurídicas prevista no art. 19.º, n.º 1, este objetivo primordial, na realidade, não é atingido; acrescendo, ainda, que se trata de um excesso de meio para atingir o fim visado, como o revela a evolução do direito alemão. Justifica-se, pois, a sua rejeição, em favor da tese exposta, que encara as SpQ e SA em formação ativadas como centros de atividade produtiva e de correspondente imputação jurídica, posição que vimos defendendo, no ensino oral (e respetivos documentos de apoio), sobretudo desde que, em 2003, assumimos a regência do Direito Comercial na UCP e, já antes, expusemos quando tivemos a regência da mesma disciplina na FDL (mormente, no ano letivo de 1991/92).

O problema desloca-se, então, para outro domínio – o da capacidade das SpQ e SA em formação; ou, noutra perspetiva, o do âmbito da legitimidade da respetiva atuação e da correspondente imputação ou capacidade de gozo. Na Alemanha, evoluiu-se para a crescente afirmação de uma capacidade geral (à semelhança do que também se defende para a sociedade em liquidação). O atual quadro legal do CSC, como se observou, não permite, no entanto, dar este passo. Em face dele, a solução que melhor concilia os interesses envolvidos, respeita a assinalada coordenada geral de ordem económica e é conforme ao crescentemente afirmado princípio da transparência é a que se expôs no texto.

O tema é complexo, já se disse; merecendo, porventura, de um ponto de vista juscientífico, maior desenvolvimento e um diálogo com a jurisprudência e os autores estrangeiros mais representativos, que aqui omitimos[lxxxii]. A opção justifica-se, contudo, por razões pragmáticas: com a introdução dos procedimentos simplificados de constituição de SpQ e SA, as figuras em apreço perderam grande parte da sua importância prática. O que parece subsistir de verdadeiramente relevante, do ponto de vista económico e social, são as sociedades irregulares stricto sensu, de que não tratamos.



[i] Abreviadamente, CSC. Salvo se do contexto resultar coisa diferente, os preceitos legais sem indicação da fonte pertencem a este Código. Das demais siglas utilizadas, salientam-se: CC – Código Civil; CCom – Código Comercial; CDP – Cadernos de Direito Privado; CRCom – Código do Registo Comercial; CVM – Código dos Valores Mobiliários; FDL – Faculdade de Direito de Lisboa; LSC – ley de sociedades de capital; LSQ – Lei das sociedades por quotas (1901); MP – Ministério Público; ProjCS – Projecto de Código das Sociedades (1983); RDE – Revista de Direito e Economia; RDS – Revista de Direito das Sociedades; RNPC – Registo Nacional das Pessoas Coletivas; ROC – revisor oficial de contas; SA – sociedade anónima; SCA – sociedade em comandita por ações; SCS – sociedade em comandita simples; SNC – sociedade em nome coletivo; SpQ – sociedade por quotas; SuQ – sociedade unipessoal por quotas; UCE – Universidade Católica editora; UCP – Universidade Católica Portuguesa.

[ii] Acerca destas, cfr., por ex., Mendes, Evaristo, Modelo económico constitucional e Direito Comercial , in AAVV, Direito e Justiça – Estudos em memória do Professor Doutor Paulo M. Sendin, UCE, Lisboa, 2012, pp. 167 e ss., 186 e ss., 245 e ss., com mais indicações.

[iii] Ou negócio jurídico unilateral, no caso das SuQ e SA unipessoais.

[iv] Se a constituição da sociedade envolver a entrada de bens cuja transmissão esteja sujeita a forma mais solene, como imóveis, o contrato de sociedade fica sempre sujeito à mesma exigência de forma (art. 7.º, n.º 1, e art. 981.º, n.º 1, do CC).

[v] Cfr. os arts. 5.º, 19.º e s., 37.º e ss., 111.º e s. e 120.º, e 140.º (quanto à transformação constitutiva), bem como, no CRCom, os arts. 3.º, n.º 1, al. a) (cfr. também a al. r)), 15.º e 17.º, 35.º e s., 53.º-A, 61.º e ss. Vejam-se também, neste Código, acerca das complementares publicações obrigatórias, os arts. 70.º e ss. Note-se que, nos termos daquele art. 5.º, uma sociedade só existe como sociedade de um dos tipos mercantis a partir do registo. No CSC, acerca do controlo de legalidade, cfr. por ex., Labareda, João, Sociedades Irregulares – Algumas Reflexões , in AAVV, Novas Perspectivas do Direito Comercial”, Almedina, Coimbra, 1988, pp. 177-204, 187, e as demais indicações constantes da nota 31.

[vi] Cfr. o art. 174.º, n.º 1, al. e), onde se dispõe que os direitos da sociedade contra os fundadores, os sócios, os gerentes ou administradores, etc., bem como os direitos destes contra a sociedade, prescrevem no prazo de cinco anos, contados a partir da prática do ato em relação aos atos praticados em nome de sociedade irregular por falta de forma ou de registo , e, por ex., Labareda, Sociedades Irregulares (1988), cit., pp. 180 e ss. (com um conceito restrito de sociedade irregular: sociedade com objeto e de tipo comercial, a que só falta escritura ou registo – pp. 184 e ss. e 203), Duarte, Rui Pinto, As sociedades irregulares do ponto de vista do Direito Comercial , «Fisco» , ano 1, 1988, 15 Out., pp. 16-20, 17 e ss. (discutindo a adequação da expressão), Serens, M. Nogueira, Notas sobre a sociedade anónima, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1997, p. 25, Ascensão, José de Oliveira, Direito Comercial, IV – Sociedades Comerciais, Lisboa, 2000, pp. 96 e ss. (assinalando o caráter particular do termo, no presente contexto), Abreu, J. M. Coutinho, Curso de Direito Comercial, II – Das Sociedades, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 2021, p. 125, Antunes, José Engrácia, Direito das Sociedades, 10.ª ed., Porto, 2021, pp. 205 e ss., Cordeiro, A. Menezes, Direito das Sociedades, I, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2020, com a colaboração de Cordeiro, A. Barreto Menezes, pp. 463, 466 e ss., 469 e ss., 486 e ss., Pita, Manuel, O regime da sociedade irregular e a integridade do capital social, Almedina, Coimbra, 2004, pp. 275, 283 e ss., Castelo, Higina Orvalho, O acordo a que se reporta o artigo 36.º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais – Natureza e validade , «DataVenia» , ano 4, n.º 5, 2016, pp. 267-310, 271 e ss., Gonçalves, Diogo Costa,Personalidade e Capacidade das Sociedades Comerciais, Principia, Cascais, 2019 p. 36, Almeida, A. Pereira de, Sociedades Comerciais, Valores Mobiliários, Instrumentos Financeiros e Mercados, I - As Sociedades Comerciais, Almedina, Coimbra, 2022, pp. 123 e ss. Veja-se, ainda, o art. 46.º do Projeto de Código das Sociedades de 1983, editado pelo Ministério da Justiça. O art. 7 da Diretiva 68/151/CEE, atual art. 7, n.º 2, da Diretiva 2017/1132, utiliza a expressão sociedade em formação, dispondo: «Se foram praticados atos em nome de uma sociedade em formação, antes de ela ter adquirido personalidade jurídica, e a sociedade não vier a assumir as obrigações daí decorrentes, as pessoas que os realizaram são solidária e ilimitadamente responsáveis por tais atos, salvo convenção em contrário.» O preceito tem tradução direta no art. 40.º, n.º 1, do CSC, e relaciona-se também com o art. 19.º, referidos adiante. Um tratamento sistemático do tema do presente artigo requereria uma análise do regime nacional em articulação com ele. Como os propósitos são mais limitados – interessa-nos salientar tão só algumas questões suscitadas pelo direito vigente -, fica apenas esta nota.

[vii] Acerca da figura e das várias questões que suscita, cfr., por ex., Correia, A. Ferrer, As sociedades comerciais no período da constituição , in Estudos Vários de Direito, Coimbra, 1982, original de 1971, pp. 507-545, 508 e ss., A sociedade por quotas de responsabilidade limitada nos Projectos do futuro CSC , em Temas de Direito Comercial e Direito Internacional Privado, Almedina, Coimbra, 1989, pp. 73-121, 87 e s., e A sociedade por quotas de responsabilidade limitada segundo o CSC , ibidem, pp. 123-169, 138 e ss., Ascensão, Sociedades Comerciais (2000), cit., pp. 99, 102 e ss., Pita, O regime da sociedade irregular (2004), cit., pp. 283 e ss., 300 e ss. (englobando as sociedades irregulares gerais a que aludimos adiante, mas restringindo o âmbito de aplicação (“literal”) do art. 36.º, n.º 2, quanto aos seus pressupostos), Serens, Notas sobre a sociedade anónima (1997), cit., pp. 23 e ss., 28 e s., Abreu, Das Sociedades (2021), cit., pp. 124 e ss., Antunes, Direito das Sociedades (2021), cit., pp. 207 e ss., Cordeiro, Direito das Sociedades (2020), cit., pp. 461, 463, 466 e ss., 469 e ss., 475 e ss. (modalidade de sociedade irregular por incompletude, de pré-sociedade ou de sociedade em formação), Ramos, Elisabete, Anotação ao art. 36.º do CSC, in Código das Sociedades Comerciais em Comentário, coord. de Coutinho de Abreu, I, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2017, pp. 580 e ss., Santos Júnior, Eduardo, Anotação ao art. 36.º, in Código das Sociedades Comerciais Anotado, coord. de Menezes Cordeiro, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2020, pp. 238 e ss., Castelo, O acordo a que se reporta o artigo 36.º, n.º 2 (2016), cit., pp. 277 e ss., todos com mais indicações. Vejam-se ainda Correia, A. Ferrer / Caeiro, António, Lei das Sociedades Comerciais (Anteprojecto), «BMJ», 1969, n.º 185, pp. 25-81, e n.º 191, pp. 5-137, «BMJ» 185, pp. 43, 46 e ss.

[viii] Cfr. também Ascensão, Sociedades Comerciais (2000), cit., pp. 99, 103 e s. Como indicação geral, pode considerar-se razoável o prazo de 1 ano, como se colhe no art. 4.º, n.º 1, do CSC e no art. 61.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, do Regime do RNPC (cfr. também Pita (2004), pp. 500 e ss., embora a respeito da sociedade já com título constitutivo válido). Na LSC espanhola, cfr. o art. 39. Faltando a forma prescrita para a constituição das sociedades de direito comercial, parte da doutrina considera nulo o contrato por vício de forma (e admite a ação do Ministério Público), mesmo quando haja uma simples sociedade preliminar, ou sem distinguir esta da sociedade irregular geral: cfr., por ex., Correia, A sociedade por quotas de responsabilidade limitada nos Projectos do futuro CSC e A sociedade por quotas de responsabilidade limitada segundo o CSC , em Temas de Direito Comercial e Direito Internacional Privado (1989), cit., pp. 87 e 138, Serens, Notas sobre a sociedade anónima (1997), cit., pp. 24 e ss., e 31, Abreu, Das Sociedades (2021), cit., pp. 124 e s. (nulidade especial), Pita, O regime da sociedade irregular (2004), cit., pp. 285 e ss., 300 e ss., 308 e ss. (nulidade sanável, impeditiva do exercício de direitos como o direito à prestação de contas, de conhecimento oficioso, com intervenção do Ministério Público pensada, em especial, para as situações de exercício prolongado da atividade, e sendo competente para a regularização o processo de transformação), e Sociedade nula e sociedade irregular (CSC, jurisprudência e doutrina de Ferrer Correia) , in AAVV, Nos 20 anos do CSC. Homenagem aos Profs. Doutores A. Ferrer Correia, Orlando de Carvalho e Vasco Lobo Xavier, vol. III, Coimbra Editora, 2007, pp. 249-271, em especial, o n.º 7, pp. 263 e ss., 269 e ss. No polo oposto, cfr., designadamente, Castelo, O acordo a que se reporta o artigo 36.º, n.º 2 (2016), cit., pp. 293 e ss., 299 e ss., e o Ac. do STJ de 19.11.1996 (Machado Soares), CJ-STJ, 1996, III, pp. 107 e s.

[ix] Correia, A. Ferrer / Xavier, Vasco Lobo / Caeiro, António / Coelho, Maria Ângela – Sociedade por quotas de responsabilidade limitada. Anteprojeto de Lei – 2.ª redação e exposição de motivos, separata da RDE, anos 3 e 5, Coimbra, 1979. Dispunha-se neste: «Se, após a conclusão do acordo tendente à constituição da sociedade, mas antes da celebração da escritura pública, os sócios derem início às atividades sociais, são aplicáveis às relações estabelecidas entre eles e com terceiros as disposições das sociedades civis.»

[x] Cfr. a nota anterior.

[xi] Cfr. também, por ex., Correia, A sociedade por quotas de responsabilidade limitada nos Projectos do futuro CSC e A sociedade por quotas de responsabilidade limitada segundo o CSC , em Temas de Direito Comercial e Direito Internacional Privado (1989), cit., pp. 87, 138 e s., Serens, Notas sobre a sociedade anónima (1997), cit., p. 24, Abreu, Sociedades Comerciais (2021), cit., p. 124, Antunes, Direito das Sociedades (2021), cit., p. 207, e Ramos, Anotação ao art. 36.º do CSC (2017), cit., p. 583.

[xii] Note-se, porém, que esta exigência não resulta do texto do CSC. Cfr. infra e, por ex., Antunes, Direito das Sociedades (2021), cit., pp. 207 e s., Cordeiro, Direito das Sociedades (2020), cit., pp. 476 e s. (pode tratar-se de acordo incipiente), Santos Júnior, Anotação ao artigo 36.º (2020), p. 241, nota 14, Castelo, O acordo a que se reporta o artigo 36.º, n.º 2 (2016), cit., pp. 277 e ss., 287 e ss., 291 e s. Engrácia Antunes identifica as seguintes situações: acordo verbal; convénios preliminares ou mitigados tendentes à constituição da futura sociedade; contrato-promessa; e contrato definitivo ainda sem a forma devida.

[xiii] No sentido da qualificação da sociedade como civil, cfr. Correia, A sociedade por quotas de responsabilidade limitada nos Projectos do futuro CSC e A sociedade por quotas de responsabilidade limitada segundo o CSC , em Temas de Direito Comercial e Direito Internacional Privado (1989), cit., pp. 88 e 139 (assinalando que a sociedade civil se basta com qualquer forma). Para Pinto Furtado, Curso de Direito das Sociedades, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2004, p. 211, haveria a conversão legal de uma sociedade comercial sem título constitutivo válido, numa sociedade sob forma civil. Contra, por ex., Abreu, Das Sociedades (2021), cit., pp. 125 e s., para quem a sociedade, tendo objeto comercial, é comercial, citando o Ac. do STJ de 27.06.2000, CJ-STJ 2000, II, p. 129. Ascensão, Sociedades Comerciais(2000), cit., pp. 24 e ss. e 105, considera que, se ainda não se adotou um tipo societário mercantil, a sociedade será civil, mas se já há a adoção de um tipo, ela será comercial. Para mais indicações, cfr. Antunes, Direito das Sociedades (2021), cit., pp. 208 e s., Cordeiro, Direito das Sociedades (2020), cit., pp. 477 e s. (a haver uma sociedade, ela será civil), e, sobretudo, Ramos, Anotação ao artigo 36.º (2017), cit., pp. 585 e ss., Santos Júnior, Anotação ao artigo 36.º (2020), cit., pp. 241 e s., nºs à margem 15 e 16, Castelo, O acordo a que se reporta o artigo 36.º, n.º 2 (2016), cit., passim. Serens, em Notas sobre a sociedade anónima (1997), cit., p. 25, observa que a intenção do legislador foi a de considerar o fundo social como património autónomo. Cfr. também Correia / Caeiro, Lei das Sociedades Comerciais(1969), cit., «BMJ» 185, pp. 47 e ss.

No domínio do CCom, embora o assunto fosse controvertido, Barbosa de Magalhães, designadamente em Da natureza jurídica das sociedades comerciais irregulares, «Jornal do Fôro», ano 17, 1953, nas pp. 81-107, reconhecia às sociedades irregulares existência jurídica, até à declaração (judicial) da sua inexistência (pp. 81 e ss.), personalidade jurídica (pp. 85, 87 e ss.; aliás, como às sociedades civis – p. 100) e a qualidade de comerciantes (apesar do disposto no art. 104.º), bem como a sujeição à falência (pp. 96 e s., 103 e ss.). Já Ferrer Correia, quanto às sociedades irregulares por vícios do título constitutivo (não mera falta de registo ou publicações obrigatórias), movido por preocupações análogas de proteção dos interesses envolvidos, mas entendendo inconcebível uma declaração de nulidade com eficáciaex nunc, admitia esta nulidade, suscetível de ser invocada a todo o tempo, por qualquer interessado, tendo, porém, a sua declaração como efeito a dissolução da sociedade (substancialmente equivalente àquela solução da eficácia apenas para o futuro), considerando-a, por conversão legal, uma sociedade civil - sujeita às competentes regras das sociedades civis (e do contrato celebrado) e, como tal, dotada da correspondente autonomia patrimonial (mas sem personalidade jurídica) e podendo comportar sócios de responsabilidade limitada (com exclusão dos administradores ou que agissem em nome da sociedade – por força do art. 107.º do CCom) – e afastava a sua qualificação como comerciante: Lições de Direito Comercial, vol. II, Sociedades Comerciais, Coimbra, 1968, pp. 270 e ss., com mais indicações. Donde resulta um especial relevo atribuído à vontade hipotética dos sócios e uma limitação do alcance da coordenada de ordenação económica assinalada no texto, embora o autor a considere (cfr., em especial, as pp. 303 e s.). De entre os demais estudos, tem especial interesse o de Pinto Coelho, J. G., O problema das sociedades irregulares, separata da RFDUL, Lisboa, 1947, utilizando um conceito alargado de sociedade irregular (compreensivo da falta de registo), afirmando a existência de uma comunhão de facto (não contratual ou jurídica), contra as teses da personalidade jurídica e da sociedade civil, negando a qualidade de comerciante, etc. Esta literatura mostra-se, ainda hoje, relevante para ajudar a determinar o regime jurídico das sociedades irregulares s tricto sensu, figura que o legislador quase ignora,no direito vigente; mas tem subjacente um fenómeno distinto do das sociedades preliminares, tal como surgem caracterizadas no texto.

[xiv] No presente contexto, quando falamos em sociedade definitiva, pretendemos referir a sociedade de certo tipo mercantil já formalmente constituída, embora, se a sociedade ainda não se encontrar registada, ela seja, mais rigorosamente, uma sociedade em formação (cfr. infra, n.º 2).

[xv] Cfr. supra, nota 12.

[xvi] Cfr., por ex., Cordeiro, Direito das Sociedades (2020), cit., p. 477.

[xvii] No sentido da nulidade do contrato de sociedade – mas sem distinguir a sociedade preliminar da sociedade irregular –, cfr. as indicações constantes da nota 8, e, ainda, designadamente, Domingues, P. Tarso, Do capital social, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2004, pp. 107, nota 369, e 108, Ramos, Anotação ao artigo 36.º (2017), cit., pp. 583 e ss., todos realçando, no entanto, a especialidade do regime aplicável, e Almeida, Sociedades Comerciais (2022), cit., p. 126. Em sentido oposto, mas englobando injustificadamente as sociedades que qualificamos como irregulares, cfr., por ex., Castelo, O acordo a que se reporta o artigo 36.º, n.º 2 (2016), cit., pp. 293 e ss., 299 e ss., e o citado Ac. do STJ de 19.11.1996. Sobre o assunto, cfr. também Labareda, Sociedades Irregulares (1988), cit., pp. 177 e ss., 187 (distinguindo as sociedades «irregulares» em apreço das sociedades inválidas), Antunes, Direito das Sociedades (2021), cit., p. 209, Cordeiro, Direito das Sociedades (2020), cit., pp. 469 e s. Sobre o possível conhecimento oficioso da nulidade pelos tribunais, embora se desconheçam decisões dos tribunais superiores nesse sentido, cfr. Pita, Manuel, Sociedade nula e sociedade irregular (2007), cit., pp. 251, nota 5, e 270. No entanto, este autor observa, ainda, que o que representaria a «introdução de factores de desorganização na economia (…), potenciando a economia paralela e a concorrência desleal» seria a permissão de desenvolvimento de uma atividade comercial «duradouramente no quadro do regime da sociedade civil» (p. 268).

[xviii] Contra, Almeida, Sociedades Comerciais (2022), cit., p. 126.

[xix] Art. 19.º, n.º 1, al. c), do CSC. Veja-se também o subsequente n.º 2.

[xx] Cfr., ainda, o art. 19.º, n.º 1, do CSC, al. b).

[xxi] Cfr., em especial, os arts. 130.º, nºs 2 e 6, e 133.º, n.º 1.

[xxii] Cfr. também, qualificando a sociedade como comercial, dado o seu objeto, Abreu,Das Sociedades (2021), cit., pp. 125 e s., com mais indicações. Contra, por ex., Cordeiro, Direito das Sociedades (2020), cit., pp. 477 e s. Para mais indicações, cfr. a nota 13.

[xxiii] A respetiva capacidade judiciária geral, ativa e passiva, já decorre do art. 996.º, n.º 1, do CC e é confirmada pelos arts. 12.º, al. d), e 15.º do CPC.

[xxiv] Aprovado pelo DL n.º 158/2009, alterado e republicado pelo DL n.º 98/2015. Na verdade, o art. 3.º não contempla as sociedades civis, mas, para o efeito, há de entender-se aplicável o n.º 1, al. a).

[xxv] Neste sentido, cfr. também Antunes, Direito das Sociedades (2021), cit., p. 208, nota 451, com mais indicações. Cfr., ainda, Cordeiro, Direito das Sociedades (2020), cit., p. 478. Contra, Castelo, O acordo a que se reporta o artigo 36.º, n.º 2 (2016), cit., pp. 308 e s.

[xxvi] Cfr., por ex., Ascensão, Sociedades Comerciais (2000), pp. 161 e ss. (personalidade jurídica), Abreu, Das Sociedades (2021), cit., pp. 131, 168 e s. (subjetividade jurídica, apesar da falta de personalidade), Ramos, Elisabete / Martins, A. Soveral / Costa, Ricardo, Anotação ao art. 40.º do CSC, in CSC em Comentário , coord. de Coutinho de Abreu, I, 2.ª ed., 2017, p. 613 (capacidade jurídica, apesar da falta de personalidade), Cordeiro, A. Menezes, Pessoas coletivas. Introdução (artigos 157.º a 194.º), in Código Civil Comentado, I, coord. de Menezes Cordeiro, Almedina, Coimbra, 2020, p. 422, e A Lei alemã de modernização do Direito das sociedades de pessoas de 2021 , «RDS»,XIV, 2022, p. 19, Gonçalves, Diogo Costa, Pessoa Coletiva e Sociedades Comerciais, Almedina, Coimbra, 2015, pp. 604 e ss., e Personalidade e Capacidade das Sociedades Comerciais (2019), cit., pp. 36 e ss. Considerando que, nas sociedades irregulares lato sensu, há apenas um património autónomo, cfr., por ex., Cunha, Paulo Olavo – Direito das Sociedades Comerciais, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, pp. 257 e s., e, negando a personalidade jurídica, cfr. também Castelo, O acordo a que se reporta o artigo 36.º, n.º 2 (2016), cit., p. 289. Labareda, Sociedades Irregulares (1988), tem uma visão da sociedade e do respetivo regime jurídico capaz de sustentar a sua personalidade ou subjetividade jurídica, ainda que limitada (com capacidade limitada, designadamente quanto ao estatuto ativo do comerciante), mas, sobretudo em face da redação inicial do art. 36.º, n.º 2, acaba por reconduzi-la a um património autónomo (dinâmico), que suporta a atividade social (pp. 188 e ss.), admitindo que, em face da atual redação deste preceito, a posição mereça ser revista (p. 204, nota 3). No domínio do CCom, cfr. também Magalhães, citado na nota 13.

[xxvii] Embora não do tipo (cfr. o art. 5.º e a seguir, no texto). Acerca da aquisição da qualidade de sócio, pelo contrato, cfr., a respeito das SA, o art. 274.º do CSC.

[xxviii] Em boa verdade, a transmissão da participação social não comporta uma dimensão meramente interna. O aspeto aqui presente respeita, em todo o caso, no essencial, às relações intrassocietárias.

[xxix] Cfr., designadamente, os arts. 995.º, n.º 1, e 406.º, n.º 1, do CC, e o art. 182.º, n.º 1, do CSC.

[xxx] Acerca desta, maioritariamente entendida como compreendendo, além de uma geral capacidade delitual civil, todos os atos, direitos e vinculações necessários ou convenientes à realização do seu fim lucrativo (direto ou, no caso dos agrupamentos societários, possivelmente indireto), ainda que, em concreto, fora do respetivo e contingente objeto, cfr. o art. 6.º do CSC.

[xxxi] Acerca da necessidade do registo, cfr., designadamente, além do art. 5.º do CSC, os arts. 3.º, n.º 1, al. a), 13.º, n.º 2, 15.º e 17.º do CRCom. Quanto ao controlo de legalidade do conservador, hoje redobradamente importante, dada a supressão da escritura pública como requisito constitutivo geral, a que já se aludiu, na nota 5, cfr., por ex., o art. 22.º do Anteprojeto de Coimbra de LSQ e a respetiva anotação, pp. 26 e s., bem como Correia, A sociedade por quotas de responsabilidade limitada nos Projectos do futuro CSC , em Temas de Direito Comercial e Direito Internacional Privado (1989), cit., pp. 85 e ss., 155 e ss., e os arts. 47.º e ss. do CRCom.

[xxxii] Cfr. o art. 15.º do Anteprojeto de Coimbra de LSQ e a respetiva anotação, pp. 18 e s., em que se indicam três razões para a natureza constitutiva do registo: corresponde à orientação consagrada na generalidade das legislações e defendida pela doutrina; é a solução que possibilita aos terceiros o conhecimento fácil e seguro do momento em que a pessoa coletiva nasce; e é no momento do registo que ocorre o controlo dos requisitos constitutivos, cometido ao conservador, convindo que a personalidade jurídica só nasça após o mesmo. Cfr. também Correia, A sociedade por quotas de responsabilidade limitada segundo o CSC , em Temas de Direito Comercial e Direito Internacional Privado (1989), cit., pp. 137 e s.

[xxxiii] Cfr. também, por ex., a LSC espanhola (epígrafe do art. 37 e da respetiva secção) e, no direito francês, Merle, Philippe, Droit commercial – Sociétés commerciales, 17.ª ed., Dalloz, Paris, 2014, pp. 113 e ss. A expressão comporta um sentido mais lato, compreendendo também as sociedades preliminares: cfr., por ex., Antunes, José Engrácia, As sociedades em formação: sombras e luzes , «CDP», n.º 14, 2006, pp. 25 e ss., Domingues, Paulo Tarso, O regime jurídico das sociedades em formação , in AAVV, Estudos em Comemoração dos Cinco Anos da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, pp. 965 e ss., e Serens, Notas sobre a sociedade anónima ( 1997), cit., pp. 23 e s. e 26, que usa as expressões pré-sociedade e sociedade em formação para se referir, em geral, às sociedades ainda sem registo.

[xxxiv] Arts. 19.º, n.º 1, al. a), e 16.º A falta de especificação implica a impossibilidade de assunção dos negócios em apreço (art. 19.º, n.º 4).

[xxxv] Art. 19.º, n.º 1, al. c).No Anteprojeto de Coimbra de LSQ, cfr. o art. 31.º, n.º 3.

[xxxvi] Art. 19.º, n.º 1, al. b). No Anteprojeto de Coimbra, cfr. o art. 31.º, n.º 1, e, ainda, os arts. 24.º e 27.º

[xxxvii] Art. 19.º, n.º 1, al. d).No Anteprojeto de LSQ de Coimbra, cfr. o art. 31.º, n.º 2, admitindo, ainda, uma autorização de todos os sócios posterior à escritura de constituição.

[xxxviii] Substancialmente no sentido do texto, cfr. o art. 30.º, n.º 3, do Anteprojeto de Coimbra de LSQ. Contra, Pita, O regime da sociedade irregular (2004), cit., pp. 469 e s., 491 e ss.

[xxxix] Tendo existido uma sociedade preliminar, nos termos do art. 36.º, n.º 2, (ou uma sociedade irregular), é possível também uma transferência para a sociedade registada dos negócios e situações jurídicas daquela, no todo ou em parte, mas nos termos gerais, nomeadamente através da liquidação dessa sociedade anterior mediante trespasse. Cfr. também os arts. 37.º a 40.º do CSC e 46.º do ProjCS.

[xl] Art. 19.º, n.º 2. Não é possível, no entanto, assumir, por esta via, negócios e situações jurídicas relacionados com a fundação da sociedade, entradas em espécie e aquisição de bens. Quanto a eles, torna-se necessária a sua especificação no contrato de sociedade (n.º 4; cfr. também o art. 9.º, n.º 2); e, ocorrendo esta, em princípio, haverá uma assunção automática, nos termos do n.º 1.

[xli] Note-se, porém, que, dado o efeito liberatório a que se refere o n.º 3 do preceito (cfr. a seguir), os administradores beneficiários estão impedidos de votar, por conflito de interesses, donde pode resultar a necessidade de fazer intervir a coletividade dos sócios.

[xlii] Acerca do sentido a atribuir a este segmento, cfr., designadamente, Serens,Notas sobre a sociedade anónima (1997), cit., pp. 30 e s., Domingues, Do capital social (2004), cit., pp. 124 e ss., por um lado, e Abreu, Das Sociedades (2021), cit., pp. 142 e s., por outro lado.

[xliii] Art. 19.º, n.º 3.

[xliv] Cfr. a anotação ao art. 30.º, p. 32.

[xlv] Anteprojeto de LSQ, pp. 21 e 34.

[xlvi] Anteprojeto de LSQ, pp. 21 e 22, anotação ao art. 18.º.

[xlvii] Cfr. Correia, A sociedade por quotas de responsabilidade limitada segundo o CSC , em Temas de Direito Comercial e Direito Internacional Privado (1989), cit., pp. 141 e s.

[xlviii] Assim, designadamente, Correia, citado na nota anterior, p. 142.

[xlix] Dispunha-se nele: «No caso de exercício de atividade económica, quer sob a falsa aparência de sociedade sujeita à disciplina do Código das Sociedades Comerciais, quer depois de celebrado o contrato de sociedade, mas antes de realizado o seu registo definitivo, só as pessoas diretamente responsáveis perante terceiros podem ser declaradas em situação de falência.»

[l] Cfr., designadamente, Serens, Notas sobre a sociedade anónima (1997), cit., pp. 28 e ss.

[li] Note-se, ainda, por um lado, que, quanto às sociedades em formação em apreço, pelo menos no caso de a atividade social ser mercantil, valem as observações tecidas a respeito das sociedades preliminares acerca da qualidade de comerciante, da aplicação do Sistema de Normalização Contabilística e da competência dos juízos de comércio (supra,1.3); por outro lado, que, nas SA (e SCA) em formação, o poder de dispor do valor das entradas em dinheiro realizadas (depositado em instituição de crédito), designadamente, para cumprimento de compromissos assumidos, está sujeito ao prescrito no art. 277.º, n.º 5. Sobre o assunto, cfr., por ex., Abreu, Das Sociedades (2021), cit., pp. 135 e s.

[lii] Havendo tal atividade negocial, o normal será o seu exercício ser levado a cabo em nome da sociedade tal como está e não em nome da futura sociedade registada. Por isso mesmo, em rigor, a sociedade deverá revelar às pessoas com quem contrata que se trata de uma SpQ ou SA em formação e fazer constar esta indicação da respetiva documentação externa (interpretando neste sentido o art. 171.º) e, inclusive, fazer constar tal menção da firma, como sucede na hipótese de algum modo simétrica da sociedade em liquidação (cfr. o art. 146.º, n.º 2).

[liii] Acerca do direito alemão, que abandonou a doutrina da proibição de pré-oneração das SpQ e SA mediante Acórdão do BGH de 9.03.1981, II ZR 54/80,«BGHZ»80, pp. 129 e ss., procurando assegurar de outro modo, mais flexível, o princípio da exata formação do capital social destas sociedades (adotando a chamada teoria da diferença, que permite afirmar a capacidade geral das sociedades em formação sem pôr em causa o princípio), cfr., por ex., Hueck, Götz, Vorgesellschaft, in AAVV, Festschrift für 100 Jahre GmbH-Gesetz , ed. por Marcus Lutter et al., Verlag Dr. Otto Schmidt, Colónia,1992, pp. 127 e ss., Schmidt, Karsten, Gesellschaftsrecht , 4.ª ed., Carl Heymanns Verlag, Colónia, 2002, pp. 300 e ss.,1019 e ss., Schmidt-Leithoff, Christian, Anotação ao § 11 da GmbHG, in Rowedder / Schmidt-Leithoff, GmbHG-Kommentar, 5.ª ed., Verlag Franz Vahlen, Munique, 2013, pp. 401, 404 e ss. (n. 14, 26 e ss.), Wöstmann, Heinz, Anotação ao § 11 da GmbHG, in Rowedder / Pentz, GmbHG-Kommentar, 7.ª ed., 2022, pp. 346 e ss. (n. 27 e ss.), Roth, Günter, Anotação ao § 11 da GmbHG, in Roth / Altmeppen, GmbHG-Kommentar, 8.ª ed., C. H. Beck, Munique, 2015, pp. 258 e ss. (n. 10 e ss.), todos com mais indicações. A conceção germânica da sociedade em formação (figura distinta da da sociedade preliminar e da da sociedade irregular) encontra-se acolhida na já citada LSC espanhola de 2010 (arts. 31 e ss., 36 e ss.): cfr., por ex., Vela Torres, Sociedad en formación, in Garcia-Cruces / Sancho Gargallo (dir.), Comentario de la Ley de Sociedades de Capital, Tomo I, Tirant Lo Blanch, Valencia, 2021, pp. 803 e ss., e, anteriormente, Alonso Ureba, La sociedad en formación, in Derecho de Sociedades Anónimas, I – La Fundación , coord. de Alonso Ureba et al., Madrid, 1991, pp. 519-612. Noutros países, como a Itália, prevalece uma tese próxima da orientação minoritária nacional. Cfr., a respeito do direito italiano, por ex., Galgano, Francesco, Diritto Commerciale, 2– Le Società, 13.ª ed., Zanichelli, Bolonha, 2013, pp. 180 e ss., e 193 (no art. 2331 do Codice civile, o caráter constitutivo não se limita à aquisição de personalidade jurídica e ao nascimento do tipo: antes do registo, não há sociedade nenhuma, nem sequer irregular, como é confirmado pelo segundo e o quinto parágrafos), e Campobasso, Gian Franco / Campobasso, Mario – Diritto Commerciale, 2. Diritto delle società, 7.ª ed., Utet, 2011, pp. 164 e ss., com mais indicações. Acerca do direito francês, cfr., por ex., Merle, Sociétés commerciales(2014), cit., pp. 96 e s., 113 e ss.

[liv] No sentido da responsabilidade do património social, além de Correia, supracitado, cfr., por ex.: Labareda, Sociedades irregulares (1988), cit., pp. 196 e ss., maxime, 198, Duarte, As sociedades irregulares (1988), cit., p. 19, Ascensão, Sociedades Comerciais (2000), cit., pp. 110 e ss. e 162, Abreu, Das Sociedades (2021), cit., pp. 130 e ss., Domingues, Do capital social (2004), cit., pp. 121 e ss., Cunha, Direito das Sociedades Comerciais (2019), cit., pp. 250 e ss., Cordeiro, Direito das Sociedades (2020), cit., pp. 482 e ss., Almeida, Sociedades Comerciais (2022), cit., p. 126. Diferentemente do que dispunha o art. 125.º, n.º 3, do CREFal de 1993 (gerador de grave perplexidade, segundo Ascensão, pp. 112 e s.), o atual art. 2.º, n.º 1, al.e),do CIRE (com um âmbito mais alargado – cfr. Fernandes & Labareda, CIRE Anotado, 3.ª ed., Quid Juris, Lisboa, 2015, p. 80 (notas 8 e 9)) considera as sociedades em causa sujeitas à insolvência. No sentido de que a responsabilidade pessoal das pessoas em causa é exclusiva, cfr. Serens, Notas sobre a sociedade anónima (1997), cit., pp. 29 e s., Pita, O regime da sociedade irregular (2004), cit., pp. 444 e ss. (cfr., ainda, 432 e ss., 489 e ss.) Para outros quadrantes, cfr., por ex., Angelici, Carlo, Società prima dell’iscrizione e responsabilitá di «coloro che hanno agito», Giuffrè, Milão, 1998, Galgano, Le Società (2003), cit., pp. 180 e ss. e 193, Campobasso & Campobasso, Diritto delle società (2011), cit., pp. 164 e ss.

[lv] A solução está também em sintonia com o regime aplicável às sociedades estrangeiras que, sendo a isso obrigadas, não tenham em Portugal representação permanente registada (art. 4.º, n.º 2). Quanto ao ulterior argumento de maioria de razão fundado no art. 36.º, n.º 2, correntemente invocado, cfr., no entanto, as observações críticas de Serens, Notas sobre a sociedade anónima (1997), pp. 28 e s.

[lvi] Assim, Correia, A sociedade por quotas de responsabilidade limitada segundo o CSC , em Temas de Direito Comercial e Direito Internacional Privado (1989), cit., p. 142, como se referiu. Esta posição parece ser, ainda, a da generalidade dos autores que admitem a responsabilidade do património social. Cfr., por ex., Abreu, Das Sociedades (2021), cit., pp. 131 e ss., 135 e s., Cordeiro, Direito das Sociedades (2020), cit., 485.

[lvii] Restringindo a responsabilidade da SpQ e SA em formação aos negócios enquadráveis no n.º 1 do art. 19.º, cfr. também Domingues, Do capital social (2004), cit., pp. 121 e ss., 126 (invocando o princípio da exata formação do capital social e argumentando que, se, após o registo, a sociedade apenas assume ope legis as obrigações taxativamente previstas neste preceito, únicas garantidas pelo património social, o mesmo deve suceder na fase anterior ao registo; cfr. também pp. 127 e ss.).

[lviii] No sentido de que é uma responsabilidade direta, perante os credores sociais, cfr. Serens, Notas sobre a sociedade anónima (1997), cit., p. 29 (sem se ocupar especificamente dos sócios em causa). Vendo nela uma responsabilidade perante a sociedade (pela realização das entradas em falta, acrescida do valor dos lucros e reservas eventualmente recebidos), cfr. Domingues, Do capital social (2004), cit., p. 127, Abreu, Das Sociedades (2021), cit., p. 134.

[lix] No sentido da responsabilidade subsidiária, cfr., designadamente, Labareda, Sociedades irregulares (1988), cit., pp. 196 e ss., Ascensão, Sociedades Comerciais (2000), cit., pp. 110 e s. e 162., Cordeiro, Direito das Sociedades (2020), cit., pp. 484 e s., Almeida, Sociedades Comerciais (2022), cit., pp. 126 e s. No sentido de que a responsabilidade do património social e das pessoas em causa é concorrente ou solidária, cfr., por ex., Domingues, Do capital social (2004), cit., pp. 122 e s., 126, seguindo o ensino oral de Maria Ângela Coelho.

[lx] Cfr., a seguir, a respeito da 4.ª questão.

[lxi] Cfr. também, a respeito das sociedades estrangeiras sem representação permanente registada, o art. 4.º, n.º 2.

[lxii] Note-se que, na distinta situação de haver uma atuação ultra vires (não legitimada, nem legal nem contratualmente), em que o património social não responde, esta responsabilidade interna é, naturalmente, sem sentido.

[lxiii] Cfr. o art. 18.º, n.º 2, e a respetiva anotação.

[lxiv] Na doutrina, parece haver uma tendência para esta segunda interpretação: cfr. supra, nota 58.

[lxv] Neste sentido, com maior amplitude, cfr. Domingues, Do capital social (2004), cit., nota 376, p. 110, com indicações. Cfr. também o art. 4.º, n.º 2, do CSC e o art. 46.º, n.º 2, do Projeto de CS.

[lxvi] No sentido desta exigência, cfr. Serens, Notas sobre a sociedade anónima (1997), cit., p. 27. Contra, Domingues, Do capital social (2004), cit., p. 109, nota 375, com mais indicações.

[lxvii] No caso das sociedades estrangeiras sem representação permanente registada, a lei é expressa neste sentido: cfr. o art. 4.º, n.º 2.

[lxviii] Cfr., a respeito do Anteprojeto de LSQ, o comentário ao art. 18.º, p. 22. Na doutrina relativa ao CSC, cfr., designadamente, Labareda, «Sociedades irregulares» (1988), passim, e os autores referidos a seguir, partidários da subjetividade jurídica das sociedades em formação.

[lxix] No sentido da subjetividade-capacidade jurídica, cfr., designadamente, Abreu, Das Sociedades (2021), cit., pp. 131, 168 e s., Ascensão, Sociedades Comerciais (2000), pp. 161 e ss., Cordeiro, Direito das Sociedades (2020), cit., pp. 478 e ss., 485, 492 e 532 (do registo apenas depende a aquisição de personalidade plena, no caso das SpQ e SA, com o benefício da responsabilidade limitada), e, com referência às sociedades irregulares lato sensu, as demais indicações constantes da nota 26. Na Alemanha, cfr., por ex., Schmidt, Gesellschaftsrecht (2002), pp. 299, 789, 1017 e s., e Wöstmann, Heinz, Anotação ao § 11 da GmbHG, in Rowedder / Pentz, GmbHG-Kommentar, 7.ª ed., 2022, pp. 354 e ss. (n. 73 e s. e 82) (subjetividade jurídica limitada).

[lxx] A resultado semelhante se chega se se aplicar analogicamente o disposto no art. 36.º, n.º 2, do CSC.

[lxxi] Note-se que a lei civil pode ser interpretada no sentido de que, não estando a sociedade sujeita a registo, se a regulação contratual for originária, esta será oponível a terceiros, mesmo de boa fé. A ser assim, pelo menos neste ponto, não se justifica aplicar integralmente o regime do CC. Na Alemanha, cfr., por ex., Wöstmann, Anotação ao § 11 da GmbHG (2022), cit., pp. 357 e s. (n. 84 e ss.).

[lxxii] Sobre o assunto, cfr., por ex., Abreu, Das Sociedades (2021), cit., pp. 135 e s.

[lxxiii] Sobre ele, cfr., por ex., Domingues, Do capital social (2004), cit., pp. 71 e ss., Mendes, Evaristo, Capital social e tutela dos credores sociais , in AAVV, II Encontros de Direito Civil – A tutela dos credores, UCE, Lisboa, 2020, pp. 147-185, 158 e ss.

[lxxiv] Cfr. a nota 53 e, ainda, Abreu, Das Sociedades (2021), cit., p. 133 e nota 263.

[lxxv] No sentido de que se pode fundar no art. 19.º, n.º 3, uma responsabilidade pela diferença, semelhante à que vigora na Alemanha e na Espanha, cfr., designadamente, Domingues, Do capital social (2004), pp. 123 e ss. e nota 432, p. 126. Admite interpretação semelhante da norma, embora num quadro diferente, já que, para si, o património da sociedade em formação (substancialmente) não responde pelos negócios realizados em seu nome, Serens, Notas sobre a sociedade anónima (1997), cit., pp. 30 e s. Note-se que, para aquele autor, à semelhança do que se defende no texto, apenas oneram (automaticamente) o património social as situações jurídicas contempladas no art. 19.º, n.º 1. Pela eventual atuação fora destes limites, apenas respondem, pessoalmente, as pessoas indicadas no art. 40.º, n.º 1. Contra a responsabilidade pela diferença, cfr., designadamente, Abreu, Das Sociedades (2021), cit., pp. 142 e s.

[lxxvi] Esta exigência surgiu na LSQ de 1901, numa altura em que o CCom não a estabelecia, nem sequer para as SA; mas, atualmente, cfr. os arts. 201.º e 219.º, n.º 3.

[lxxvii] Cfr. também Abreu, Das Sociedades (2021), cit., p. 133.

[lxxviii] O panorama será, naturalmente, diferente do acabado de descrever, se se entender que as SpQ e SA em formação têm, sem mais (sem como tal estarem configuradas pelos fundadores no ato constitutivo, sujeito à competente publicidade legal), capacidade jurídica geral, estando os respetivos representantes autorizados a praticar todos os atos de gestão necessários ou convenientes à realização do seu fim lucrativo. Consideramos, no entanto, que uma tal interpretação da lei tornaria, designadamente, sem sentido o art. 19.º, n.º 2, pelo que não nos ocupamos dessa hipótese. A SpQ e SA em formação, no CSC, encontra-se, assim, numa posição intermédia, entre o direito alemão atual e o direito italiano. Todavia, explícita ou implicitamente, no sentido dessa capacidade ampla (atualmente também defendida na Alemanha, mas com a associada teoria da diferença), cfr. o que se diz na nota 56.

O sistema instituído é confuso e inutilmente complicado, mesmo para juristas qualificados; merecendo ser revisto. É, em todo o caso, o que se colhe nos textos legais.

[lxxix] Note-se que, mesmo tratando-se de uma situação transitória, se a SpQ ou SA é gerida como se fosse dotada de capacidade jurídica plena, sem haver fundamento contratual para isso, em rigor, também teremos uma sociedade irregular, mais precisamente, com funcionamento irregular; já contemplada na exposição precedente.

[lxxx] Cfr., por ex., na LSC espanhola, o art. 39 e, sobre ele, por ex., Vera Torres, Pedro José - Sociedad devenida irregular, in Garcia-Cruces / Sancho Gargallo (dir.), Comentario de la Ley de Sociedades de Capital, Tomo I, Tirant Lo Blanch, Valencia, 2021, anotação aos arts. 31 a 40, pp. 773 a 829, 817 e ss., com mais indicações. Na literatura anterior, vejam-se, por ex., Fernández de la Gándara, La sociedad anónima irregular , in Derecho de Sociedades Anónimas, I – La Fundación , coord. de Alonso Ureba et al., 1991, pp. 613-649, e as demais indicações constantes de Pita,O regime da sociedade irregular(2004), cit., pp. 83 e ss.

[lxxxi] Para um panorama mais completo acerca das sociedades em apreço, cfr., ainda, designadamente, com pontos de vista diversos: Correia, As sociedades comerciais no período da constituição, in Estudos Vários de Direito (1982), cit,, pp. 524 e ss., e A sociedade por quotas de responsabilidade limitada segundo o CSC , em Temas de Direito Comercial e Direito Internacional Privado (1989), cit., pp. 140 e ss., Ascensão, Sociedades Comerciais (2000), cit., pp. 108 e ss., Pita, O regime da sociedade irregular (2004), cit., pp. 401 e ss., Abreu, Das Sociedades (2021), cit., pp. 127 e ss., Antunes, Direito das Sociedades (2021), cit., pp. 211 e ss., Cordeiro, Direito das Sociedades (2020), cit., pp. 478 e ss., Cunha, Direito das Sociedades Comerciais (2019), cit., pp. 248 e ss., Labareda, Sociedades irregulares (1988), cit., pp. 177 e ss. (tratando globalmente das sociedades de tipo comercial sem escritura e sem registo), Ramos / Martins / Costa, Anotação ao artigo 40.º do CSC (2017), cit., pp. 612 e ss., Ramos / Costa, Anotação ao artigo 19.º do CSC, in CSC em Comentário, I, coord. de Coutinho de Abreu, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2017, pp. 344 e ss., Serens, Notas sobre a sociedade anónima (1997), cit., pp. 26 e ss., Santos Júnior, Anotação ao art. 36.º (2020), cit., pp. 250 e ss., e 169 e ss., Martins, J. Fazenda, Os efeitos do registo e das publicações obrigatórias na constituição das sociedades comerciais , Lex, Lisboa, 1994, todos com mais indicações. Têm interesse também Correia / Caeiro, Lei das Sociedades Comerciais(1969), cit., «BMJ» 185, pp. 45, 59 e ss., e Portale, Giuseppe, Conferimenti in natura ed effettività del capitale nella «società per azioni in formazione» , «Rivista delle società», 1994, pp. 1-72, com uma referência ao CSC nas páginas 24 e s. Note-se que o autor não se enquadra na orientação dominante em Itália acerca do tema (cfr., supra, nota 53).

[lxxxii] Na doutrina portuguesa, pode consultar-se a análise de direito comparado levada a cabo por Pita, O regime da sociedade irregular (2004), cit., pp. 43 e ss.