Evaristo Mendes
Anulabilidade das deliberações sociais. Dever de lealdade dos sócios
Anotação ao acórdão do STJ de 18.04.2023 [i]
Sumário:
I - A lei admite (como resulta dos arts. 384.º, n.º 2, al. a), e 379.º, n.º 2, do CSC) que, nas Anónimas, possa haver sócios/acionistas que ficam, por força dos estatutos, sem poder exercer qualquer um dos direitos de participação em assembleia geral (o direito de estar presente, o direito de apresentar propostas, o direito de discussão e o direito de votar).
II - A ratio de tais limitações justifica-se pela própria natureza das coisas: um elevadíssimo número de acionistas coloca dificuldades logísticas/físicas para permitir a participação de todos os acionistas nas assembleias gerais; e não é sequer aconselhável ou realista uma assembleia geral com a participação de milhares de acionistas.
III - Sendo esta aratio, não foi pensada para uma Anónima (cujos estatutos não continham, originariamente, aquando da constituição da sociedade, qualquer estipulação sobre restrições à participação em assembleia geral) constituída por apenas 5 acionistas, sendo os 4 acionistas minoritários o pai, um irmão, a ex-mulher e um parceiro de negócios do acionista fortemente maioritário (com 99,992% do capital).
IV - Assim, uma cláusula limitativa (à participação em assembleia geral) superveniente, apresentada sem qualquer “justificação material” e aprovada/deliberada com os votos do acionista fortemente maioritário, embora formalmente lícita, é substancialmente ilícita: a deliberação que introduziu tal cláusula/limitação (segundo a qual apenas o acionista maioritário passa a ter direitos de participação) deve ser considerada uma deliberação abusiva (emulativa).
V - Hoje, os poderes dos sócios na sociedade encontram-se vinculados a deveres de lealdade, sendo possível formular um princípio geral de sujeição das deliberações sociais a um controlo material de conformidade com os deveres de lealdade, ou seja, quando a medida a deliberar possa provocar o sacrifício dos interesses das minorias deve tal sacrifício ser objetivamente justificado, necessário e proporcional.
VI - A lei tem em vista evitar que um número incomportável de acionistas participe e torne ingeríveis assembleias gerais de sociedades anónimas, ou seja, não tem em vista permitir que, através da introdução de limitações à participação dos acionistas minoritários, apenas o acionista maioritário possa estar presente e participar nas assembleias gerais.
VII - Uma deliberação social que conduz a tal desiderato, que retira a todos os acionistas, com exceção do acionista maioritário, o direito de participar nas assembleias gerais, não tem “justificação material”, é desproporcional e desleal (para com os acionistas minoritários que estão contra tal deliberação) ou, mais corretamente, a “justificação material” e a proporcionalidade duma tal deliberação, a existir, haveria de ter sido invocada/explicada/demonstrada por quem faz tal proposta de deliberação, pelo que, perante uma proposta “seca” e sem qualquer justificação, apenas fica e subsiste a desproporcionalidade.
ACORDAM, NA 6ª SECÇÃO, NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
I – Relatório
AA e BB, ambos com domicílio profissional na Avenida (…), intentaram a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra Mar de Nuvens, S.A., com sede social na Rua (…), pedindo a anulação das deliberações sociais aprovadas em assembleia geral da R. de 24.05.2021, pela qual se alteraram os estatutos daquela, suprimindo-se o artigo 8.º e aditando-se ao artigo 7.º dois novos números, com a seguinte redação:
“3. A cada grupo de 1.000 ações corresponde um voto.
4. Os acionistas que não possuírem um número de ações suficiente para
exercerem direito de voto não poderão participar na assembleia geral, mas
podem agrupar-se de forma a perfazeram o número exigido e a fazerem-se
representar por um dos titulares das ações agrupadas
”.
Alegaram, em síntese, que “a deliberação ora em crise é o corolário do comportamento dos acionistas CC e [EE], sendo o culminar de uma estratégia pelos mesmos engendrada, que se traduziu, primeiro, numa limitação do exercício de direitos sociais dos Autores e agora, com a deliberação aqui em crise, na procura da sua total exclusão da vida da sociedade” [1], em “clara violação do princípio da igualdade de tratamento dos acionistas, passando a existir, entre eles, um tratamento diferenciado, na capacidade de voto e de participação em Assembleia Geral, sem que exista qualquer fundamento para tal, sendo, portanto, uma diferenciação arbitrária, não justificada pelo interesse social” [2]; alegaram que “o conteúdo da deliberação em crise consubstancia ainda uma violação do dever de lealdade entre acionistas, na medida em que os acionistas, Administrador Único e Presidente da Assembleia Geral da Ré, incumpriram com o seu dever de se absterem de adotar comportamentos suscetíveis de lesar os interesses da sociedade e dos outros acionistas para com esta” [3]; para além de, “com a referida deliberação, o acionista CC passou a ser o único dos acionistas da Ré com capital social suficiente para participar e votar nas suas assembleias gerais e, nessa medida, por força do disposto no artigo 384º, n.º 6, al. d), estava impedido de votar o ponto da ordem de trabalhos sobre que versou a deliberação aqui em crise” [4]; “pelo que deverá ser decretada a anulação da deliberação tomada quanto ao ponto 7 da ordem de trabalhos na Assembleia Geral de 24.05.2021, nos termos do artigo 58.º n.º1 alínea a) do CSC ou, mesmo que assim não se entenda, sempre a deliberação em questão será anulável, por ser manifestamente abusiva” [5], uma vez que “in casu, a referida deliberação sobre o ponto 7 da ordem de trabalhos, tratou-se de uma deliberação emulativa, que assentou essencialmente no desiderato de prejudicar os aqui Autores, privando-os completamente do exercício dos seus direitos sociais ”[6].
Citada a Ré, contestou, alegando resumidamente que os AA. não possuem interesse nenhum na participação minoritária de 0,002% na R., pretendendo apenas instrumentalizar essa participação para pressionar e desgastar a R. e o acionista CC, como retaliação pela defesa dos seus direitos enquanto acionista minoritário de uma outra empresa em que todos participam (S..., SA); e defendendo a admissibilidade da alterabilidade do pacto social e a introdução dos limites ao direito de voto nos termos em que foram deliberados.
Concluiu pela improcedência da ação.
Foi designada audiência prévia.
Em sede de audiência prévia, frustrada a conciliação, foi decidido, com a
concordância das partes, que os autos continham todos os elementos
necessários para a prolação de decisão de mérito.
Veio assim a ser proferida sentença que,
julgando procedente a ação, determinou a “anulação da deliberação social
tomada quanto ao ponto 7 da ordem de trabalhos (…)”.
Inconformada, apresentou a R. recurso de apelação, recurso que, por Acórdão da Relação de Lisboa de 08/11/2022, foi julgado procedente e, consequentemente, revogada a sentença, julgando-se improcedente a ação e absolvendo-se a R. do pedido.
Inconformados agora os AA., interpõem o presente recurso de revista,
visando a revogação do acórdão da Relação e a sua substituição por decisão
que, repristinando o decidido na sentença da 1.ª Instância, julgue
procedente o pedido. Terminaram a sua alegação com as seguintes conclusões:
“(…)
I – Com a deliberação aqui em causa, o acionista CC visou e conseguiu
reforçar a sua posição dominante na sociedade Ré, passando a ter
absoluto domínio sobre esta sociedade;
II – Com a deliberação sobredita, o acionista CC passou a ser o único dos acionistas da sociedade Ré com participação social suficiente para participar e votar nas suas assembleias gerais;
III – Com a deliberação aqui em causa, com exceção do acionista CC, todos os demais acionistas da sociedade Ré ficam sem o direito de participar e de exercer o direito de voto na respetiva assembleia geral, uma vez que mesmo agrupando todas as ações de que são detentores, não conseguirão perfazer o número de ações que, por força daquela deliberação, passou a ser exigido para se poderem faz representar naquela assembleia;
IV - Nessa medida, por força do disposto no artigo 384º, n.º 6, al. d),
o acionista CC estava impedido de votar o ponto da ordem de trabalhos
sobre que versou a deliberação aqui em causa.
V – Aprovando aquela deliberação no seu exclusivo interesse e contra o
interesse de todos os demais acionistas;
VI - Pelo que a deliberação aqui em causa deve ser anulada.
Ademais,
VII – Por força da deliberação aqui em causa, os acionistas aqui Recorrentes ficam privados do direito de voto que desde a constituição da sociedade Ré sempre exerceram, por tal direito lhes ter sido outorgado pelo contrato constitutivo daquela sociedade, ficando, agora, com aquela deliberação, privados do direito de participação e de voto, na sua assembleia geral;
VIII – Com a deliberação aqui em causa, os acionistas aqui Recorrentes ficam privados de um direito que tinham como adquirido, tendo em conta que o mesmo lhes foi outorgado pelo contrato constitutivo da sociedade Ré, sendo certo que foi em razão dos direitos que lhe foram atribuídos por aquele contrato constitutivo que aqueles sempre se orientaram nas relações com aquela sociedade, nomeadamente, emprestando-lhe noventa e cinco mil euros;
IX – O que certamente aqueles acionistas não teriam feito, se tivessem perspetivado que a Ré poderia vir a tomar a deliberação aqui em causa;
X – Com a deliberação aqui em causa, os acionistas que a votaram não visaram o interesse social, mas antes causar prejuízo aos acionistas aqui Recorrentes, não tendo aquela deliberação outra motivação senão afastar estes acionistas da vida da sociedade Ré;
XI - Correspondendo aquela deliberação ao propósito do acionista maioritário e administrador único da Sociedade Ré, CC, de impedir os demais acionistas de qualquer ação de fiscalização da sua gestão, deixando-o livre para a gerir, como bem entender, sem o dever de prestar esclarecimentos e dar informação, quanto aos atos da sua gestão aos demais acionistas, nomeadamente, em assembleia geral;
XII– Com a deliberação aqui em causa, a sociedade Ré é transformada senão numa sociedade unipessoal, pelo menos, numa sociedade de um sócio único, o acionista aqui Recorrido, CC que, por força daquela deliberação, para além de seu administrar único, passa a ser o único dos acionistas a poder participar e votar na sua assembleia geral;
XIII – Tendo em conta o suprarreferido, a deliberação aqui em causa foi tomada no interesse próprio e exclusivo do acionista CC e em prejuízo de todos os demais acionistas da sociedade Ré;
XIV – Pelos motivos atrás referidos, a deliberação aqui em causa deve ser anulada, por força do disposto no artigo 58.º n.º 1 alínea a) do CSC.
Assim não se entendendo,
XV – Da matéria de facto apurada resulta que a sociedade Ré foi constituída por cinco acionistas, sendo que quatro deles, à data da constituição da sociedade, como à data da deliberação aqui em causa, eram detentores de uma única ação;
XVI – Da matéria de facto apurada resulta ainda que no contrato constitutivo da sociedade Ré foi estabelecido que a cada ação correspondia um voto, consagrando-se para todos os acionistas o direito de participação e de votação na assembleia geral da sociedade Ré;
XVII – Resulta ainda da matéria de facto apurada que o direito de participação e de votação atrás referidos permaneceram intocados até à deliberação aqui em causa;
XIX – Tendo em conta aquela matéria de facto é de concluir, porque tal decorre das regras da experiência, que os acionistas da sociedade Ré se relacionaram com esta, até à deliberação aqui em causa, em razão dos direitos consignados no seu contrato constitutivo;
XX - E que confiaram que os direitos que lhe foram outorgados por aquele contrato constitutivo, seriam direitos adquiridos que nunca lhes seriam negados, nomeadamente através de uma qualquer alteração estatutária que viesse a impor novas regras quanto ao número de ações necessárias para a participação e votação em assembleia geral.
XXI – Foi em razão dos direitos consignados no contrato constitutivo da sociedade Ré que os seus acionistas se relacionaram com esta, ao longo do tempo que decorreu desde a sua constituição e até à deliberação aqui em causa, nomeadamente, emprestando-lhe as quantias que resultam demonstradas da matéria de facto apurada.
XXII – Ao propor e votar a deliberação aqui em causa, o acionista maioritário e administrador único da sociedade Ré, o aqui Recorrido CC, agiu contra o que antes livremente tinha aprovado, através do contrato constitutivo daquela sociedade, traindo, desse modo, a confiança dos acionistas aqui Recorrentes que sempre se tinham relacionado com aquela sociedade em razão dos direitos estabelecidos no seu contrato constitutivo e na expectativa de que esses direitos seriam direitos adquiridos.
XXIII – A deliberação aqui em causa viola a confiança que os acionistas Recorrentes depositaram no acionista maioritário e ao ser tomada sem qualquer justificação, frusta as suas legitimas expetativas, quanto à garantia dos direitos que lhe foram atribuídos pelo contrato constitutivo da sociedade Ré que tinham por adquiridos.
XXIV – A deliberação aqui em causa dever ser anulada, por ser manifestamente abusiva, à luz do disposto no artigo 58.º n.º 1 alínea b) do CSC, quando conjugado com o artigo 334.º do Código Civil. (…) ”
Não foi apresentada qualquer resposta.
Obtidos os vistos, mantendo-se a regularidade da instância, cumpra, agora, apreciar e decidir.
*
II – Fundamentação de Facto
II – A – Factos Provados
1) A Ré é uma sociedade anónima que tem como objeto social a compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para o mesmo fim, consultadoria e gestão imobiliária, investimento imobiliários, promoção imobiliária, gestão, exploração, administração e arrendamento de imóveis e comercialização de equipamento informáticos.
2) O capital social da Ré é de € 50.000,00 (cinquenta mil euros) e encontra-se dividido em 50.000,00 (cinquenta mil) ações no valor nominal, cada uma, de € 1,00 (um euro).
3) São acionistas da Ré: a. CC, que detém 49.996 (quarenta e nove mil e novecentas e noventa e seis) ações; b. A primeira Autora, titular de 1 (uma) ação; c. O segundo Autor, titular de 1 (uma) ação; d. DD, titular de 1 (uma) ação; e. [EE], titular de 1 (uma) ação.
4) O acionista CC é irmão da Autora AA.
5) O acionista CC é também o Administrador Único da Ré, o que acontece desde a data da constituição daquela.
6) O acionista [EE] é o pai do acionista CC e da Autora AA.
7) [EE] é o Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Ré, cargo em que foi investido em 27.07.2018.
8) A acionista DD é ex-mulher do acionista CC.
9) O Autor BB era, à data da constituição da Ré, parceiro de negócios de CC, [EE] e da Autora, AA.
10) O Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Ré convocou os acionistas para uma Assembleia Geral, a ter lugar no dia 24.05.2021, pelas 10,30 horas, na sede social daquela.
11) Daquela convocatória constava a seguinte Ordem de Trabalhos:
(…)
Ponto Sete: Alteração dos Estatutos da Sociedade por supressão do artigo 8.º e aditamento de dois novos números (número 3 e 4) ao artigo 7.º.
12) A referida convocatória foi publicada no Portal da Justiça (Portal MJ, disponível para consulta in https://publicacoes.mj.pt/pesquisa.aspx) .
13) A assembleia geral da aqui Ré reuniu no dia 24.05.2021 e nessa assembleia foram submetidos a votação os sete pontos que constavam da convocatória acima referida e todos eles foram aprovados com as seguintes votações:
(…)
Ponto Sete: aprovado com os votos favoráveis de CC e [EE] e com os votos contra de BB e AA.
14) Com a aprovação do acima referido ponto sete da ordem de trabalhos, foi deliberada a supressão do artigo 8.º dos Estatutos da Sociedade, aqui Ré e o aditamento de dois novos números ao artigo 7.º daqueles estatutos.
15) Por força da referida deliberação os estatutos da sociedade aqui Ré foram alterados, tendo sido suprimido o respetivo artigo 8.º e modificado o artigo 7.º, com a introdução de dois novos números, com a seguinte redação:
“3. A cada grupo de 1.000 ações corresponde um voto.
4. Os acionistas que não possuírem um número de ações suficiente para
exercerem direito de voto não poderão participar na assembleia geral, mas
podem agrupar-se de forma a perfazeram o número exigido e a fazerem-se
representar por um dos titulares das ações agrupadas
”.
16) Consta dos documentos contabilísticos da Ré o registo de que o acionista CC lhe emprestou 608.000,00 euros; que o acionista [EE] lhe emprestou 47.500 euros; e que cada um dos Autores lhe emprestou 47.500,00 euros;
17) Os AA. são também, em conjunto, acionistas maioritários da sociedade mãe do grupo S..., a S... SGPS, S.A., em que o acionista maioritário da R. CC é, por sua vez, acionista minoritário.
18) O acionista maioritário da R. CC e os AA., no âmbito referido grupo S..., entraram em litígio em 2017, o qual culminou com uma série de ações judiciais propostas quer pelo acionista maioritário da R. CC, quer pela Sociedade S..., SGPS, S.A. (doravante “S...”), sempre sob direção dos AA., contra este.
*
III – Fundamentação de Direito
Tratam os presentes autos da impugnação duma deliberação social tomada na AG da R. de 24/05/2021, deliberação social essa que acrescenta dois novos números ao art. 7.º dos Estatutos, decorrendo de tais dois novos números que os AA., acionistas da R., passarão a ficar “impossibilitados” de participar nas AG da sociedade anónima R.. É contra esta “impossibilidade” de participação nas AG que os AA. intentam a presente ação, o que significa que o objeto da revista – a deliberação social que se impugna e que se pretende ver anulada – se centra sobre o tema do direito dos sócios/acionistas a participar nas assembleias gerais das sociedades de que são sócios/acionistas (e os termos em que tal direito pode ou não ser postergado).
Vejamos:
Entre os direitos dos sócios, a parte geral do CSC consagra, no seu art. 21.º/1/b), o direito de participar nas deliberações sociais, direito que na sua amplitude, tratando-se do “direito de participar”, terá que compreender, para além do direito de votar, o direito de estar presente, o direito de apresentar propostas e o direito de discussão.
Efetivamente, a deliberação social é um ato unitário complexo que integra e pressupõe os votos dos sócios (mais rigorosamente, que pressupõe que se alcance uma maioria suficiente de tais votos[7]), votos que correspondem ao poder que os sócios têm de participar na adoção de deliberações sociais e cuja emissão remata a presença e discussão por parte dos sócios nas Assembleias Gerais.
Como refere Pedro Pais de Vasconcelos[8], “a participação abrange a assistência, a discussão e o voto. O sócio está presente na AG e assiste aos trabalhos desde o início ao seu termo. Pode também intervir nos trabalhos, designadamente expondo as suas opiniões, fazendo perguntas, pedindo informações e debatendo questões, apresentando propostas. Pode emitir o voto e formular declarações em que o justifique.”
Daí que, a propósito das Anónimas, se tenha estabelecido quer a regra (constante do art. 384.º/1 do CSC) de a cada ação corresponder um voto quer a regra de que “têm o direito de estar presentes na AG e aí discutir e votar os acionistas que, segundo a lei e o contrato, tiverem direito a, pelo menos, um voto” (art. 379.º/1 do CSC).
Mas, sendo estas as regras, é logo o próprio art 21.º/1/b) da parte geral do CSC a admitir que a mesma não é absoluta, ou seja, que o “direito de participar nas deliberações sociais” pode ser limitado pelas “restrições previstas na lei”.
Sucedendo que, quanto às Anónimas, se a regra de a cada ação corresponder um voto (estabelecida pelo art. 384.º/1 do CSC) não admite exceção no sentido de a cada ação poderem corresponder dois ou mais votos (é “proibido estabelecer no contrato o voto plural” - cfr. art. 384.º/5 do CSC), outro tanto não sucede no sentido oposto, ou seja, nas Anónimas, a lei admite exceções à regra uma ação/um voto quando, ao mesmo tempo que estabelece, em tal art. 384.º/1 do CSC, a regra uma ação/um voto, observa que é assim “na falta de diferente cláusula contratual” no mesmo art. 384.º/1; e quando, no art. 384.º/2, possibilita derrogações estatutárias, designadamente e no que aqui interessa, quando possibilita, nos termos do art. 384.º/2/alínea a), que os estatutos possam fazer corresponder um só voto a certo número de ações, contanto que sejam abrangidas todas as ações emitidas pela sociedade e fique cabendo um voto, pelo menos, a cada € 1000 de capital, o que permite que haja acionistas de sociedades anónimas que fiquem sem direito de voto.
E ficando sem direito de voto (uma vez que um acionista com ações em número inferior ao fixado nos estatutos não tem direito de voto) o acionista só manterá o direito de assistir à AG e participar na discussão dos assuntos se os estatutos sociais não o proibirem, uma vez que, segundo o art. 379.º/2 do CSC – que dispõe que “os acionistas sem direito de voto (…) podem assistir às AG e participar na discussão dos assuntos indicados na ordem do dia, se o contrato de sociedade não determinar o contrário” – os estatutos/contrato podem fazê-lo/proibi-lo.
Enfim, nas Anónimas, os sócios com direito de voto têm direito de participar plenamente nas AG (379.º/1 do CSC), ou seja, têm o direito de estar presentes nas assembleias, de nelas pedir informações (art. 290.º do CSC), de intervir nos debates, de apresentar propostas de deliberação e, claro, o direito de votar; podendo haver, nas Anónimas, sócios sem direito de voto não impedidos estatutariamente de participar, os quais têm direito de participar limitadamente nas AG, ou seja, com exceção do direito de voto, estes sócios podem exercer todos os demais direitos de participação referidos; e podendo ainda haver, nas Anónimas, sócios sem direito de voto impedidos estatutariamente de participar, os quais não podem exercer qualquer um dos direitos de participação referidos.
É justamente a esta última posição que os dois novos números ao art. 7.º dos Estatutos remetem, enquanto acionistas da R., os AA. Como claramente resulta dos factos:
O capital social da Ré, de € 50.000,00, é representado por 50.000 ações de € 1,00, sendo detido por apenas 5 acionistas: CC, titular de 49.996 ações, e os restantes 4 acionistas, cada um titular de uma única ação.
Tendo os dois novos números aditados ao artigo 7.º dos Estatutos a seguinte
redação:
“3. A cada grupo de 1.000 ações corresponde um voto.
4. Os acionistas que não possuírem um número de ações suficiente para
exercerem direito de voto não poderão participar na assembleia geral, mas
podem agrupar-se de forma a perfazeram o número exigido e a fazerem-se
representar por um dos titulares das ações agrupadas
”.
E, como se vem de expor, a lei admite/permite que, nas Anónimas, possa haver sócios/acionistas que ficam, por força dos estatutos, sem poder exercer qualquer um dos direitos de participação referidos[9].
O que não significa que fique assim, com o que se vem de expor, encerrada a discussão jurídica que a concreta questão sub judice suscita.
Pode-se ser um acionista com poder de voto limitado e, por isso, com reduzida ou nenhuma expetativa de condicionar o sentido da deliberação, mas é incontornável que a participação dos sócios na sociedade é feita essencialmente através do voto.
Sem prejuízo da diminuta influência dos sócios minoritários na adoção de deliberações – face ao peso relativo do seu número de votos na totalidade dos votos emitidos ou emissíveis – a presença dos mesmos na AG permite interpelar o órgão de gestão sobre o andamento dos assuntos da sociedade, pedir informações, sugerir e propor o que se lhes afigurar conveniente para a sociedade e para assegurar que os assuntos do seu interesse não deixam de ser tratados pela AG.
Pelo que, tendo isto presente, convém perscrutar a ratio das limitações permitidas quer pelo art. 384.º/2/a) quer pelo art. 379.º/2, ambos do CSC; e analisar se é exatamente para situações como a que temos nos autos que a lei “pensou” e admitiu a possibilidade de se estabelecerem nos estatutos tais limitações e, não o sendo, se estaremos, no caso concreto, perante uma previsão/limitação estatutária que, não violando a lei, é abusiva.
Vejamos:
A ratiodas limitações permitidas pelos art. 384.º/2/a) e 379.º/2 prende-se, como é vidente, com razões de praticabilidade, justifica-se pela própria natureza das coisas.
As sociedades anónimas têm não raras vezes um elevadíssimo número de acionistas (o chamado capitalismo popular conduziu à admissão de ações com valores nominais muito reduzidos), o que coloca, quando assim sucede, dificuldades logísticas/físicas para permitir a participação de todos os seus acionistas nas AG.
E, podendo haver salas que levam milhares de pessoas, não será sequer aconselhável ou realista uma AG com a participação de milhares de acionistas: a serenidade e o esclarecimento racional das questões em debate não serão praticáveis; a admissão de todos os acionistas a intervir e a formular perguntas e a obrigatoriedade de lhes dar resposta, perturbaria e tornaria impraticável o funcionamento da AG; mais ainda, um valor excessivamente baixo de participação no capital não estimula a seriedade na participação e na intervenção, isto é, permite que se façam e discutam propostas “insensatas” de sócios com participações ínfimas.
É por tudo isto – ponderando tudo isto – que a lei admite, pese embora a função que o direito de participação nas AG desempenha para os sócios, que os estatutos da sociedade anónima possam impedir a participação nas AG de sócios cujas participações sociais não tenham um mínimo de valor; que a lei entende que é razoável e justificado que possa estabelecer-se nos estatutos da sociedade anónima um mínimo de valor acionário para a participação na AG, evitando-se assim a presença na AG de um número incomportável de acionistas com um poder de voto muito limitado ou praticamente inexistente.
Em harmonia prática com a já designada “apatia racional” dos acionistas minoritários, apatia essa decorrente da falta de impacto do seu voto no resultado final e dos custos que o seu exercício para eles envolveria, o que torna economicamente recomendável, de acordo com uma análise custo/benefício, a habitual não participação dos acionistas minoritários em AG.
Mas – é o ponto – nada disto, como é evidente, vale e é aplicável à ora R., uma sociedade anónima constituída por apenas 5 acionistas (o número mínimo – cfr. art 273.º/1 do CSC), sendo os 4 acionistas minoritários o pai, um irmão, a ex-mulher e um parceiro de negócios do acionista fortemente maioritário (com 99,992% do capital).
Sociedade anónima esta – é um aspeto que não é irrelevante – cujos estatutos não continham, originariamente, aquando da constituição da sociedade, qualquer estipulação sobre restrições à participação em AG, sendo apenas agora, supervenientemente, que tais restrições vêm ser estabelecidas pelo aditamento aos estatutos dos referidos números 3 e 4 ao artigo 7.º dos Estatutos (aqui sob impugnação).
Não é que esteja em causa que, numa sociedade anónima, através de uma alteração dos estatutos/contrato, se possa introduzir uma cláusula limitativa da participação que imponha um mínimo que a generalidade dos acionistas não consiga alcançar, nem sequer agrupados, e que assim se limite ou impeça a participação na AG dessa generalidade de acionistas: a alteração dos estatutos/contrato é permitida pelo art. 85.º do CSC (devendo ser “tomada em conformidade com o disposto para cada tipo de sociedade”).
A questão é que, enquanto uma cláusula limitativa originária da constituição da sociedade reflete e exprime o consenso unânime dos sócios/acionistas, uma cláusula limitativa superveniente, como é o caso, aprovada com os votos do acionista fortemente maioritário, poderá ter tão só como propósito limitar ou impedir a participação na AG de uma minoria acionista incómoda.
E nesta hipótese – não estando a introdução de uma tal cláusula nos estatutos justificada pela “natureza das coisas” e visando-se tão só, sem qualquer “justificação material”, limitar ou excluir sócios minoritários de participar na AG – a introdução duma tal limitação, aprovada com os votos do acionista fortemente maioritário, embora formalmente lícita, poderá ser substancialmente ilícita; e a deliberação que introduzir tal cláusula/limitação será anulável por abusiva – cfr. art. 58.º/1/b) do CSC.
É a nosso ver, antecipando desde já a conclusão, o caso da deliberação social sub judice, que acrescentou os dois novos números ao art. 7.º dos Estatutos.
Vejamos porquê:
Atento o disposto no art. 58.º/1/b) do CSC, uma deliberação é abusiva/anulável quando, sem violar disposições específicas da lei ou do estatuto da sociedade – o que, como já vimos, não acontece no caso – é “apropriada para satisfazer o propósito de sócio conseguir vantagens especiais para si ou para outrem em prejuízo da sociedade ou de outro sócio, ou o propósito de prejudicar aquela ou este, salvo se se provar que a mesma deliberação teria sido adotada sem os votos abusivos”.
O que permite recortar duas espécies de deliberações abusivas: as apropriadas para satisfazer o propósito de alcançar vantagens especiais em prejuízo da sociedade ou de sócios e as apropriadas para satisfazer o propósito tão só de prejudicar a sociedade ou os sócios (as chamadas deliberações emulativas); tendo ambas pressupostos subjetivos (na 1.ª espécie, o propósito é o de alcançar vantagens especiais; e, na 2.ª espécie, o propósito é o de causar prejuízos) e objetivos (têm que ser objetivamente apropriadas a satisfazer os referidos propósitos).
Sendo que, no caso, o quadro factual provado preenche a 2.ª espécie de
deliberação abusiva, ou seja, o deliberado tem e logra o propósito de
prejudicar os acionistas minoritários, os aqui AA..
Porquê?
Reconhece-se hoje que os poderes dos sócios na sociedade se encontram
vinculados a deveres de lealdade, deveres estes que impõem que os sócios
não atuem de modo incompatível com o interesse social ou com interesses de
outros sócios relacionados com a sociedade.
Deveres de lealdade que têm um conteúdo negativo nuclear (a proibição de
causar danos, intensificada face ao princípio geral do neminem laedere ), mas que em certas situações também podem adquirir uma dimensão positiva,
traduzida numa obrigação de prosseguir o fim social.
Deveres de lealdade que acabam assim por comprimir o princípio da liberdade
de voto, obrigando o sócio a não apresentar determinada proposta ou a votar
favoravelmente determinada medida; e que levam também a que se fale mesmo
numa exigência de “justificação material” para certas deliberações sociais
que intervenham nos direitos das minorias.
Como refere Ana Perestrelo de Oliveira[10], “(…) é possível formular um princípio geral de sujeição das deliberações sociais a um controlo material de conformidade com os deveres de lealdade da maioria (e, eventualmente, das minorias, máxime nos casos em que estas surjam como minorias de bloqueio). A necessidade de uma justificação material tendo a lealdade como referência será, em especial e por natureza, reclamada perante conflitos de interesses entre maioria e minoria e, com particular frequência, quando a medida em discussão possa provocar uma intervenção na posição dos sócios minoritários e, em geral, sempre que a distribuição de poder na sociedade seja alterada. Nestas hipóteses, exige-se que o sacrifício dos interesses das minorias seja objetivamente justificado e necessário: do princípio da lealdade resultará, pois, um princípio de proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade, stricto sensu) que evitará o prejuízo arbitrário dos sócios. (…)”
Ora – é o ponto – é o respeito por este princípio de proporcionalidade (decorrente do princípio da lealdade) que a deliberação social da R. (que acrescentou os dois novos números ao art. 7.º dos Estatutos) não explica/justifica.
Como já referimos, não valem e são aplicáveis à R. – uma sociedade familiar com 5 acionistas – as razões que levaram o legislador (cfr. art. 384.º/2/a) e art. 379.º/2, ambos do CSC) a prever a possibilidade de se estabelecerem nos estatutos limitações à participação dos acionistas minoritários nas AG.
É até um pouco caricato cotejar tais razões – o elevado número de acionistas, as dificuldades logísticas/físicas para os instalar, a perturbação e impraticabilidade das AG com a participação de todos os acionistas – com o que passaria a acontecer nas AG da R. (com os dois novos números do art. 7.º dos Estatutos em vigor), em que apenas o acionista CC poderia passar a estar presente e a participar.
A lei tem em vista evitar que um número incomportável de acionistas participe e torne ingeríveis AG de sociedades anónimas, ou seja, não tem em vista permitir que, através da introdução de limitações à participação dos acionistas minoritários, apenas o acionista maioritário possa estar presente e participar nas AG.
Uma coisa é uma miríade de pequenos acionistas a intervir, a formular perguntas, a querer respostas, a tornar impraticável o funcionamento duma AG, outra coisa é – como objetivamente decorre do deliberado – não se admitir a presença dum único acionista a interpelar o órgão de gestão sobre o andamento dos assuntos da sociedade, a pedir informações, a sugerir e a propor o que se lhes afigurar conveniente para a sociedade e a assegurar que certos assuntos não deixam de ser tratados pela AG.
Ora, como é evidente, a nosso ver, uma deliberação social que conduz a tal desiderato, que retira a todos os acionistas, com exceção do acionista maioritário, o direito de participar nas AG, não tem “justificação material”, é desproporcional e desleal (para com os acionistas minoritários que estão contra tal deliberação) ou, mais corretamente, a “justificação material” e a proporcionalidade duma tal deliberação, a existir, haveria de ter sido invocada/explicada /demonstrada por quem faz tal proposta de deliberação ou, dito de outro modo, perante uma proposta “seca” e sem qualquer justificação, apenas fica e subsiste a desproporcionalidade.
E o aqui A., BB, como consta da ata da AG de 24/05/2021, na discussão sobre tal ponto da ordem de trabalhos, até procurou chamar a atenção para os efeitos que tal deliberação teria nos direitos dos acionistas minoritários e, como também resulta da ata, nada foi dito/explicado para justificar a proposta que estava sob votação/deliberação.
O poder de voto de qualquer um dos 4 acionistas minoritários da R. é limitadíssimo e nenhuma expetativa terão de poder condicionar o sentido das deliberações da R., porém, tal não constitui “justificação” para os AA., contra a vontade deles, não poderem participar nas AG da R.; assim como não constitui justificação o que consta dos pontos 17 e 18 dos factos, ou seja, serem os aqui AA. e o aqui maioritário CC sócios numa outra sociedade (sendo ali os aqui AA. maioritários), onde terão entrado em litígio em 2017, o qual culminou numa série de ações judiciais entre eles.
Argumenta-se no Acórdão recorrido que os AA. “(…) não lograram provar que os sócios CC e CC, que votaram favoravelmente o ponto sete da convocatória, o fizeram com o propósito de, através do seu sentido de voto, causarem prejuízos quer aos demais sócios, quer à sociedade, nem tão pouco de terem sofrido quaisquer danos relevantes em consequência do deliberado”; acrescentando-se que, “(…) para se chegar à conclusão que a deliberação era abusiva, seria necessário que os sócios que formaram a maioria procurassem com o voto servir interesses extra-sociais, seus ou de terceiros, em prejuízo da sociedade ou em detrimento dos sócios minoritários”.
Só que – é o ponto em que divergimos do Acórdão recorrido – a deliberação
social em causa, retirando aos AA. o direito de participar nas AG,
prejudica-os nos seus direitos de sócios e como não é dada qualquer
justificação para a retirada de tal direito (sendo que a retirada de tal
direito não foi “pensada” para Anónimas com apenas 5 acionistas), apenas
fica e subsiste a objetiva desproporcionalidade e deslealdade da deliberação
e o prejuízo que se lhes causa.
Com o que fica preenchido o pressuposto objetivo da 2.ª espécie de
deliberação abusiva (referida no art. 58.º/1/b) do CSC), ou seja, o
deliberado é objetivamente apropriado a prejudicar os dois AA.
E, claro, os sócios/acionistas que votaram favoravelmente, ao votarem como votaram, não podem ter deixado de prever e admitir que da deliberação em causa resultaria tal prejuízo para os sócios/acionistas que, manifestando-se desfavoravelmente, não aceitaram que lhes fosse retirado o direito de participação.
A propósito do pressuposto subjetivo exigido pelo art. 58.º/1/b) do CSC, observa Coutinho de [Abreu] [11] que “perpassa” pela jurisprudência que se tem debruçado sobre o tema “alguma incomodidade”, admitindo que tal pressuposto “atrapalha” e alvitrando mesmo que, em casos merecedores de anulação e em que “não se faça (ou seja duvidoso que se tenha feito) prova de algum dos “propósitos” referidos naquela norma, há que recorrer, a coberto do art. 58.º/1/a), à aplicação dos princípios da igualdade e/ou sobretudo da lealdade”.
Dentro de tal linha de pensamento, admite o mesmo autor [12] que “continu[a] a pensar que teria sido melhor omitir o elemento subjetivo no preceito em análise. Uma sociedade é mecanismo para os sócios (todos) conseguirem vantagens comuns. Se ela é utilizada, ainda que não intencionalmente, para sócios e/ou terceiros ficarem especialmente avantajados à custa de outros sócios ou da sociedade, ou para sócios prejudicarem outros sócios ou a sociedade, há objetivamente uma disfunção e deveria a respetiva deliberação ser considerada abusiva/anulável.” Acrescentado que também “continu[a] a pensar que o juízo acerca do carácter abusivo (gerador da anulabilidade) deveria incidir na deliberação unitária ou globalmente considerada, não nos votos (e propósitos) de cada um dos sócios.”
De violação do princípio da igualdade não parece que deva falar-se no caso sub judice, porém, sendo a alínea b) do art. 58.º/1 uma manifestação/concretização dos princípios da igualdade e da lealdade, é totalmente congruente que o que suprase observou configure uma violação do dever de lealdade, na medida em que corresponde a uma atuação dos sócios (que votaram favoravelmente a deliberação) apropriada a prejudicar os sócios/acionistas que votaram desfavoravelmente a deliberação.
Efetivamente, duma maneira ou de outra – ou pela alínea a) ou pela alínea b) – o que aqui está em causa é uma violação do dever de lealdade dos sócios que votaram favoravelmente a deliberação, que exerceram o seu direito de voto sacrificando sem qualquer justificação o interesse dos restantes sócios, violação essa que justifica a anulação do assim deliberado.
Face à redação do art. 58.º/1/b) do CSC, é comummente entendido que nas deliberações abusivas há duas dimensões de ilicitude: aquela que inquina os votos abusivos e aquela que atinge a deliberação em si mesmo, uma vez que do texto do preceito, principalmente da segunda parte, ressalta que a deliberação só é afetada na sua globalidade se para a sua formação tiverem contribuído votos abusivos sem os quais ela não poderia ter sido tomada, ou seja, se uma vez desconsiderados os votos abusivos se mantiver a maioria necessária, a deliberação é válida, o que significa que o vício está no voto e que é este que pode (ou não) viciar a deliberação (o objeto da valoração jurídica transfere-se do ato deliberativo global para o ato de cada voto, o vício incide primordialmente sobre o voto e só secundariamente sobre a deliberação).
Foi esta valoração jurídica sobre serem abusivos os votos favoráveis à deliberação que até aqui foi feita, cumprindo agora referir, sobre a apreciação do ato deliberativo global, que, sendo abusivos todos os votos favoráveis à deliberação, não subsistem, na deliberação em causa, quaisquer votos inocentes (favoráveis) que possam ser suficientes para a formação da maioria deliberativa – que exigia dois terços dos votos emitidos, quer a AG reunisse em primeira quer em segunda convocação (art. 386.º/3 do CSC), sendo que, no primeiro caso, o quórum constitutivo era de um terço do capital social (art. 383.º/2 do CSC – pelo que a deliberação social tomada na AG da R. de 24/05/2021, que acrescenta dois novos números ao art. 7.º dos Estatutos, não pode manter-se como válida, impondo-se assim, nos termos e ao abrigo do art. 58.º/1/b do CSC, anulá-la.
O que também significa que não se verificava na deliberação em causa, ao invés do que os AA./recorrentes argumentam nas 6 primeiras conclusões, qualquer impedimento de voto que torne nulos (justamente por não respeitarem tal impedimento de voto) os votos emitidos pelo sócio CC, o que, caso ocorresse tal nulidade e a indevida contagem de tais votos nulos, levaria a que não se houvesse conseguido a maioria necessária para, sem tais votos nulos indevidamente contados, aprovar a deliberação sub judice (o que a acontecer consubstanciaria vício de procedimento-58.º/1/a) do CSC, na medida em que havia sido proclamado um resultado positivo, de aprovação da proposta de acrescentar dois novos números ao art. 7.º dos Estatutos, que afinal não havia sido obtido).
Prevê-se, é certo, no art. 384.º/6 do CSC que: Um acionista não pode votar, nem por si, nem por representante, nem em representação de outrem, quando a lei expressamente o proíba e ainda quando a deliberação incida sobre: a) Liberação de uma obrigação ou responsabilidade própria do acionista, quer nessa qualidade quer na de membro de órgão de administração ou de fiscalização; b) Litígio sobre pretensão da sociedade contra o acionista ou deste contra aquela, quer antes quer depois do recurso a tribunal; c) Destituição, por justa causa, do seu cargo de titular de órgão social; d) Qualquer relação, estabelecido ou a estabelecer, entre a sociedade e o acionista, estranha ao contrato de sociedade.
São, como é sabido, situações de conflito de interesse entre o acionista e a sociedade que justificam as limitações ou inibições do direito de voto constantes de tal art. 384.º/6 do CSC, sucedendo, porém – não existindo (para as sociedades anónimas) uma disposição de caráter geral baseada no conflito de interesses – que apenas as situações de conflito de interesses descritas em tais alíneas geram limitações ou inibições de voto (nas sociedades anónimas), acontecendo que a hipótese dos autos não é enquadrável em nenhuma das situações constantes das alíneas transcritas, as quais, até pelo confronto com a redação do art. 251.º/1 do CSC (que, a propósito do impedimento de voto nas sociedades por quotas, contém uma regra geral sobre o conflito de interesses e descreve como exemplificativas as 7 alíneas em tal art. 251.º/1 do CSC previstas), se devem entender como taxativas[13], pelo que valia em pleno a regra constante do já referido art. 21.º/1/b) do CSC, ou seja, a regra que confere a todo o sócio o direito a participar e votar em todas as deliberações de sócios, tendo as restrições, que são excecionais, que estar – o que não sucede na hipótese dos autos – previstas na lei.
Enfim, o que de pertinente os AA./recorrentes invocam (e que eles configuram juridicamente de vários modos, por forma a preencher a violação de várias disposições legais e assim lhe conceder vários fundamentos de impugnação do deliberado sobre o aditamento de dois novos números ao art. 7.º dos Estatutos) tem o seu único cabimento e enquadramento, como já expusemos, tão só na invalidade/anulabilidade do deliberado com fundamento em “deliberação abusiva” (mais exatamente, em tratar-se duma “deliberação emulativa”).
É quanto basta para, em conclusão final, com este único fundamento – deliberação abusiva – revogar o acórdão recorrido e conceder a revista (restrita ao aditamento efetuado ao art. 7.º dos Estatutos, uma vez que contra a supressão do art. 8.º nada é dito ou invocado pelos AA.).
*
IV – Decisão
Nos termos expostos, concede-se a revista, pelo que se revoga o acórdão recorrido, anulando-se a deliberação social tomada na assembleia geral da Ré de 24 de Maio de 2021, na parte em que se aditaram ao artigo 7.º dos Estatutos os dois novos números constantes do ponto 15 dos factos deste acórdão.
Custas, nas Instâncias e neste STJ, a cargo da R.
*
Lisboa, 18/04/2023
António Barateiro Martins (Relator) - Luís Espírito Santo - Ana Moura Resende
Sumário, art. 663.º, n.º 7, do CPC.
_________________________________________________
[1] Art. 41.º da [petição inicial] PI.
[2] Arts. 64.º e 65.º da PI.
[3] Art. 66.º da PI.
[4] Arts. 71.º e 72.º da PI.
[5] Arts. 77.º e 78.º da PI.
[6] Art. 81.º da PI.
[7] Embora quando tal não acontece se fale em “deliberação negativa”.
[8] A participação social nas sociedades comerciais, pág. 118.
[9] Nas sociedades por quotas.
[10] Manual de Governo das Sociedades, pág. 145.
[11] Local citado, pág. 521. [Nota: O autor em causa, Coutinho de Abreu, não se encontra citado anteriormente. A obra que aqui pretende referir-se é o Curso de Direito Comercial, II – Das Sociedades, reportando-se a página à 6.ª edição, de 2019. Na 7.ª edição, de 2021, cfr. a pág. 524.]
[12] Local citado, pág. 514. [Veja-se a nota anterior. Na 7.ª edição, de 2021, cfr. as págs. 217 e s.]
[13] Neste sentido, da taxatividade, Coutinho de Abreu, CSC em Comentário, Vol. VI, pág. 132, Soveral Martins, Administração de Sociedades Anónimas e Responsabilidade dos Administradores,, pág. 122, Lucas Coelho, em “Direito de voto dos acionistas nas AG das sociedades anónimas”, pág. 144, e Raúl Ventura, em “Sociedade por quotas”, Vol. II, p. 283/4; em sentido oposto, defendendo o caráter exemplificativo, Pais de Vasconcelos, em A participação social nas sociedades comerciais, pág. 143, Pedro Albuquerque/Diogo Costa Gonçalves, em “O impedimento do exercício do direito de voto como proibição genérica de atuação em conflito, in Revista de Direito das Sociedades, pág. 684 e Brito Correia, em Direito Comercial, 3.º Vol., pág. 158/159.
Anotação
1. O caso
Numa sociedade anónima (MN) com o capital legal mínimo de 50 000 euros, dividido em 50 000 ações com o valor nominal de 1 euro cada uma, C detinha a quase totalidade das ações – 49 996, representativas de 99,992% do total –, sendo as restantes 4 detidas pela ex-mulher, o pai (E), uma irmã (A) e um parceiro de negócios da família (B), cada um com sua. O C era também, desde a fundação da sociedade, administrador único; e E, o presidente da mesa da AG, desde julho de 2018. Além das contribuições de capital, todos (menos a ex-mulher do C) haviam emprestado à sociedade importantes somas: o C, 608 000 euros; e os restantes, 47 500, cada um[ii].
A e B eram também sócios maioritários de uma outra sociedade anónima, uma SGPS, cabeça de um grupo (S), tendo nela o C uma posição minoritária. Nela, em 2017, desencadeou-se um litígio entre os primeiros e este, que teve como consequência uma série de ações judiciais propostas pelo C contra a sociedade e por esta contra ele.
Mediante deliberação de 24.05.2021, tomada com os votos de C e E, foi aprovada uma alteração dos estatutos da MN, através da qual se limitou, não apenas o direito de voto, mas também, mais latamente, a participação nas reuniões da assembleia geral aos acionistas detentores de pelo menos 1000 ações; tendo A e B votado contra. Embora no acórdão não se estabeleça uma ligação entre a situação conflitual existente na sociedade S e esta alteração estatutária, afigura-se evidente que ela constitui uma manifestação, agora na MN, do conflito aí surgido entre os acionistas comuns a ambas. O que é confirmado pela presente ação de impugnação judicial da deliberação em apreço, proposta por A e B.
Dado o diminuto poder de influência conferido pelo voto aos minoritários, em especial a A e B, detentores de 2 votos em 50 000, o alcance mais substancial da alteração consiste em privá-los do direito a serem convocados e a estar presentes nas reuniões da AG, dos correspondentes direitos de proposta, discussão e informação acerca dos assuntos aí discutidos, bem como, in casu, de apreciação, interpelação e censura, no órgão em causa, da gestão levada a cabo pelo administrador (C) e da fiscalização cometida ao fiscal único[iii]. Este dado é importante, porque, com participação tão diminuta, os minoritários nem sequer têm o direito mínimo à informação constante do art. 288.º do CSC. De facto, sem a alteração estatutária, os minoritários em apreço ainda poderiam acompanhar minimamente o funcionamento da sociedade e do negócio, em que fizeram um investimento importante, embora não em capital próprio (acionário). Após a mesma, ela tornou-se-lhes uma organização opaca, esvaziando-se quase por completo a sua posição de membros.
O objetivo do sócio maioritário afigura-se relativamente linear: com a alteração, evitaria ter de lidar na AG com uma minoria que, embora por circunstâncias (pelo menos em parte) alheias à sociedade , se tornou incómoda para si; podendo, ainda, descortinar-se na sua atitude uma reação agressiva pessoal, de apoucamento, chicana ou vendetta, contra os protagonistas do litígio na sociedade em que é minoritário, dado que se desconhece qualquer justificação material para a alteração por si protagonizada. Para a sociedade, haverá, por um lado, uma relativa maior agilidade e simplificação no seu funcionamento, uma vez que a AG passa, na prática, a funcionar apenas com o sócio ultramaioritário (C); mas, por outro lado, a fiscalização da administração pelos sócios torna-se correspondentemente mais difícil e, provavelmente, o conflito projetar-se-á no exercício de direitos sobrantes, mormente o de impugnação de deliberações sociais. Uma coisa se afigura certa: o episódio revela que, de estrutura inicial de cooperação na realização do interesse social, comum a todos os acionistas, a sociedade se tornou numa pura e conflituosa estrutura de poder censitário; sendo a modificação votada o resultado do exercício deste, por parte do C.
A alteração estatutária baseou-se nos arts. 384.º, n.º 2, al. a), e 379.º, n.º 2, do CSC. Dispõe-se no primeiro preceito, em derrogação da regra segundo a qual a cada ação corresponde um voto (n.º 1 do mesmo artigo): «O contrato de sociedade pode (…) [f]azer corresponder um só voto a um certo número de ações, contanto que sejam abrangidas todas as ações emitidas pela sociedade e fique cabendo um voto, pelo menos a cada 1 000 euros de capital». No outro, estabelece-se, nomeadamente, que «os acionistas sem direito de voto» - incluindo os privados do mesmo em virtude de uma cláusula estatutária como a prevista naquele artigo anterior - «podem assistir às assembleias gerais e participar na discussão dos assuntos indicados na ordem do dia, se o contrato de sociedade não determinar o contrário »; tendo-se feito uso desta faculdade derrogatória.
Em situações como esta, concede, ainda, o CSC aos minoritários um direito de agrupamento, nos termos do n.º 5 do art. 379.º, que tem o seguinte teor: «Sempre que o contrato de sociedade exija a posse de um certo número de ações para conferir voto, poderão os acionistas possuidores de menor número de ações agrupar-se de forma a completarem o número exigido ou um número superior e fazer-se representar por um dos agrupados.» Porém, no caso vertente, dado o atual estado de coisas, em que o número de ações dos minoritários é de apenas 4, tal faculdade mostra-se irrelevante.
2. Decisão do caso
A ação foi decidida favoravelmente aos respetivos proponentes, A e B, determinando o tribunal de primeira instância a anulação da deliberação. A decisão foi revertida pelo TRL, mas, através do acórdão que se anota, o STJ revogou o acórdão recorrido, anulando, em definitivo, a deliberação impugnada.
No entendimento da Relação, para haver uma deliberação abusiva[iv], seria necessário que os sócios que formaram a maioria procurassem, com o seu voto, servir interesses extrassociais, seus ou de terceiros, em prejuízo da sociedade ou em detrimento dos sócios minoritários [como se prevê no art. 58.º, n.º 1, al. b), do CSC]. Ora, no seu entender, os autores da ação nem provaram este propósito de causar prejuízos, aos demais sócios ou à sociedade; nem provaram que, com a deliberação, os minoritários (ou a sociedade) hajam sofrido danosrelevantes.
O Supremo viu o problema de maneira diferente. Segundo ele, por um lado, verificavam-se os requisitos da existência de uma deliberação abusiva, na subespécie deliberação emulativa, destinada a causar prejuízo aos minoritários, uma vez que, sem apresentação de qualquer justificação material, com a alteração em causa eles ficariam privados de importantes direitos sociais; por outro lado, a figura das deliberações abusivas recortada no art. 58.º, n.º 1, al. b), do CSC é apenas uma manifestação do mais amplo e flexível dever de lealdade dos sócios, cuja violação determina a anulabilidade da deliberação afetada, nos termos da regra geral contida no art. 58.º, n.º 1, al. a), do Código.
O primeiro argumento encontra-se em linha com uma certa tendência para dar à figura das deliberações emulativas – uma das duas espécies de deliberações abusivas previstas no art. 58.º, n.º 1, al. b) – um alcance bastante alargado[v]. O segundo é de maior envergadura, justificando aqui uma análise mais demorada (cfr. infra, 3 e 5).
….
Um comentário ao presente acórdão será publicado no próximo volume da Católica Law Review .
[i] Relator, António Barateira Martins; proc. n.º 9333/21.1T8SNT.L1.S1; fonte, www.dgsi.pt.
[ii] Poder-se-ia, à primeira vista, pensar que C era o único verdadeiro sócio, aparecendo os demais como testas de ferro, destinados a preencher o requisito constitutivo das SA previsto no art. 273.º, n.º 1. Este financiamento e a existência de uma paralela sociedade cabeça de grupo com acionistas comuns (S), na maioria familiares próximos, a que se alude a seguir, sugerem, no entanto, coisa diversa; embora se desconheça que arranjo terá estado por trás da constituição da sociedade sub judice.
[iii] Formalmente, isto também sucede com o E, mas este estará presente nas reuniões da AG enquanto presidente da mesa. Quanto à acionista restante, a ex-mulher de C, desconhece-se a posição da mesma no conflito.
[iv] Deduz-se daqui que, na base da sentença da primeira instância, terá estado a qualificação da deliberação como abusiva.
[v] Cfr., designadamente, a respeito do art. 58.º, n.º 1, al.b), em geral, Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, II – Das Sociedades, 7.ª edição, Almedina, Coimbra, 2021, pp. 302, 512 e ss., 514 e ss., com mais indicações.